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O Ônus da Prova,
de Scott Turow

Os culpados são inocentes
Scott Torow sofistica a ideologia do autor de sucesso e aposta em uma estética clean

O Ônus da Prova, de Scott Turow
Record, 481 p.

O advogado judeu Sandy Stern, imigrante argentino radicado nos Estados Unidos, procura entender os motivos que teriam levado sua mulher ao suicídio. Negociatas no mercado de commodities envolvem seu cunhado e cliente, o milionário Dixon Hartnell, agora sob a mira de tortuosa investigação federal que põe a prêmio sua cabeça. Enquanto prepara a defesa de Dixon, o advogado começa a reconstruir sua vida pessoal. Os dois processos se cruzam a certa altura da narrativa: Stern descobre pistas que preferia acreditar não existirem. Daí em diante, ele e sua família acabam envolvidos até o pescoço na trama, correndo o risco de irem para a cadeia. Ao final de muitas surpresas para Stern e para o leitor, Scott Turow remodela as expectativas e encerra de maneira brilhante mais este thriller jurídico.

É assim que o dublê de advogado e autor de sucesso volta às livrarias. A pleno vapor, com domínio total do gênero, ele nos convida para mais um embate nas barras dos tribunais! Ou mudaram os literatos, ou seus leitores. O fato é que a narrativa de O Ônus da Prova tem uma caracteristica que está em moda nos livros de hoje: descrições minuciosas e poucos cortes temporais. Logo no início do livro, entre a morte da mulher de Sandy e seu enterro no dia seguinte, lá se vão quarenta páginas. A leitura de O Ônus da Prova intriga pelo que desperta na multidão de seus leitores. Não era usual até recentemente que o consumidor da literatura de massa gastasse seu tempo longe da TV com calhamaços de quinhentas páginas. O novo frisson está presente até mesmo no último livro do aterrorizante Stephen King. A leitura ligeira de histórias com cenas rápidas passou a ser balanceada pelo exercício da pachorra que percorre ações escandidas com minúcia página por página, capítulo por capítulo. É o que vemos nesse O Ônus da Prova. O gosto pela lentidão é a nova marca da literatura acessível em qualquer aeroporto ou banca de jornal.

Antes prevalecia o bem-estar de saber quais as alternativas da trama. O olho indiscreto do freguês procurava na última folha impressa o desfecho para confirmar o happy end. Agora, essas manias convivem com as tiradas de Scott Turow. Em suas histórias, é costume o caçador virar objeto de caça. A tortura do personagem colocado diante de seus limites é vivenciada obsessivamente em O Ônus da Prova, como acontecia em seu livro anterior Acima de Qualquer Suspeita. As relações entre os dois livros não são apenas incidentais. Sandy Stern existia como personagem coadjuvante no primeiro sucesso. Agora, é promovido a personagem principal. O que mais chama a atenção nos livros é o aparecimento de circunstâncias que acabam jogando por inteiro o advogado num processo em que estava envolvido apenas profissionalmente. Muita gente anda falando que o primeiro livro é o melhor. Eu tenho minhas dúvidas. Pode ser que haja mais pique dramático em Acima de Qualquer Suspeita, mas O Ônus da Prova não deixa nada a desejar. No que interessa de modo direto a quem lê, ação e suspense dividem o espetáculo com o jogo de encenação jurídico.

A chave do sucesso na fórmula de Scott exige maior consumo de papel e mais tolerância do leitor. O curioso no caso é a sensação de densidade que marca a ação arrastada. Como se o livro quisesse incorporar o efeito da câmera lenta do cinema. Através disso, se consegue colar aquele que lê ao tempo psicológico do personagem e dar validade ao desenvolvimento do enredo. Tudo que se arrasta dá a impressão que não vai se dissolver sem mais. O livro, ao que parece, não deve ser como certos produtos alimentícios que chegam à mesa em flocos finíssimos e se desmancham num segundo.

Turow escreve muito bem, sabe nos manter presos ao percurso das páginas. É claro que, por mais que se esforce, a história por vezes se torna monótona, até que novos fatos tragam dinamismo à narrativa. De toda maneira não culpo o autor. Não há como fazer duas coisas ao mesmo tempo: rechear a trama de muita ação e esmiuçar a psicologia dos personagens. Turow opta por essa segunda via. Caracteriza minuciosamente cada nova personalidade que introduz. O autor não sente desconforto quando corta a narrativa para colocar na bandeja profundas revelações sobre os personagens, acompanhando mesmo as digressões psíquicas dessas almas. O Ônus da Prova se interessa pelo enfoque implacável e bem delineado do modo de vida das pessoas, suas reações, pensamentos e motivações. O autor se esmera na malha de situações que cria e disseca ao limite da exaustão o que se esconde em cada personagem.

Se pudesse resumir o thriller jurídico de Turow, colocaria num mesmo saco o maneirismo a Dostoievski com os batidos recursos da arte dos best-sellers. Articula-se o acesso aos dramas da alma humana, descrições empolgantes, pitadas de sexo, suspense, tudo reunido numa narrativa com sabor de atualidade. Turow não se esquece — e é até combatido por isso — de colocar seus leitores cara a cara com a burocracia do mundo da lei. Ele os informa sobre o funcionamento de instituições que estão presentes em sua vida cotidiana: as etapas de um processo da Receita Federal, o funcionamento de um Grande Júri, as artimanhas utilizadas por advogados e promotores, inclusos aí aqueles termos técnicos grifados em latim, como convém.

