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A Agenda Icarus,
de Robert Ludlum

Perigo sob os turbantes

Nem russos, nem amarelos, em seu mais novo romance, Robert Ludlum exibe vilões do mundo árabe

A Agenda Icarus, de Robert Ludlum
Guanabara, 645 p.

Ao deparar-se com A Agenda Icarus, último sucesso de Robert Ludlum, a sensação que se tem é de pavor: afinal são 645 páginas que terão de ser enfrentadas. Mas a fama do autor anima; faz com que se queira abrir o tijolo para conferir se a habilidade do oleiro ainda continua afiada. Começada a história, tudo fica mais fácil. O livro consegue cativar, dispensando, para sua total deglutição, o consumo de colagogos ou anti-ácidos.

O parágrafo de abertura do primeiro capítulo é barroco. Ludlum inicia a narrativa com aquela velha idéia de céu chumbo-escuro, prestes a desabar. O leitor pressente que há algo de sombrio e podre no ar. É transportado para Mascate, a capital do sultanato de Oman, na Ásia. Fanáticos árabes invadiram a embaixada americana e fizeram reféns. Não demora muito e o herói dá o ar de sua graça. Evan Kendrick é um obscuro deputado do Colorado, conhecedor profundo dos países do Golfo Pérsico. Sua missão? Lutar pela vida dos 236 inocentes presos no simulacro.

Na primeira parte do livro, o leitor encontra o Oriente Médio em chamas e é enredado em 218 páginas de muita ação. O pique é muito bom nessas páginas iniciais. Acho sinceramente que Ludlum poderia ter parado aí. Na segunda parte, o leitor é transportado para os Estados Unidos, onde grupos secretos de milionários, gente da CIA, do FBI, terroristas, mercadores de armas, deputados, se envolvem numa operação – cognominada Agenda Icarus – cuja meta é o controle político do país. A terceira parte é fininha (32 páginas) e, ao meu ver, absolutamente dispensável. O livro terminaria bem melhor sem ela.

A Agenda Icarus acaba sendo dois romances distintos. Com a astúcia que lhe é peculiar, o autor conseguiu costurar as tramas numa só, utilizando os mesmos personagens. Eu prefiro o primeiro. O segundo começa mal. Suas primeiras 150 páginas são de lascar, muito chatas. A narrativa abandona o Golfo, as prisões e becos, os terroristas árabes, para acompanhar a política norte-americana, que, cá entre nós, consegue ser mais cacete que as comédias protagonizadas por Dean Martin. Conversa fiada, a tevê e a imprensa escrita fazendo a cabeça de eleitores e discursos enfadonhos ocupam parágrafos e mais parágrafos. Quanta monotonia! Só mais tarde, quando a nova trama começa a se esboçar e os fatos passam a produzir ação, é que o livro recupera a empolgação do início.

A história é contada naquele clássico esquema da narrativa linear, com princípio, meio e fim. Um ou outro flash-back. O narrador tem um forte tropismo pelo herói e corre atrás dele o tempo todo com uma câmera fixa na mão, não deixando que qualquer de seus passos fique sem registro. Ação é o que não falta; os diálogos quase sempre vêm sob medida. Vez por outra entremeia falas sem identificação – em geral de vilões, acentuando o clima de suspense – ou se detém nalgum personagem que só mais tarde terá importância.

As descrições são exatas. Aliás Robert Ludlum sempre fez questão de falar através de um narrador altamente qualificado, que dá a impressão de saber de tudo. Nessa Agenda alcança as raias da minúcia ao explicar que um vôo de F-106 da Sicília, na Itália, a Oman pode ser feito em quatro ou cinco horas, a depender dos ventos mediterrâneos predominantes. Noutra passagem diz que o prefixo usual dos telefones de Mascate é 745. Isso me atrai. Uma coisa de que gosto no livro é a pesquisa que dá cor local à narrativa. Um livro de ação sem isso não se qualifica. O autor fez o melhor possível. O romance é recheado de informações sobre países árabes e expressões não traduzidas para o inglês. Robert Ludlum nos mostra seus hábitos, explora sua maneira de conceber e pensar o mundo. “Ajude-me com a thobe e o aba, por favor”. “É o seu Deus, ya Shaikh, não o meu”. Baklava bohrtooan, nos ensina, é “torta de limão”; e Shvartzeh Arviyah é algo como “negra árabe”.

Em alguns momentos há uma certa exorbitância nos diálogos e a coisa fica meio maçante. Homens adultos e importantes discutem obviedades e há redundância a mancheias. Conversa demais jogada fora. Mas alguns desses diálogos chegam a ser divertidos. Os americanos dizem `porra’, `merda’, `caramba’ o tempo todo. Nem o presidente foge a esse linguajar contundente, chulo. Essa é a ambientação, a cor local made in USA, que se completa com a visão que o narrador passa do político da terra. Deputado e senador que se prezem têm que ter o rabo preso. Seu passado está inapelavelmente associado a sujeira sexual, ligações com a máfia, tráfico e consumo de tóxicos. Lendo A Agenda Icarus, a gente começa a achar que Washington é o império da chantagem e da corrupção. Parece que ali ninguém está livre de canalhices. E como gostam disso os compatriotas!

