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O Peregrino Secreto,
de John Le Carré

Nostalgias de um espião

O fim do comunismo não impediu John Le Carré de manter vivo o gênero que vingou com a guerra fria

O Peregrino Secreto, de John Le Carré
Editora Record, 351 p.

Se a guerra fria acabou, por que continuar a escrever livros de espiões? A última obra de Le Carré chega às livrarias num momento delicado de instabilidade e dúvida. Um golpe de estado depõe as mudanças na URSS e traz a linha dura de volta ao poder. Três dias depois, os acontecimentos se precipitam ainda mais numa espetacular reviravolta. O golpe é sufocado pela reação popular. Na esteira da revolta, a perestroika, a glasnost, o Partido Comunista se desintegram. Não há mais partido único na URSS, a KGB está sendo destroçada, o exército vermelho é obsoleto, a Europa Oriental tem governos próprios, muitos deles pró-ocidentais. O velho urso está combalido. Antigas referências explicam hoje pouca coisa.

Atônito diante de tantas mudanças inesperadas e desinformado sobre os possíveis rumos dos acontecimentos na política internacional, o leitor que tradicionalmente consome best-sellers de espionagem pode sentir hoje a necessidade de se assentar na sua poltrona predileta, e buscar refúgio no autor que reconhece como um dos melhores do gênero. Em plena vigência da glasnost, no seu penúltimo livro – A Casa da Rússia, Le Carré manteve acesa a chama da guerra fria, pelo menos para os profissionais da comunidade de informação.

Acontece que o homem que escreveu sucessos atrás de sucessos no gênero, desde O Espião que Saiu do Frio, está mudado também. A pista para entender o que se passa já havia sido dada em A Casa da Rússia. Os personagens de Le Carré estavam se tornando mais instáveis, volúveis. O mundo se tornava menos pesado ao redor das tensas tramas que moviam os espiões. Apesar de o autor ainda defender as posturas rígidas dos “homens cinzentos”, nos gabinetes dos governos; seus heróis fraquejavam, começavam a se mover por emoção.

Agora, em O Peregrino Secreto, Le Carré nos oferece uma das mais lúcidas obras do gênero de livros de ação. Um réquiem belíssimo dos tempos da guerra fria vai surgindo na memória de Ned, um espião à beira da aposentadoria, que dá aulas numa academia que forma novos espiões. O panteão de personagens que habitou suas obras ressurge das cinzas. Convidado por Ned para discursar aos noviços, o conhecido George Smiley permeia a narrativa, abrindo cada novo capítulo do livro com colocações éticas sobre os fatos marcantes das últimas décadas. Ao longo das outras tantas páginas, ressurgem Toby Esterhase, Bill Haydon, Scott Blair e vários outros, em narrativas nostálgicas de desses episódios marcantes da vida dos espiões.

Para não decepcionar absolutamente o leitor conservador, Le Carré preserva muitas das suas mais conhecidas virtudes. O texto é conciso, bem elaborado. Os temas das reminiscências, que formam diversas historietas, são pitorescos e repletos de bons momentos de ação. E acima de tudo, os diálogos mantém seus grandes momentos nos interrogatórios. Conhecido por essa característica, Le Carré exibe em O Peregrino Secreto o domínio completo da arte. Seu agente Smiley dá aulas estonteantes sobre o assunto.

Nem tudo está perdido. É preciso concordar com o autor, quando diz que a competição acirrada do mundo, agora em guerra econômica pela hegemonia de áreas de influência comercial, vai trazer nova força à espionagem, especialmente a industrial. Qualquer sujeito mais antenado nos bastidores do poder percebe que os “homens cinzentos” nunca vão deixar de existir. “A espionagem é eterna… Se chegar o dia em que não restar inimigos no mundo, os governos os inventariam para nós…Além do mais… quem disse que só espionamos os inimigos? Toda a história nos ensina que os aliados de hoje são os rivais de amanhã. A moda pode determinar prioridades, mas não a previdência. Pois enquanto patifes se tornarem líderes, estaremos espionando… enquanto as nações competirem, os políticos enganarem, … a profissão de vocês está absolutamente segura…”, ensina-nos um de seus heróis, George Smiley.

Se o incremento da atividade de espionagem motivado pela necessidade crescente de informação indica que a atividade das comunidades de informação está longe do seu ocaso, morre hoje com certeza o papel que representam os espiões no ideário do homem comum do ocidente. Estes homens imaculados que “lutaram” anos a fio pela liberdade na cortina de ferro, foram derrotados pelo povo dos países considerados antes como inimigos. “E a idéia parecia ainda mais desconcertante quando refleti que não éramos mais nos, Aliados ocidentais, mas sim a própria Alemanha Oriental, quem estava se empenhando para extinguir sua existência.”, constata Ned, o personagem principal, numa passagem do livro.

Nada melhor para espelhar esse fim que a aposentadoria dos agentes de Le Carré, ele mesmo um ex- do serviço de Sua Majestade. Privados da ação em campo, do risco da morte na luta pela “liberdade”, lhes resta embarcar numa viagem de volta, pelos caminhos melindrosos que as lembranças percorrem. Quando a memória é acionada e a ação cai para segundo plano, morre o espião enquanto ator de uma intriga novelesca, atrelada a uma determinada ideologia, e surge um romance denso e humano, expondo conflitos que não eram mostrados anteriormente. Os homens que se movem num mundo secreto não tem mais o caráter decidido do espião dos anos cinquenta. Eles mostram as máculas que uma vida em demasia na sombra lhes causou. Tem emoções, idéias e principalmente dúvidas. A memória mostra que seu comportamento nem sempre foi guiado por ideal, mas por dinheiro, sede de vingança ou pelo amor. É preciso aplaudir: a história de espiões agora é mais humana, mais poética.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
5/10/1991

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