ANA
![]() 25/11/13
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A N A Álvaro Andrade Garcia ——– NOTA Ana é um romance intimista narrado na primeira pessoa. O livro conta a história de uma mulher que divaga sobre os acontecimentos de sua vida, a partir da rememoração de um carnaval imaginário. A narrativa se desenvolve em blocos de parágrafos, nos quais a pontuação obedece a critérios de ritmo mental e não à gramática convencional. À medida que a história se passa, uma marcação gráfica, que dosa espaços em branco entre os parágrafos, vai impondo densidade e silêncios aos pensamentos da personagem. ———— ENTREVISTA COM AUTOR Álvaro, como surgiu o livro Ana? Como tudo que escrevo, ele começou com uma série de anotações que fiz sistematicamente em uma determinada época da minha vida. Esse livro é um projeto antigo. Se não me falha a memória, o projeto começou em 1987 — eu não sou muito bom com datas — e nessa época mesmo, mais ou menos um ano depois, eu finalizei o livro. Me faltava o nome e o trabalho de elaboração formal do texto. Mas a idéia estava pronta. Por que o nome Ana? Eu queria um título que fosse bem pessoal e direto. Um nome próprio. E esse nome se presta a isso. Além do mais, seu significado está ligado a graça. É um nome sonoro e pleno de ar, como a história que o livro conta. O livro fala de que? A história do livro é bem intimista, densa. É o pensamento de uma mulher em curso que, numa determinada circunstância — que não vou contar agora, para não atrapalhar o leitor –, divaga sobre sua vida, pensando em torno de um carnaval imaginário. Um carnaval imaginário? Sim, mas nem por isso menos real! Cabe ao leitor descobrir esse momento na vida da personagem e na sua própria vida. O menos importante no livro é saber se os fatos existem ou não. O texto fala um pouco do conhecimento que adquirimos, sem perceber, da forma mental do mundo que se formula individualmente em cada um de nós, e que, nesse sentido é única e intransferível. Essa é uma coisa forte do livro. Tentei falar de uma vivência que só aquela pessoa, a personagem, tinha. Busquei algo extremamente pessoal. E nesse sentido o livro é universal. Todo mundo pode compreender o que a personagem carrega com ela, por que todos carregam algo assim. Como diria o poeta T. S. Elliot, numa citação de alguém: “embora a razão seja comum a todos, agimos como se cada um tivesse uma própria”. Eu tento penetrar nesse espaço mais íntimo de cada um. Isso é um desejo muito forte em mim. Vou te contar uma história: sempre tenho uma emoção muito forte, quando vejo alguém morto. Eu me pego olhando para o corpo inerte, tentando imaginar a quantidade infinita de vida que estava ali, animada, intensa, e que se foi junto com a pessoa. A quantidade de emoções, vivências e pensamentos que se perdeu para sempre, por que esteve incomunicada, enquanto a pessoa vivia. Por que o tempo real, externo a nós, não dá oportunidade às pessoas de fluirem esse mundo para fora e para dentro. Na maior parte do tempo isso não é possível, além da dificuldade, eu diria quase metafísica, de fazermos isso. A personagem principal é uma mulher e a história é narrada na primeira pessoa… Isso é interessante. Eu mesmo tentei muito entender o por quê. Acho que desejava ver por outro prisma. Ao falar das coisas mais íntimas, mais internas de uma pessoa, senti necessidade de estar sendo uma mulher, até porque não sou. Foi difícil me colocar no lugar de uma mulher na hora de escrever. Usei muita coisa que aprendi com amigas, mulheres que conversam intimamente comigo. Algumas já leram o livro e me deram um feedback. Afinal, eu precisava saber o que acontecia quando uma mulher lia Ana. Elas ficaram impressionadas com a força de emoções tipicamente femininas que existe no livro. Mas flagaram aspectos masculinos que acabei deixando escapulir na trama. De toda maneira, o livro fala do relacionamento entre mulheres e homens, e nesse sentido, na minha opinão, a alternância só enriqueceu a história. Voltando um pouco, por que reviver um carnaval? O carnaval é um espaço para a subversão de valores, para a possibilidade da expressão de desejos que não se manifestam cotidianamente. E é isso que acontece com a personagem, e também conosco algumas vezes. O carnaval sempre me atraiu muito como a possibilidade da existência de um tempo fora do tempo na vida real. Transposto para a história, ele cria o espaço de metáforas que eu precisava para expressar uma manifestação da amálgama de emo-pensa-memo-mento-ações que existe em todos nós. É legal falar da beleza sublime que isso tem, e o carnaval é uma forma de se fazer isso. Você falou que gastou muito tempo na elaboração formal do livro. Como isso aconteceu? Eu quebrei muito a cabeça montando a história dentro de algumas premissas que desejei, do ponto de vista formal. O conceito básico veio da minha infância. Na época do primário, eu escrevia histórias que não tinham início, meio, nem fim. E eu enfrentava a professora de português anunciando que, quando fosse presidente, modificaria a gramática. Bem, assim fiz. Nada que não tenha sido feito antes, mas com algumas particularidades que constroem a estética do livro. Basicamente, eu trabalhei com uma pontuação completamente fora da gramática tradicional, usando blocos de parágrafos intercalados por diferentes espaços em branco. O trabalho foi todo esse. Contar a história seguindo o fluxo do pensamento, aproximando a linguagem escrita dos nossos momentos de divagação. A delicadeza do processo consistiu em não distrair o leitor com pirotecnias formais, e ao mesmo tempo não oferecer