Ludlum se cerca de todos os cuidados necessários à concepção de um herói sem defeitos, de caráter irrepreensível. Tudo em Evan Kendrick – todos os seus atos, até os mais bárbaros – se justifica. Não é à toa que o narrador ponha Kendrick a curtir reminiscências e inunde o leitor de flash-backs que trazem à tona as atrocidades cometidas pelos árabes no passado. Isso faz irromper em ambos o desejo de vingança, dá ânimo aos dois e faz o leitor se esquecer de que tudo é ficção.

“- O que estou fazendo? – gritou Kahleha para si mesma. Aquele não era o momento para pensar no passado, o presente era tudo.” Ação, essa é a matéria do autor. O presente é tudo, o passado só pode existir para dar justificativas ao leitor, mostrar-lhe que o personagem tem motivos de sobra para se meter em tanta enrascada e não raro ser impiedoso, vingativo. Uma vez conquistado, o leitor tem que invadir o mundo dos protagonistas. Uma narrativa presentificada puxa naturalmente o leitor até o fim do livro. Mas essa não é a única estratégia que o autor usa para manter o leitor ali, com a cabeça presa à ratoeira, até o ponto final. Ludlum não só é um escritor contemporâneo, como também tem consciência disso. Ele sabe perfeitamente o que as pessoas querem ler e abusa dos condimentos necessários à satisfação de seus desejos. Robert adora meter combustível no fogo. Afinal, para esse tipo de leitor, quanto mais quente melhor.

Robert Ludlum está absolutamente a par da última moda em matéria de vilania: árabes, mafiosos e latinos da droga assumem hoje o papel antes reservado a outras etnias. Os russos da glasnost não entram em cena. Com sua perestroika, Mikhail Gorbachev acabou por retirar quase todo o sal da carne seca. Perdeu a graça falar em ` perigo vermelho’. O `perigo amarelo’ também já era. Os maus agora usam turbantes. O maniqueísmo é salutar para uma boa trama de ação. Bons movidos a sede de vingança e senso de liberdade e maus impulsionados por dinheiro e fanatismo, como no caso dessa Agenda. Uma boa mistura. Isso também rende páginas que dão gosto de ler.

Na política, especialmente no Oriente Médio, sempre é bom ter alguém por trás de tudo. Um livro de intriga internacional pressupõe organizações subterrâneas agindo, manipulando a realidade ao redor, como se pessoas e fatos fossem marionetes. O herói é um candidato ao teatro de fios, mas se rebela. Ele é um índividuo especial, que descobre a engrenagem e tenta se livrar da manipulação. Evan Kendrick, o herói, faz isso muito bem. Conhece a verdade que os personagens só têm parcialmente e que o leitor, no mundo real, jamais alcança.

Kendrick é um personagem sem substância, mas determinado, como deveria ser. Vai desempenhar bem suas funções e merece ouvir belas palavras na página 313. É o nosso presidente quem o elogia: “Acabei de ler todo o material secreto sobre as coisas que você fez e devo lhe dizer que estou muito orgulhoso…” “Sua atitude, Evan, como indivíduo, será uma aula para gerações de jovens americanos.” Só o herói pode vencer as obscuras organizações associadas aos inimigos.

Alguém poderia acusar o livro de americanófilo. Mas ele é isso mesmo, do princípio ao fim. Fala do fanatismo e ignorância dos inimigos, revela a força do índivíduo WASP (White Anglo Saxon Protestant), mostra o político corrupto e milionários com interesses escusos contra um empresário bem sucedido que quer ganhar seu dinheiro honestamente. Tinha que ser assim. Afinal não são os árabes nem os políticos que sustentam o mercado editorial. Robert, entretanto, se previne. No início, o narrador é meio anti-árabe, mas depois se redime, chegando até mesmo a dizer que há bons árabes. Os que dão cobertura aos EUA e ao Mossad, é óbvio. Cômico, não? Para os que se interessam por esses temas, na página 425 há uma fantástica discussão sobre a diferença entre `terroristas’ e `guerrilheiros da liberdade’.

Prefiro comentar a atuação de uma meia-árabe com pele cor de amêndoa, uma bela e sedutora mulher chamada Kahleha. Ela desempenha bem suas funções. É uma criatura inteligente, forte, decidida. Muito bem cunhada. Aproxima-se de Evan para cumprir tarefas profissionais, chega a receber ordens para executá-lo, mas depois teme por ele. Ela é fantástica, na rua e na cama. Durona e misteriosa, faz bem o tipo da heroína moderna. Eu gostaria de conhecê-la.

Se A Agenda Icarus é um livro bom ou ruim, não sou eu quem deve dizê-lo. Isso cabe às listas de vendas. A editora é de porte, o autor anda que nem pão na boca da massa e o esquema promocional foi muito bem montado. Particularmente, fiquei satisfeito com esse romance. Se expressei aqui uma ou outra restrição, não me recriminem. Apenas defendo o leite das crianças. E o Robert sabe disso. Minhas opiniões, como as dele, nunca correspondem à realidade.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
30/9/1989

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