Turow trabalha como mestre no universo contido e refinado da advocacia, em que as pessoas se relacionam por meio de subterfúgios e jogos de retórica. Não importa o mal que uma pessoa faça a outra. Os personagens jamais saem do limite das regras. Um homem trai outro com a mulher, arruina sua vida, e ouve uma prolixa preleção moral sobre as conseqüências legais de seus atos. Nesse mundo jurídico, os acontecimentos, mesmo ilícitos, nunca se expandem numa ação pessoal que ignore a existência da lei.

Em tal ambiente contido e conjectural, se move com desenvoltura o protagonista Sandy Stern. No seu encalço vai o narrador, dissecando as intenções, analisando detalhadamente cada ação. Por toda parte, os personagens estão buscando prever os atos alheios, como se as atitudes humanas se adequassem a normas rígidas e pudessem, como a metereologia, ser anunciadas nos jornais. Nesse mundo, todos parecem embebidos dos vícios do tribunal. Tudo tem uma lógica, uma explicação e uma motivação palpável. A sintonia com as regras estabelecidas delineia a mentalidade das pessoas.

Que ninguém pense que se fica por aí. Turow oferece subsídios para discussões sobre a metafísica das leis, e ainda fala dos relacionamentos atuais e sobre o sexo na maturidade. Nas extensas páginas do livro, há espaço para todo tipo de colocação. O autor, sempre que pode, pinta a polícia com maledicência. Advogados realmente não gostam, nem confiam nela. E ele faz questão de mostrar que a recíproca é verdadeira. Explica como se faz um diagnóstico de doenças venéreas, e lança pitadas de pimenta sobre as motivações de muitas mulheres que fazem carreira jurídica, esmiuçando seus complexos em relação aos homens. Nada é poupado, nem mesmo o Texas que é apresentado como sendo um lugar calorento, desestimulante e indesejável.

Assim como no romance policial foram incorporados personagens históricos e a implicação política, a revalorização do cotidiano caracteriza uma parte das obras que chegam à lista de best-sellers. Nos padrões da vidinha de uma classe média planetária, Scott Turow dá exemplo de como a visão que se tenha da ordem social encontra balizas no modelo americano de justiça. O gosto pela encenação e artimanha do júri cria um clímax para a moral que orienta o cumprimento de todas as regras. A estética clean que se ampara na caracterização psicológica e nos parâmetros de uma certa jurisprudência se dá bem nos dias de hoje. As notícias do futuro não chegaram até nós, daí que o imaginário da época pode se nutrir do mundo de hierarquias em que se funda o estatuto jurídico. Cinicamente instalada entre o bem e o mal, a ideologia do autor de sucesso por fim é que vence. Tudo bem, estamos acostumados a conviver com inocentes culpados.

Paixão pela lei

Tão estimulante quanto a sensibilidade do leitor para histórias compridas como O Ônus da Prova, é a retomada do labirinto judiciário como pano de fundo da ação romanesca. Recurso de bilheteria garantida nas telas do cinema, a literatura se vale com menos voracidade dessa mesma ambientação. A grande arte literária nos dá exemplos de cenas intensas passadas em tribunais e bastidores jurídicos, como em O Processo, de Kafka, e Os Irmãos Karamázovi, de Dostoievski. Os exemplos eruditos são, no entanto, superados pelo interesse que a literatura ligeira dedica ao universo dos tribunais. Habitada por advogados, testemunhas, réus, jurados, promotores, juízes e jornalistas, a Corte de Justiça serve às inquietações que perpassam a rotina dos homens comuns. A atenção do público por O Ônus da Prova explora a antiga paixão pelo ritual dos julgamentos, o artifício dos argumentos e a atração pelas togas dos homens da lei.

No passado, grandes filósofos, poetas e escritores da Roma Antiga eram exímios oradores e advogados, que compareciam entusiasmados aos tribunais e aberturas de testamento. A multidão apreciava os lances jurídicos como agora a uma partida de baseball. Os cidadãos tinham aulas de retórica na escola. Exercícios jurídicos hipotéticos serviam de motivo para intermináveis discussões entre letrados do Império. Hoje, a cultura jurídica, feita para consumo, é o menu ofertado por Scott Turow. Ocorrem as maiores indignidades, seja na vida privada ou na vida pública, mas nada é tão forte a ponto de levar o protagonista a pular o muro e reagir de forma visceral. Para o autor, vale mais a satisfação da curiosidade pelo que é uma sala de júri e o processo dos promotores diante de fraudes que lesam o governo. Seus personagens são polidos e agem no espaço institucional previamente delimitado. Se o advogado se sente prejudicado por alguém, uma boa conversa é o caminho para acertar arestas e diferenças. O império da lei deve ordenar as relações, já que tudo é previamente definido e está prevista sua aplicação imediata. As patifarias que o protagonista vai aos poucos dissecando e articulando são prazer suficiente para quem ama descobrir e acomodar os atos e fatos no quadrado formalismo da legislação ou da motivação psicológica.

Seria proveitoso entender melhor essa atração por uma coisa tão desinteressante como a lei. O cenário jurídico é um dos casos típicos em livros, filmes e imprensa de uma ambientação de narrativa que permanece ao longo do tempo. Os processos também perduram anos, são teatrais em demasia, tiram o ânimo de qualquer um, mas ainda assim fazem platéia.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
10/11/90

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