o que ele já conhece. Eu quis apresentar a história de uma maneira diferente, sem que o leitor se desse conta disso durante a leitura. Por exemplo? As vírgulas, pontos, etc, cumprem a função de inserir paradas, pontos de silêncio dentro do fluxo do pensamento. Um verbo pode estar separado do sujeito, se naquele momento há uma interrupção do pensamento, um parágrafo de frases grandes despontuadas pode traduzir uma idéia que brota plena, e pausas, várias pausas podem marcar momentos de hesitação e multidireciomento. Eu trabalhei a relação entre o texto e os momentos mentais da personagem, tentando aproximá-los do modo como são vividos por nós. A distância entre parágrafos é outra característica importante do livro. A medida que a história decorre os parágrafos vão se distanciando uns dos outros, forçando pausas que destacam ou submergem idéias. Essa estrutura vai sugerindo a descontinuidade do pensamento, os parágrafos vão se espaçando e os pensamentos se incorporando de mais silêncios e menos palavras, e nesse sentido, se tornando mais intensos. Eu trabalho tudo numa outra lógica. A gramática nesse caso não é a organização de idéias e pensamentos estruturados em classes de palavras subordinadas entre si, mas a organização de palavras-silêncios que conforme seus significados, justaposições e ritmo — principalmente o ritmo — representam a interação entre nós e o mundo. Se eu usasse a gramática tradicional, organizada, estruturada, hierárquica, como poderia compartilhar pensamentos e vivências tão turbulentas, como as que têm minha personagem e todos nós? Estamos falando da representação de um tipo de pensamento mais caótico? Essa é a delicadeza da literatura. Compartilhar o caos, a incerteza, mas de forma transparente, cristalina e reveladora. A personagem se descobre, e nós também somos capazes disso. A gramática, que nada mais é que a ligadura entre as palavras, a atração química que exercem umas sobre as outras, pode se estruturar das mais variadas formas, e assim o faz no curso do nosso espírito. A língua escrita formalizada é que, infelizmente, nem sempre se dispõe a fazer isso. Vou te dar outro exemplo: a história do livro é contada no tempo verbal passado. A partir de um determinado instante, ela transmuda para o tempo presente e depois volta ao passado. Como é possível existir um tempo presente antes do passado? É que no livro eu não usei os tempos verbais para marcar a existência ou não de fatos dentro de uma linha do tempo externo à personagem, eu manipulei a estrutura temporal dos verbos para encadear os momentos de vivência e o estado psicológico da personagem. Uma idéia vivida no tempo presente é diferente de uma idéia vivida no tempo passado. Passado, nesse contexto, significa distância de uma idéia em relação a nós, distância no tempo externo também, mas sobretudo distância por negação, por afastamento afetivo ou por outras razões. O tempo, nesse caso, foi usado para aproximar e afastar as vivências do fluxo de consciência da personagem e não para pontuar os acontecimentos. Dá para entender? Quando ela se acerca mais próxima de si mesma, ela vive um presente intenso, quando se afasta, ela perde esse presente e volta para o passado. E isso tudo é feito para que fique imperceptível ao leitor, porque é assim que a gente vive as coisas mais íntimas. A gente não sente, nem percebe, mas todos nós vivemos a maior parte do tempo regidos por outras gramáticas. ————– LIVRO
“A natureza são duas. Carlos Drummond de Andrade
Há um lapso, um instante crucial onde tudo se faz. Um momento eterno que acabei experimentando. Sofri depois esse medo esconso, como se fosse possível continuar ali, suspensa no tempo. Tento me explicar outra vez: não se percebe, mas tanta emoção encontra rumo nessa hora. É quando compreendo uma realidade larga demais, para se pensar inteira. Será que sofrer não é falta de paciência? Meus desconhecimentos esperam saber, a certeza quer estranhamento, revejo, busco outra vez. Se pudesse, traria o mundo inteiro para dentro de mim. Quem criou o limite. O corpo. Eu era assim mesmo, antes de mim. Esfacelo, como uma planta seca. Onde vai terminar o vento, esse que sopra minha vela. Onde foi parar de ser o que nunca foi? Aponto o dedo para o meu rosto espelhado, não reconheço, não reconheço porque sou nova. Sei, mas não sabia, algo transformou, quebrou a continuidade. Há um fosso, entre o passado e o presente, entre eu mesma e a forma que habita meu corpo. Eu desencorpada e amnésica. Pergunto. Sou agora? Ou fui? A diferença pode parecer inútil nesse instante. Há um fosso que separou os dois lados de mim, sou assimétrica, e não sei mais explicar essa maneira de ser. Os olhos que vieram até aqui, não continuem. Que os movimentos se encerrem. É inútil prosseguir. Certas vezes, as recordações vêm súbitas. Uma porção do tempo é sacada para fora do seu lugar e aproxima; não há duração entre cronologias. Agora e foi são uma coisa só. Paro. Seu cabelo é castanho. Centenas de olhares estão ao redor, o vento passa por uma fresta da janela. Uma cantilena, paro, rodopio na praça. O coreto, a mesma banda, e a música toca. Paro, lembro, a estação cheia, apenas recordo. Quando foi que te perdi? Tantas vezes você foi um nome forte demais e agora nem sei te colocar sentido. Lembro, engulo, mastigo. E desconheço. Irreconheço o que é próximo. Até eu mesma. Já não alcanço respostas. O mundo se torna áspero, cheio de pontos para a mão tatear. Transformo. Percorro, mas qual estrada, não sei mais. Farrapos, onde estão as ligaduras, a malha da minha vida, da minha vida, que se perdeu.
