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Sob o Céu de Novgorod,
de Règine Deforges

Sob o céu de novgorod

De Régine deforges, Trad. A. B. Pinheiro de Lemos Editora Nova Fronteira, 296 p

Existe um tipo de livro que o leitor abre sabendo que vai encontrar pela frente uma carpintaria literária medíocre e uma história fácil , montada sobre um esquema que ele reconhece, e é exatamente isso que ele está procurando. Quem, na beira da praia, numa rede no sítio, sob uma coberta na cama, abrir um livro e viajar numa história bem light e previsível?

Sob o céu de Novgorod é um livro que se satisfaz os quesitos para ser indicado para essas ocasiões e leitores. Mais uma vez, Régine Deforges, a celebrada autora de A Bicicleta Azul, vem estimular o desejo de leitura vulgar. Realiza a ousada de remar a favor da maré e de fazer algo que outros já fizeram. Estabelece um pacto de complicidade com o leitor preguiçoso, para conduzi-lo por um romance de cavalaria em pleno século XX . Alguém que consegue escrever nos dias de hoje “… era uma linda tarde de verão…” merece minhas palmas.

Sob o céu de Novgorod pretende ser um romance biográfico. Conta a história de Ana de Kievi, uma princesa russa, que deixa uma requentada corte, com influência de Bizâncio, e viaja à França semibárbara, para se casar com Henrique I, um governante que não se interessa por mulheres. A necessidade de gerar um novo rei para a França e as alianças políticas exigem a consumação do casamento. A personagem sem jamais questionar a propriedade de seus atos, vive infeliz com seu amaneirado rei. Para escapar à melancolia, ela se entrega a devaneios em que relembra o amor impossível por Felipe, um jovem de sua guarda pessoal na Rússia, e se dedica a obras assistênciais de caridade.

A narradora descreve com minúcias os cardápios, roupas, decorações dos salões, bastidores da aristocracia. Entremeadas com casamentos e banquetas infindáveis, a história da princesa segue um curso linear. Entre guerras de senhores feudais, torneios de cavaleiros e a picante história sexual da corte, a rainha da França vai parindo seus filhos. Enquanto isso, sofrendo a mais terrível das dores de amor, coma face destruída por um acidente, Felipe volta à cena. Amargurado, se desloca até a França, onde se tornará o Cavaleiro Mascarado. No reino de Henrique I, ele lutará com todas as suas forças para estar ao lado da rainha, sem jamais poder revelar a ela quem realmente é.

Alguém contratado pela editora contas nas orelhas do livro que Régine consultou especialista, e partiu dos poucos registros sobre a vida de Ana e Henrique, para construir sua narrativa. Afinal, isso é bom para o Marketing. Mas na leitura se percebe que não é só o interesse histórico que move a autora, e sim a sintonia com o leitor acomodado e o conforto que isso acaba trazendo ao bolso. Para a simpática dama francesa, a Idade Média não é um período histórico e real, mas um ideário sobre aquela época que circula por ai e já foi explorado exaustivamente por vários autores. Não lhe importa como era Ana e seus castelos, mas assim como as pessoas imaginam que seria uma certa Ana kiev e seus castelos. Régine reescreve a Lenda, finge desnudar a realidade que está por trás dela, dando a aparência de real ao que não passa de mais uma sobreposição de mito. Esse é seu único mérito e já é demais.

No livro, a Idade Média é revisada apenas para fazer emoções fortes. Régine tem essa mania que o cinema explorou até cansar: desloca expectativas, hábitos e costumes atuai para história passada. Na sua França de 1050, o provençal é o rock’n roll a juventude ‘hippe’ se banha nua e transa sem cerimonias nas margem de Sena. É o manjado recurso de nos transportar a lugar ou tempo exóticos para injetar fantasia à narrativa. Quem não deseja acompanhar de perto as intrigas e o sexo da corte, ver monges pegos em flagrantes se masturbando, passar por um ritual de feitiçaria demoníaca, apreciar um torneio de cavaleiros, e a seguir presenciar um rei transando com seu amante?

Com sinceridade, tem gosto para tudo nesse mundo. Na minha opinião, trata-se de um livro maçante. A história mal se sustenta como trama e se assemelha, por fim, à mera fofoca. A perpectiva feminina ultilizada por Régine na narrativa é elogiável, está na moda também . Mas não basta retirar o foco da visão masculina, é preciso também contar uma história que interesse a mais gente. O mundo das mulheres explorado exaustivamente talvez restrinja o público leitor às cumplicidades de Régine. Os valores culturais do livro não são dos que mais me agradam. A princesa heroína se destaca por sua beleza, frivolidade, sensibilidade e caridade com os pobres. Jamais questiona as guerras feudais, se acomoda dócil aos seus ‘deveres de mulher’. Além do mais, é chegada à bruxaria – que mania tem as mulheres de compensar fraquezas com feitiço! Como se não bastasse, ela se sente atraída por um conde cruel e másculo e consegue conciliar a coisa com o romântico desejo de ser amada. Assim não dá: essa rainha é muito mal resolvida.

Ao terminar as páginas de Sob o céu Novgorod, não pude deixar de recordar o comentário de uma amiga, flagrada lendo A Bicicleta Azul. Ela me disse que os livros eram uma bobagem, mas que estava adorando aquela bobagem. Que bom, a literatura de massa continua a mesma. Ainda existe um Cavaleiro Mascarado, que ama profundamente sua Rainha, e o seu amor continua impossível. Só se realiza na morte e no desejo do leitor.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.

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