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O Negociador,
de Frederick Forsyth

‘glasnost’ por um fio

Frederick Forsyth confirma seu talento para tramas em que realidade e ficção podem ocupar territórios contígos

O Negociador, de Frederick Forsyth Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Record, 396 p.

Forsyth volta a atacar. E com artilharia pesada, a mesma que usou para conceber seu melhor romance, uma das mais bem arquitetadas e mais populares história de ação da moderna literatura do Ocidente: O dia do Chacal, que narra as tentativas de crime organizado em escala internacional para liquidar o ex-presidente francês Charles De Gaule. O livro é tão bom e fez tanto sucesso que o editor nunca hesitou em utilizá-lo como uma espécie de luminoso na capa dos romances de Forsyth escrevia mais tarde, como alias acontece com este O negociador. Aqui a história começa no futuro e vai penetrando. Mas um futuro bem próximo, o que amedronta o leitor de hoje e o faz pensar que tudo esteja prestes a acontecer. Como se uma agulha lhe rondasse a veia de um dos antebraço ou um cego penetrasse numa casa desconhecida e atulhada de finíssimos cristais.

Desta vez Forsyth inventou uma bossa que, infalível no mundo do cinema e da tevê, na literatura é pelo menos usual. Não me lembro de ter visto elenco de personagens nos livros de ficção que já passaram sob meus olhos. Aqui ele aparece reunidos por nacionalidade – americanas, russos, europeus… – e apresentam nomes extraordinários: Mikhail Gorbachov, secretário-geral do PCUS e Margareth Thatcher, primeira ministra da Inglaterra, para dar só dois exemplos. Apesar da força de sua imaginação, Forsyth não pode introduzir o republicano George Bush nessa invulgar galeria de personalidades. Afinal o presidente norte-americano nem de longe sustenta o perfil político que o nosso mestre idealizou para John cormack, democrata convicto, ultraprogressista e decidido a assinar com a refrigerada União Soviética de Gorbachov um tratado de desarmamento de longo alcance. Como Gorbachov, Cormack vislumbra com esse gesto – levado a cabo em Nantucket, pequena ilha do litoral da Nova Inglaterra – garantir um futuro de paz para a humanidade e desviar para o campo das pesquisas energéticas as gordas somas que se queimam na fabricação de sofisticadas armas de guerra.

Mas é evidente que um gesto tão largo jamais deixaria de produzir uma contrapartida igualmente grandiloqüente. O embrião do contragolpe pôs-se a crescer tão logo a ideologia da não-beligrância começou a ganhar corpo.

Enquanto Cormack e Gorbachov se abraçavam na bucólica Nantucket e produziam uma imagem que as câmaras de tevê revelariam a milhões de emocionados telespectadores, o ultraconservador texano e magnata do petróleo Cyrus Miller esboçava um riso cínico em seu escritório, no último andar de um suntuoso edifício no centro de Houston. Disposto a ir às últimas conseqüências para enterrar os sonhos de Comarck e expandir seu império para muito além das fronteiras dos EUA, Miller associa-se a políticos reacionários, capitalistas, sem nenhum escrúpulos e mercenários de baixíssimo calão, para arquitetar o diabólico plano Álamo. O armador Melville Scalon é seu braço direito e o renegado Irving Moss o seu melhor marionete. A trama é mirabolante e inclui fantasias com que muitos devem sonhar mas que só poucos se atreveriam a levar adiante: a supressão da dinastia real saudita e o controle de Riyad e dos campos de petróleo de Hasa. Estaria decretado assim o fim monopólio petrolífero! Tão incrível projeto saiu da cabeça do consultor de segurança Robert Easterhouse, especialista em Arábia Saudita, e se daria a partir da ação do grupo do Santo Terror liderado por um imã que devota ao rei e sua família o mais patológico dos ódios. A casa de Saud dominada pelo poder xiita seria um feito inaceitável, e de Omã, passando pelos Emirados, até o Kuwait, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano, Egito e Israel, se ouviriam pedidos de intervenção americana para salva-los do Santo Terror.

E mais ainda: para desestabilizar Comarck, criando-lhe estorvos os mais cruéis, o Álamo articula o seqüestro do único filho do presidente, o jovem Simon Comarck, durante sua viagem de estudos ao Balliol College, em Oxford, Inglaterra, desencadeando a mais espetacular mobilização da comunidade de informação ocidental: Scotland Yard, Cia, FBI. Mas a manobra foi excessivamente bem trabalhada para ser resolvida por seres humanos normais. Era preciso que Ele chegasse para decidir. Quinn, o negociador – veterano do Vietnã, várias vezes bem-humorado mediador na libertação de reféns em poder de organizações extremistas – que deixa suas plantações de uva no interior da Espanha para descer aos infernos e punir rufiões.

Do outro lado da cortina, membros do PC soviético descontentes com os ventos democráticos do governo Gorbachov preparavam uma bomba para torpedear os planos de seu nem tão gentil camarada. As lideranças desapontadas com a retina da Cabul têm sede de expansão e para isso precisam de armas. O petróleo também é um problema (extrair óleo na Sibéria e no Ártico dá trabalho e requer somas enormes), e a conquista do fogoso Irã poderia ser uma belíssima solução.

Vejam em quanta enrascada meu velho amigo Frederick procura meter seus leitores, daqui, dali e de muito além, pois seus livros chegam até a Polinésia, passando pela África e a Ásia. Seus personagens falam centenas de línguas e obedecem a leis sintáticas que em alguns casos eu reputaria obscenas. Juntos, seus livros já venderam entre 40 e 50 milhões de exemplares.

Há pouco, em comentário sobre o último livro de Robert Ludlum, A agenda Icarus, disse que com a era Gorbachov a exploração do confronto Leste-Oeste havia perdido a graça nas narrativas de intriga internacional. Com sua habilidade, no entanto, Forsyth achou um jeito de reinjetar sal na já bem-lavada e combatida carne seca. A luta já não se trava entre as nações, inflamadas pelo binômio ideológico comunismo-capitalismo que antes as separava, mas no seu próprio interior. A roupa suja se lava na própria casa, em tanque de guerra , com água pesada.

Dizem que, talvez em conseqüência de seu sangue de repórter de guerra, Frederick Forsyth escreve sem lirismo, que suas histórias se ressentem da ausência de poesia. Acho absolutamente desprezíveis comentários desse jaez. Se as suas histórias faltam essas virtudes, elas sobram em sua personalidade de homem de letras. Quanto mais Frederick vende seus livros, tanto mais ele sua a camisa para superar-se, atribuindo grandeza a um gênero que nunca passou de primo pobre aos olhos dos que vêem literatura como algo que mora longe do prazer. Forsyth arma textos de ficção com a audácia dos mais audaciosos, e por isso também merece as alturas.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
28/10/1989

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