Tudo se perde nesse turbilhão.
O remanso da amnésia.
Lembro, quero lembrar o mundo inteiro, lembrar e morrer, lembrar e morrer, quantas vezes forem possíveis. Quero o limite humano, agora quero a tensão. A partícula mais veloz, o futuro, a infância, vivi. Numa cela, recebendo ossos e chocolates, recebendo quadrados para colocar na cabeça e me punir dos desvios, e a culpa, a culpa cada vez maior. Não quero morrer! Não quero. Nunca!, ninguém pode morrer numa hora como essa. Por que minha mãe me sufocou assim? Por que não entendo o que acontece. Realizo e ninguém vê, desmudo e no entanto não há som. Nunca estive tão lúcida e tão perto de sucumbir. Tenho três pernas e percorro distâncias que não aprendi. Desaprendo. A cada dia surge mais infância em mim. A antiga casa do interior, meus tios. Meu passado se prepara para desabar sobre a cabeça. Ele que nunca mais me lembrava, ele, pálido, ofuscado.
Pulando, vou pulando, são saltos, ausência de trégua, invalidez, fraqueza. Flutuações. Antes daqueles dias.
Eu era uma pessoa comum. Tinha emprego, casa e comida. Tinha família, uns sonhos até. E uns dias de ordem natural no suceder. Banho, café, trabalho, almoço e trabalho; descanso da guerreira uma vez por ano, nas férias. Fiz cursos. Estudei e cheguei a ter diploma. Mas não sou o que desejava ser. Só depois fiquei sabendo. Alguns homens passaram pelo meu caminho, uns amei, outros nem tanto. Vi muita coisa, estive em muitos lugares, mas não permaneci em nenhum. Me assusto quando penso assim. Eu penso demais aqui, as idéias vêm sempre em golfadas. Não sei o que fazer delas. Elas são eu? Quem sou afinal, esse corpo repousando na cama, tudo isso que sinto também? Ando sensível, delicada, tudo me atinge em demasia. Meu coração está irrequieto. Ainda assim me resta um tempinho para ser eu. Ora, eu, já perdi meus limites. Não estou mais aqui.
Meu sonho é o mesmo, dia após dia. Oito anos se foram e a noite pertence a esta paisagem que se repete. Quando ele vem, tenho certeza de que é a primeira vez, mas não, depois encontro os mesmos sentidos em tudo que se passou. A família é grande, alguns se dispersaram por outros estados. Tem gente com meu sangue até no exterior. E muitos perto de mim, vizinhos, colegas, mas nossa distância é maior. A tal distância que não se mede em metros. Que se sente, como amor, ódio e raiva. Distância é um sentimento como outro qualquer.
Aqueles dias ensinaram muita coisa. Se é que existiram. Bato ponto num escritório no centro, terceiro andar, telefones, mesas, pilhas de papéis. Secretárias, chefe. O destino do mundo? Será? Cada dia desaprendo mais. Trabalho numa repartição do governo, faço projetos para recuperação de monumentos históricos. Não é bem o que sonhei para mim, mas é melhor que muita profissão por aí. Os projetos que ajudo a elaborar dificilmente vão ser executados, mas tenho o dinheiro do aluguel no fim do mês. E acabo fazendo o que gosto. E me irrito também! Não trabalho mais nesse escritório! Há anos não vou nunca mais lá. E minto também. Ele está aqui, dentro de mim, nunca me deixou. O tempo é uma mentira. As palavras, os verbos nos afastam daquilo que está dentro de nós. O tempo é uma forma torpe de afastar. É uma distância também. Eu sinto sem palavras.
