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Dissecando Stephen King,
de Tim Underwood e Chuck Miller

Segredos de um mestre
Em uma série de entrevistas, Stephen King fala de seu trabalho, suas ambições, seus leitores e de literatura

Dissecando Stephen King, de Tim Underwood e Chuck Miller
Franciso Alves Editora, 265 p.

De início não se deixe levar pelo marketing da capa. Ela apresenta uma cabeça dissecada, com músculos, artérias e ossos expostos, sugerindo uma nova trama de Stephen King, o senhor das histórias de terror. Não se trata disso, mas sim de uma compilação de entrevistas que ele deu à imprensa ao longo dos últimos anos. Assim, o melhor é relaxar em sua poltrona e se divertir. Dessa vez quem sofre são os entrevistadores de Stephen, que tentam se apropriar da alma do maior best-seller do planeta.

Não é tarefa fácil compreender como funciona a mente daquele que mais ganha dinheiro escrevendo livros hoje em dia. Stephen é cínico por natureza. Ele mesmo adverte sobre o circo que é ser entrevistado na era da mídia: “De fato, os programas de entrevistas, a televisão como o rádio … não querem realmente que os escritores debatam seja lá o que for, querem que você divirta o público.” Se essa é sua proposta, temos que reconhecer que ele a realiza plenamente. O livro pode ser apreciado não só pelo prazer de ver o viço de cinismo e deboche de Stephen para com o mundo cultural e para com a mídia, mas pela sua sensibilidade em tocar tabus em debate na literatura moderna. Stephen, que simula quase o tempo todo — e é explícito quanto a isto –, é capaz de apresentar nas entrelinhas um pouco de suas concepções sobre a excitante polêmica entre a grande literatura e a literatura de massa. A leitura e o debate em torno desse livro podem ser um prato e tanto para aqueles que se interessam por esse tipo de cardápio.

Dissecando Stephen King consegue cativar. Basta um pouco de paciência do leitor para pular as inevitáveis repetições de perguntas, mantidas por questões de direitos autorais — há uma advertência sobre isso logo no início. Por exemplo, abstrair o sem número de vezes que os entrevistadores perguntam a ele por que não gostou da versão de Kubrick para O Iluminado.

Para começo de conversa, Stephen surpreende o leitor e seus interlocutores com a lucidez e o grau de informação que tem sobre o que faz e o que fazem os escritores no universo da literatura americana. Ele quebra de saída o mito de que o escritor de literatura de massa seja um desinformado que não aprecia a grande literatura. Sem perder o humor, ele explica por que a leitura é importante para o escritor ao ensinar-lhe o que não deve fazer e a encarar a publicação — questão crucial da prática literária: “Parece-me que os jovens literatos conseguem alcançar um momento verdadeiramente decisivo em suas vidas como escritores quando podem dizer para si mesmos, com toda honestidade … o que faço é melhor que isto… um livro foi publicado alguém recebeu dinheiro por aquilo e você pode fazer melhor…”

Sem ficar por aí, ele cutuca com vara curta e acompanha tudo que se passa no mundo do cinema e da tevê. Stephen revela uma realidade pouco explorada no mundo da literatura. Ele escreve partindo da premissa de que as pessoas hoje não lêem Marcel Proust, mas assistem tevê e vão ao cinema. Ele escreve para esse público que desenvolveu seu gosto estético a partir do contato precoce com os meios audiovisuais. Talvez seja essa a explicação do por que de quase todos os seus livros terem se tornado filmes ou seriados de tevê. Daí também o possível fracasso de público que ronda muito escritor contemporâneo que ainda peleja em escrever em busca do tempo perdido. Sua aproximação com a mídia eletrônica poderia ser utilizada para se esquivar das críticas literárias. Mas o que ocorre é o contrário. Nosso terrorista das letras não se esquiva delas. Concorda com muitas delas e não perde a oportunidade de ridicularizar os criadores do cinema e tevê: “a maioria das pessoas ligadas ao cinema é pouco inteligente; não tem cérebro. O que elas têm, sobretudo, são olhos imensos que tendem a ver imagens sem sentido, sem motivação, ou seja lá o que for.”

Um trecho saboroso de suas entrevistas é a discussão em torno de uma certa intelectualidade que reconhece a boa literatura como aquela que jamais satisfaz o gosto da massa. Stephen parte de outra premissa. Ele diz que a grande literatura sobrepõe uma preocupação estilística e lingüística às histórias e a literatura que as pessoas querem é a que conta uma história. A partir disso, ele explica que pode existir uma boa história aliada a uma boa maneira de contá-la. Mas, adverte: um bom best-seller deve evitar circunlóquios intelectuais que acabem por atrapalhar o andamento da história. É essa sua maneira de trabalhar. Ele relega o estilo e a exploração da língua como momentos secundários da sua produção literária. Na grande literatura qualquer história bem contada faz excelente literatura; na literatura de massa, jamais.

Para quem tem curiosidade sobre a mente satânica que escreve livros como Carrie, a Estranha ou O Iluminado, Stephen oferece tiradas de arrepiar. Ele simplifica o que faz, dizendo que manipula seu lado pervertido, diabólico e sádico numa espécie de exercício catártico quando escreve. É uma espécie de psicoterapia que lhe rende muito dinheiro. Ele acredita piamente que todas as pessoas têm um lado muito sujo em pensamento e vive da morbidez das pessoas. Sem papas na língua diz que o bom pai de família ou a dona de casa dedicada pagam alguns dólares para ver em folha impressa sua sordidez.

Talvez um dos grandes momentos das entrevistas seja quando ele explica a atração que as histórias de terror exercem sobre os adolescentes. Dando a volta sobre os clichês, ele afirma categórico que o adolescente é o maior conservador que conhece. Espremido entre a infância e a vida adulta que não viveu, ele se torna o ser mais reacionário que conhece. Quando foi acusado por um jornalista do Village Voice, de Nova Yorque, de ser um conservador, respondeu que tinha consciência de que as histórias que escreve são muito importantes na conservação da estrutura social. É o terror que mantém a coesão social e serve de escape para a canalização dos medos coletivos. Da analogia entre o medo da invasão dos russos projetada nos filmes de invasões de marcianos ao medo atômico projetado em formigas e insetos gigantes, que polvoa o cinema e a literatura, Stephen traça elegantes paralelos entre a realidade e as formas imaginárias do medo na cultura dos EUA.

Para aqueles que acham que sua vida é assentar diante do micro, escrever quatro páginas por dia e receber 5 milhões de dólares de adiantamentos, Stephen tem uma empolgante história pessoal, que envolve livros recusados, falta de grana, um princípio de alcoolismo e uso de drogas. Não é a toa que ele demonstrou tanta firmeza ao longo da sua carreira: “Os escritores possuem um ego imenso. Esta é a única maneira de obter condições para continuar a enfrentar todos aqueles bilhetes de rejeição.” O livro termina deixando clara a idéia de que ele não é um ingênuo, sentado sobre o travesseiro da fama, falando as bobagens de plantão ou atirando para todos os lados. Stephen sabe que seus dias no Olimpo estão contados. Ele mesmo adverte: a mídia é mestre em fazer trocas periódicas de mitos. E volta a avisar que sabe e gosta de jogar; é esperto e não pretende ser engolido pela máquina. Resta saber se conseguirá.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
9/2/1991

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