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Entre Amigos,
de Gabriel Garcia Marquez

Um Nobel quando jovem cronista

Coletânea de crônicas e críticas de velhos filmes mostra o bom e o ruim do jornalismo de García Marquez

Entre Amigos, de Gabriel Garcia Marquez
Editora Record, 505 p.

O cenário internacional anda tão agitado que ler velhas crônicas não é nada mal. Acabo de ler Entre Amigos, uma coletânea de textos escritos pelo Nobel colombiano Gabriel Garcia Marquez. Para minha surpresa, os países tropicais também produzem autores que podem se dar ao luxo de ver sua obra menor em letra impressa. Num volume de 502 páginas, organizado e apresentado por Jacques Gilard, estão reunidos textos de 1954 e 1955 para colunas publicadas no El Espectador, um jornal de Bogotá. O livro começa com um extenso prólogo de 67 páginas, que acompanha em minúcias a trajetória do então jornalista em seus primeiros vôos profissionais. Naquele tempo, ele fazia de tudo um pouco: crônica, reportagem, até crítica de cinema.

A maior parte do volume é ocupada por artigos que escrevia para uma coluna de crítica cinematográfica (O Cinema em Bogotá). São comentários sobre filmes que estavam sendo exibidos na cidade, notas corriqueiras, nas quais o máximo que se pode extrair são opiniões do escritor-jornalista acerca dos filmes que via. O próprio organizador da coletânea chama a atenção para o aspecto efêmero e banal dessas críticas. Precisei ler o material com alguma impaciência, mas o leitor certamente vai pular muitas dessas páginas. Revisitar filmes antigos através de comentários de curto alcance não satisfaz a ninguém. Isso interessa apenas àqueles que desejam conhecer todas as facetas do escritor, quem sabe um estudioso da sua biografia ou um fã ardoroso. Se o assunto é a rememoração de filmes, melhor esquecer O Cinema em Bogotá e ler Manuel Puig, escritor portenho que trabalha de forma brilhante esse tema.

Os outros textos do volume são reportagens investigativas narradas em forma de crônicas, publicadas originalmente na seção Dia a dia. De maneira quase romanceada, Gabriel Garcia apresenta as situações cotidianas e explora as crenças e idiossincrasia dos seus compatriotas com maestria. Macondo, todos sabem, é uma metáfora literária de países abaixo do equador. O mais estimulante é a constatação de que lugares fictícios, como Macondo, existem em Bogotá e Barranquilla. Quem lê, consegue um flagrante do cotidiano de um país sobre o qual se tem pouca informação. Porque, entre nós, Colômbia virou apenas sinônimo de cocaína e guerra civil. Nos textos da coluna Dia a dia, é possível identificar os temas que tinham ressonância para o escritor: o imaginário do país, as lutas políticas entre liberais e conservadores, as cidadezinhas da costa do Caribe. Não passa desapercebida sua aversão pelos gringos. São aquelas posições comuns a tantos intelectuais sul americanos querendo provar que os Estados Unidos não passa de um tigre de papel.

Não dá para entender por que, do ponto de vista editorial, os textos de O Cinema em Bogotá e de Dia a dia estão reunidos no mesmo volume. Os estilos, os temas e a qualidade são diferentes. A única característica em comum é a sua data de feitura. Sem dúvida, o destaque do livro fica com as crônicas da seção Dia a dia. Um dos bons momentos do volume são os relatos que narram as desventuras do batalhão de colombianos que foi à Coréia lutar contra os comunistas. É incrível, apesar de verdadeira, a trajetória de camponeses do interior desse país caribenho no cenário da guerra asiática. O resultado soa em requintada prosa: “Apesar do perigo e da sensação de estarem pisando nos domínios da morte, havia nessa guerra algo insólito, ao qual não estavam acostumados os soldados da Colômbia. Depois da ação, como caída do céu, mas em realidade transportada em caminhões, chegava a comida. `Estava sempre fria’, diz um veterano, mas em compensação era abundante”.

Há humor e política em doses bem distribuidas ao longo de Dia a dia. Mesmo quando o assunto é local e limitado ao tempo dos acontecimentos, dá para sentir a presença de um autor de peso por trás do texto. Garcia Marquez é conhecido por sua contribuição à reportagem, que procura aliar o cuidado na apuração dos fatos ao artesanato na confecção do relato. Num desses painéis curiosos da vida em Bogotá, Garcia Marquez recria com minúcias a galeria de personagens políticos a partir de suas preferências na escolha de tipos de chapéu. Irônico, afirma que a história se escreve com o inseparável adorno, que acaba personificando a essência da vida política. Mais adiante, como esquecer a participação especial do gaiteiro Samuel Andrew, membro da guarda negra do exército britânico? Ele viaja para a Colômbia, ignorando a sua existência e localização geográfica. Acreditava, a princípio, que iria até a Colúmbia Britânica. Não era nada disso, o simpático gaiteiro passou alguns dias em Bogotá. Entusiasmado com o que via, tocava sua gaita de fole, curtia a noite e os boêmios, as mulheres e dispensou sem solenidade a tradicional visita ao Museu do Ouro. Na prosa de Garcia Marquez, “poucas horas antes de abandonar o nosso país, perguntaram-lhe o que mais o agradou na Colômbia. Samuel Andrew não vacilou um instante: disse que o que mais gostou na Colômbia foi do uísque”.

Na Dia a dia, o repórter Garcia Marquez não se preocupa apenas em apresentar os fatos. Nem se restringe a opinar sobre eles. Sem deixar de lado seu caráter verídico, lhes imprime tonalidade literária, transformando episódios banais em textos interessantes para o leitor. Eu apreciaria bem mais os jornais, se tivessem mais espaço para esse tipo de coluna. Agora, o questionável é a propriedade de se publicar, em forma de livro, todos os textos da época, especialmente em conjunto com comentários cinematográficos. A gente sabe muito bem da diferença entre aquele texto costurado ao longo do tempo e aquele feito numa sentada, depois da matinê, para estar no jornal, quando o dia amanhece.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
30/6/1990

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