O que penso agora é o que existe. Gosto de suflê de milho, banana frita e chocolate. E calda de caramelo nos meus sundaes. Gostava, agora acho um pouco doce, para ser sincera doce demais. Meu trabalho sempre foi uma morte lenta. Dizia que adorava fazê-lo. Pura tapeação. Muita crítica nos arrebenta. Um pouco de autoconsideração sempre é bom. Há muita notícia boa que aparece quando menos se espera. É que esperamos olhando para o lado errado da rua. Na hora de atravessar, acabamos sendo atropelados. Minha cabeça é só lacunas, tudo passa mais rápido nessa hora e eu ainda o amo. A cada minuto a vida deixa sobre meu corpo uma leve impressão da sua passagem. Uma marca, uma cicatriz, uma imagem bem-vinda, um pensamento. Como é bom ser um corpo que sente a vida como uma brisa ligeira. A morte não. Tromba na gente. Os talhos. Tive. Aborto. Acidente de carro. O câncer. A morte da minha mãe. Tive uma cultura razoável, uma boa educação. Tocava piano, dancei um pouco. Um volks, um som legal, queria ter outras coisas. Sonhava em viajar pelo mundo. Falei até em deixar tudo para encarar a estrada. Não fui, não fui eu mesma também. Era difícil me encontrar. Ainda é. Vai ser. Consigo sentir meu suor, meu pulso, minha respiração, são momentos emocionantes, estes. Vivemos todos os dias, mas nos encontramos apenas em certos momentos. Minha mãe esteve comigo na infância. Era bonita, forte e decidida. Foi o que uma mulher podia na época, se casou com José. Meu pai, um muro. Nunca falava. Ele foi carinhoso? não sei, talvez à moda dele. Só lembro de vê-lo diante do sol, dizendo que o mundo não prestava. Às vezes me surpreendo pensando como num diálogo. Meu pensamento também é uma fala. Quando falo por ele, converso para quem? Meu pensamento é confuso como o das pessoas. Falta ordem, mas tudo se acerta. E essas perguntas que me aparecem. Cada pergunta, uma lacuna. Mentira. É engraçado como a gente se engana pensando. E esta é a mentira mais absurda. O certo foi uma estrada muito estreita que construíram sem me perguntar. Mas olhei para o lado. Aqueles dias vieram pela tangente. E acabei recompensada pela oportunidade. Fui correta, todos somos. Respeitava as leis, os costumes, transgressões só as discretas, sem comprometer. Que baderna, meus namorados, minha vida, meu trabalho, a gente brilha ou se afunda. Agora é assim. Devo me alimentar com freqüência, mas estou enjoada. Tenho que dormir bastante e não quero. A fragrância dessa flor é a única coisa que me atrai. Seu perfume é tão belo… diria, antes de começar a chorar outra vez. O mundo merece ser desvendado. Estou suando muito, uma gota cai, logo vem outra. Meu cheiro se espalha pelo quarto. Será que os outros o sentem como eu.
Minha irmã me visitou hoje. Quero dormir. Descansar, quero ficar turva. Quando a luz se apaga, aquieto no escuro. Na sombra tudo fica mais próximo. As coisas se fundem comigo, perdem a forma e a aparência.
Estou num salão iluminado com muitas pessoas. Todos usam máscaras. Não. As máscaras estão sem corpos. Um salão com máscaras coloridas, apenas. Dançam com entusiasmo. Eu estou lá, uma máscara azul, com três estrelas na direita. De repente é pleno carnaval. As máscaras vestem pessoas, e eu estava lá. Quando olhei. O salão se dobrou em quatro, sumiu e fiquei só.
Apenas olhava para o alto e esperava um recado das estrelas. Pura superstição. Mas aquela era uma noite assombrada. A razão saiu correndo. Mantive os olhos pregados no céu, até que flores começaram a brotar das estrelas, formando galhos que caíam na direção da terra. Meus olhos se voltaram para dentro. E começaram a enxergar. Surgiu na minha frente um portão de ferro, muito familiar. O tempo parou ali. Até que uma sombra apareceu do outro lado. Um arrepio intenso percorreu meu corpo de cima a baixo. Uma sombra humana, harmoniosa, o espaço se transformou outra vez. O portão fica morno. E se abre. Uma imagem emoldurada pelo sol. E tudo é tão rápido, e sem volta. Uma espiral subindo ao céu, um filamento de luz sobre o corredor.
Ele está aqui outra vez. A luz me alivia. Meu coração trota, a respiração está ofegante. Não me lembro de nada. Sinto falta de ar, ânsia, tonturas, estou bamba de tanto pavor. Devo ter gritado. Tudo que vivi deve estar lá, ressoando naquele sorvedouro. O que penso é incapaz de atingir a plenitude de um simples momento! Estou só, mas fico certa, absoluta de que ele estava aqui. Mais uma vez incompreendo. Quando é que ele se afasta de nós?
O sonho retornava e eu ficava deprimida. Hoje sei que entristecia por outras razões. Sempre cultivei essa dor que se arrasta ilesa ao longo dos anos. Tive todo o tempo do mundo para ser feliz e não fui. Tive muitas coisas, menos eu mesma. Muita emoção e ninguém para compartilhar verdadeiramente. Trabalhava junto, dormia junto. E daí, falo de compartilhar. Dividir o corpo, o dom. Somos dom. É só. Deveria. Naqueles dias foi. A rotina estava me extenuando. Rotina é algo que se gosta ou se foge dela.
Não é aflitivo, algo que vem de dentro de nós e que não é palpável. Que não é compreendido? Minha infância. Brinquei muito na rua, correndo entre carros estacionados, subindo em árvores. Assim se foi meu primeiro tempo, entre o pique e as coleções de boneca. E o primeiro namorado aos quinze. O cara foi tudo que desejei um dia. Apaixonei-me perdidamente. Mas ele não quis ficar comigo. Essa vida é tão engraçada. Eu estava numa praça dando tiros para o alto. Me iludia, achava que fazia algo original. Antes daqueles dias eu estava mal dos nervos, isso sim.
Apesar da falta de dinheiro e da falta de coragem, desafiei as pessoas e comprei um pequeno apartamento para morar antes de me casar. Enfrentei resistências, meu pai dizia que não era correto uma mulher morar só, minha mãe chorou bastante, depois acabaram se acostumando.
Sempre tive medo de realizar meus sonhos.
Ele foi embora quando forcei a barra. Fui ciumenta. Torcia para que quebrasse a cara. Separamos. Muita gente veio depois e se foi da minha vida. Para sempre. Vinham por uma razão, uma coincidência, às vezes, e depois acabava o relacionamento. Cito nomes, não encontro ressonâncias. Mas decerto deixaram alguma coisa em mim. Menstruação com treze anos e susto também. Aquela coisa é marcante. O sangue. A gente vira moça da noite pro dia. Completa, com seios pontando e doendo. Meu filho, uma vida inteirinha que resolveu crescer em mim. Ai ele nasceu. Eu que era dois, fiquei uma. Aquele aborto. E pensar na morte antes mesmo da vida, quando ela devia começar. Loucura. Desatino. Numa noite qualquer conheci o pai, o suficiente para estar ali, junto, pele na pele, mas faltava o resto. Não veio a menstruação. As resoluções, o ato. Aquela mulher suja, aquelas mãos brutas. Fiz. Chorei, choro, eu depois queria tanto aquele bebê. Uma rua plana, larga, com casas baixas, ajardinadas. Cinco meninos pulando na água que escorre de uma mangueira. Seus gritos, e eu apenas olhos. Era meu filho. Não é mais. Não foi. A vida traz sementes dentro de nós, se não brota uma, arrancada, temos outras, e outras, milhares delas. Afinal, sou uma mulher. Aquele outro foi um chato. Meu herói na universidade. Revolução! Armas em punho. O sistema nos vigia. Vamos derrubá-lo. O capital industrial, a direita. A ditadura, os filhos da puta que estão aí, defendendo privilégios. Eu não vim para derrubar nada, quero viver. Ele desejava transformações radicais na sociedade, o fim da injustiça. Só que era obrigação para nós. Continuo alheia aos burgueses, mas abandonei esse tipo de luta. Minha causa é uma vida como aquela, daqueles dias impossíveis.
Queria um companheiro que amasse loucamente. Ele foi, foi mais até. Não encontrei homem algum como ele. Acabei casando com outro. Quantas vezes a vida não é assim? Minhas costas ardem onde não posso alcançar. Nem roçando o colchão faço sumirem as pinicadas. Também sempre gostei de animais. Em especial de pássaros. Tive alguns na gaiola, mas depois larguei disso. No fundo sempre achei que nossa maneira de amar acaba sendo prender. E toda hora justificamos: pássaros soltos morrem de fome, gato come. Fui livre quando adolescente. Morria de medo do mundo, mas o encarei de frente. Meus pais colocavam alguma ressalva na auto-suficiência que tinha, tentavam ser coerentes. Não fica bem para uma moça fazer certas coisas. Eu já reparei, a condição feminina é a condição do medo. É gente pondo medo na gente o tempo inteiro. Uma coisa puxa a outra, penso assim. Será que só me vem à cabeça as marcas, as rupturas. As pedras no leito do rio. Os pontos finais. E a vida que correu nesse meio, onde está? Não me lembro. Quase nada resta, estas imagens tão frouxas, o que fica afinal? Chorei quando me levaram para a escola. Meu primeiro dia foi um arraso. Depois chorei por toda infância. Tinha medos, dores incompreensíveis, muitas vezes sem razão. E fui assim, chorando até o fim da universidade, agora me concentro e num relance passam todos os anos, eu assentada na carteira olhando para frente. O que realmente aprendi com isso? Formei e vi meu pai no dia mais feliz da sua vida. Uma filha doutora. Apesar de história ser algo enigmático para ele, com comunismo e muitas doutrinas estranhas. Meu pai era duro, mas acabava sempre me deixando fazer o que queria. E me acenou com lágrimas nos olhos, no dia da colação de grau. Tenho poucos amigos, e sou uma emotiva confessa. Abro a boca agora. Queria ser forte. Muito mais forte do que sou. Minha irmã é uma grande amiga, conversamos muito hoje, suas visitas são sempre reconfortantes. Ela é durona.
Certa vez meu pai nos contou a história da areia. Eu era menina. Ele disse que a areia foi pedra um dia. As pedras também não resistem ao tempo. E a areia vira o quê? Férias outra vez, passeios à sorveteria, alguns livros, namoricos. A eternidade na memória. E lembro, passo a ferro essas besteiras, imaginando algumas coisas e concluindo um monte de outras. Sonho de novo, ok, o mesmo sonho. Dessa vez é um quarto parecido com o meu, quando adolescente, limpo e muito cheiroso. Uma cama no meio com um edredom bem macio. A escrivaninha, um espelho redondo, à esquerda alguns quadrinhos. A janela está aberta para leste. O sol em tudo. Um embrulho na cama. Ele está ali, de costas. E some. Senti muitas coisas acontecendo naqueles dias. Cheguei até eles com perguntas mal feitas e obtive as respostas, as respostas que hoje me escapam. Sou uma falta agora. Não me lembro, não posso pensar que dói. Quando uma planta brota, ela traz consigo sua flor. É uma questão de tempo.
As formas encerram tantos segredos… e quando se acabam? Um revérbero na memória, desexistiram; o que faz o fim? Os acontecimentos durante a minha vida se sucederam e eu, intimamente, tinha conhecimento de que seriam como foram. Onde está o elo perdido, que nos mantém desligados desse mundo paralelo que corre ao longo do nosso.
Sei que vou transformar em beleza a minha derrota. Terei de volta meu homem com a barba por fazer e músculos firmes nos braços. Uma tatuagem pequena. Suor forte. Ele virá sorrindo, dirá apenas: quero te ver. Depois vai colocar suas mãos na minha boca, forçando os lábios com o polegar e o indicador para cima e para baixo. Até que me arranque um sorriso, e depois os dentes. Cada dente é um ano de vida. Quando meu relógio começar a funcionar, receberei de volta um por vez, até se completarem os 32, aí, nos encontraremos de novo. Eu levava uma vida tão destituída que a tristeza já não me incomodava. Apenas adiava o encontro com os fatos. Tanta coisa me faltava antes dele. Não tinha vontade de viver, agora tenho. Aquele janeiro é o mês mais comprido da minha vida. A dor. Agora entendo: a dor serve para prolongar o tempo. Lutei com resistência e fibra. A televisão me ajudava a levar os dias. Passei a me convencer da banalidade da vida. Busquei prazer na cama, a proteção de homens. Não sonhava, tinha sobressaltos, estremecimentos, pesadelava aquele sonho. E cada vez mais tinha pavor. Já faz tempo? Eu perdi as certezas que carregava, hoje duvido do meu dedo toda vez que aponta numa direção. A tristeza, os galhos secos. Toda desolação termina um dia. A dor não existe para a vida toda. Não dá para colocar vida nela. Enquanto as folhas secam não há o que fazer. Mas enquanto houver raízes e caule, enquanto houver céu para se alcançar. Ou se mata e se morre até o fim, ou então há uma chance. Minha raiz está no passado. Eu sei muito bem como é. Pode ser uma cidade a beira-mar. Pequena, que saiba mudar sua rotina. Eu preciso de mar, mas quero montanhas também. E estrelas. Um rio de água doce, melhor, um riacho que caia no mar. Água correndo. Uma ponte, alguns veleiros, bares, casas antigas. Uma praça e uma igreja: imponente, cheia de arestas. Um padre com seus fiéis. Nossa casa fica à esquerda, numa rua um pouco além da praça.
Estarei lá numa quinta-feira, antes do carnaval, passeando pelas ruas e dizendo alô para as senhoras na calçada. Vou cantar debaixo de uma árvore que há na praça até a polícia me tirar de lá. Quero ver a cidade inchar. A cidade, seus bares, gente alegre e triste, com latas de cerveja, cães vadios. Sim, eu irei, e quando nada souber, a vida sairá de mim, com cores cintilantes. Me afastarei do convívio dos homens e n’algum canto, num refúgio escondido da incompreensão, gritarei alto e em bom tom. Milhares de coisas sem nexo, absurdos, blasfêmias, direi todas essas emoções, sentirei o vento passando e não terei vergonha de sentir tudo que virá. Loucos, vagabundos, vocês aí. Parem, desliguem a máquina, podemos fazer o impossível. Que coisa mais engraçada!
Começo a pensar numa viagem sem retorno. Ajeito o cabelo, desligada, e me viro para o jardim. Ele está ali. Um homem brilhante. Que me olha com olhos estelares, sorri. É ele, alguém que tenho certeza conhecer. Ele se aproxima de nós. E me dá uma flor. Não uma rosa, apenas a primeira, a mais próxima. Uma amarelinha. Meu coração bate a alegria daquele momento. Todos começam a rir. Ele fica sem jeito.
A hora mesmo foi veloz. Me despedi. A gente se vê amanhã. Tudo aqui é tão pequeno, não há como não acontecer outra vez. Saio cantarolando pela rua até a praia, lá existe uma árvore no canto da enseada, protegida dos olhares, subo em um de seus galhos e me assento para sentir as coisas gostosas que passam por mim. Tudo que vivi passou por mim naquela hora, algo como hoje. Só que naquele dia existia um filtro qualquer no meu espírito, o triste ia embora, o alegre contagiava. Foi quando pensei. É tarde. O carnaval começa amanhã. Já começou, e eu quase acabei com ele. Engraçado como pude dormir naquela espelunca, no meio de tanta gente. Relembro a cidade, com suas pessoas. As mesmas que sempre foram e serão. Mas meus olhos distinguiam apenas beleza.
Tanto é que estranhei os amigos depois: por onde andou? O que estava fazendo esse tempo todo? Você desapareceu. Já comeu? Sabe quem está aí? Eu ensaiava uma vida vagabunda, e foi assim que talvez adormeci. Cantarolando, aquela música do Caetano, do azul celeste celestial, da morena lábios cor de açaí. Dou o troco e acabo com o primeiro pudor que encontro no carnaval. Abro a janela de vez. O sol retira a umidade que havia no quarto. A manhã está aqui, inteira, com as padarias abertas, os carros passando apressados e, ao longe, o ruído da primeira batucada. Estou em pleno carnaval.
Passear pelas ruas foi bom para mim, tudo estava tão alegre que me contagiou. Pensei nele. Tornarei a vê-lo?
O almoço é farto. Ruth me diz: olha que você tem uma congestão. Cuidado! tanta coisa pode acontecer! Viver é muito perigoso, já disse o Guimarães Rosa. O sol castiga, outro dia fará frio, hoje não. O calor aumenta e destila energias em mim, meu pé roça o solo, patino, contorno a praça e tomo uma pinga de uma só talagada. Um arrepio percorre meu corpo. Já falo pelos cotovelos, o que não é do meu feitio. Encontro um amigo, e tomamos algumas cervejas, daquelas bem geladas. Ok, sei que estou só e daí, tudo que penso é para os outros, mesmo que eles nunca cheguem a saber disso. O que penso é o outro em mim mesma. Por isso falo tanto quando estou só. Saímos andando e falamos sobre nada, coisa alguma, falo a vontade de falar, sonorizo a tarde. E ele se apossa de mim, e começa a mistura, o carnaval, uma baita confusão. Ele irrompe sempre assim: magnífico. Passa pelo outro lado da rua, a multidão mascarada e colorida. Ele está lá. Tão perto e ainda distante. A multidão me envolve e tento alcançá-lo, ele está no meio do povo, numa fresta, depois desaparece. Vem cá, não me deixe para trás. Ele é som puro, imagem sem molde, cheiro sem perfume. Um gás. A vida, os toques e olhares ternos. Olho no olho, um exercício sensual. Quanto mais busco o choque dos nossos olhos, mais desapareço entre as pessoas, mais longe estou do meu amigo, longe de todo mundo, no meio da multidão em movimento. Vou sambar e cantar bastante, e chegar até ele. O corpo vai e me vem. O corpo vem e me vou. Meu quadril se move, ele me olha de frente, dançamos juntos, apesar da multidão. O mundo não seria o que é se não fosse o carnaval. A gente não seria o que é. No sábado o Boi de Papel sempre saía. Era um bloco de pessoas conhecidas da cidade. Deixavam suas casas com seus instrumentos para voltar só na quarta. Voltar? Carnaval tem volta? Carnaval só tem fim depois que acabou, durante é eterno. Não voltam para casa, para o trabalho, para sua forma humana, se vestem como animais, fantasiados com papel. Reunidos no bar da ponte, cantam e bebem, para depois circularem sem parar pelas ruas.
Por quanto tempo perambulei atrás deles? Quanto durou? E eu, como estava naquela hora? Fui encontrada no final da tarde, num bairro distante do centro, próximo ao mangue, esfarrapada, com as pernas doendo. Esse tempo todo que passei longe. Há uma distância que difere das outras, como na música.
Cada instrumento da batucada faz sua parte. O som do surdo serve de marcação para os outros, é engraçado, um surdo fazendo som. O tarol parece um militar apressado, é o primeiro a obedecer. O melhor dançarino é o tamborim, que desenha no ar sons rebeldes, mas sempre volta ao compasso. Às vezes, o pandeiro entra e chacoalha a música. Na verdade, a praça está entupida, a praça dos convites, diria o poeta. Se acabassem as ruas e as cidades fossem grandes praças. Como essa, verdejante, com flores amassadas e bancos para namorados. Um coreto vazio e estrelas para ser ver no céu.
A praça é o coração do carnaval. Começamos a cantar e a dançar, uma pequena roda vai crescendo, e depois nos espalhamos. Aos poucos ele volta, sempre recomeça. A música leva o corpo ao ritmo. Ao entusiasmo do carnaval.
Meu país, meu povo! Como fazer uma declaração de amor maior nestes dias que são tão brasileiros? Se pudesse gritava como aquele. Ele berra com toda sua energia. As veias do seu pescoço trepidam. Suas palavras parecem golfadas de sangue. O grito de um povo. E pensei no germe disso tudo percorrendo as veias. Seu rosto vermelho e distorcido, se contorcendo com as palavras. É o que sempre soube, o corpo também pensa.
Tenho a vaga idéia de que ele é o único a saber das grandes emoções que temos, ele é a memória, o palácio, e o cárcere de todas elas.
Dançamos no salão. Eu balanço as cadeiras e os ombros. Requebro para valer. Ele se aproxima. A mesma leveza que traz e afasta. Gira os quadris, abre e fecha os braços. Estamos, acho que fazemos amor. Um exagero? uma estocada leve, um toque de genitais aéreas.
Me recordo vagamente de um abraço. Um laço que desfaz e envolve toda e qualquer vida. O laço fatal e o seu peito morno. Voltei para casa e nos despedimos. O sono pedia passagem, os olhos já não conseguiam se abrir. A perna não se movia. Ele me deixou na escadaria que dava para a entrada da casa. Me deu um beijo de leve. Não sei por quanto tempo adormeci, por quanto tempo não vi o tempo passar. É bom sentir a vida como uma maré nos levando. E eu? Como estou comigo mesma? Ansiosa, confusa? Não, nem um pouco. Penso em ficar por conta, falar tanta besteira. Aonde estou mesmo? Gostaria de conversar com alguém sobre isso. Ele é bonito demais. Me pegou numa hora que eu não acreditava em mais nada.
A água escorre pelo relevo do meu corpo. Sinto minha capacidade ilimitada de dar amor e prazer. De acariciar. Sinto meu corpo pleno, parecendo fruta madura, bem cheirosa. Uma fruta em busca da própria semente.
E me vem a voz suave da Ruth. Isto são horas? Você desaparece. E coisa e tal, onde estava? Vamos almoçar juntas? Quem é ele, estou doida para saber de tudo.
Eu posso contar o que de fato me acontece? Será que ela flutuaria na escadaria como eu flutuei? Como abrir a boca e dizer que encontrei fulano e beltrano, fui ao baile e vi o dia nascer, e dormi bem, e que meu corpo está leve, e minha alma em festa, e que sinto coisas que não sei bem o que é, não saberei nunca como dizer. Poderia abraçá-la, poderia, mas jogava o que sentia sobre ela em forma bruta, sem contornos, sem tonalidades. Contei do passeio que fiz, das palavras virando sons, dessignificando, da desordem das coisas, será que o que dizia era o que de fato aconteceu? Existem as coisas sem serem percebidas? Vejo um papagaio no céu e me assento. Converso um pouco com as pessoas. Cada conta como está seu carnaval. Tomo sorvete e passo as mãos no cabelo. A tarde de domingo chega ao fim. Volto para casa, preciso me preparar. Vou desfilar com ele na avenida. Nunca estive tão emocionada. Disse que sim, que iria. E me preparo. Eu digo sim. Passei horas na maior correria, fazendo acertos na fantasia de última hora. O carnaval se mostra. Pára diante da arquibancada e então sorri, dele mesmo e de todos. A escola se adequa, vira um cordão e começa a ocupar a passarela, como se afastasse as arquibancadas, no ritmo da música.
O mundo gira com o corpo, as pessoas nas arquibancadas são recifes nesse mar de brilhos e tremores. Ele me atravessa e ocupa um lugar na bateria. Se mistura à música e me ultrapassa a todo instante. Fiquei irritada e quis mantê-lo próximo de mim. Retirei sua primeira máscara. Lá estava ele novamente, pulei sobre ele e fui desmascarando, rasgando, retirando. Ele estava lá, ele. Sorriu e disse: você se atreveria a fazer o mesmo com você? Se puxei… veio um oco, um vazio tremendo, veio um medo. Gritei alucinada, e ele me acalmou. É carnaval. E no meio da avenida há um rei. Um rei sem castelo e súditos. Adornado apenas com uma coroa de lata. Um rei que sorri, não dá ordens, nem faz guerras. Um rei dançarino. Ele me transforma, me faz sua rainha. Juntos temos nosso reino. E o dia vem claro, ensolarado, ensaiando algum tipo de perfeição que apenas tento captar, mas logo desisto. Amanheci convicta de que sou uma maestra que chega atrasada ao ensaio e encontra a orquestra afinada, tocando sozinha. Basta assumir o lugar e achar que entende das coisas. O dia clareando, as cores e sons: uns aqui outros lá. Os garis começam a varrer a praça, ajuntam os restos num canto. Tenho vontade de correr e espalhar tudo outra vez. Fosse jogando as latas de cerveja e refazendo quem as bebeu, fosse jogando a serpentina e brotando do outro lado quem as atirou. A noite volta, o dia vai, a noite vem, a noite vai passando e estou na rua, como nos outros dias, perto da batucada, o mesmo ritmo, a festa parece durar uma eternidade, os dias escorrem pelos dedos. Já é segunda-feira. A espuma começa a recuar e logo cai outra onda, e outra, e tenho desejo de amá-lo, amar de todo, de corpo inteiro. O desejo como as ondas. Não falo nada, deixo ele vir do seu modo. O dia dando mostras que vai nascer. Enquanto ainda sinto, meu desejo se agiganta, mas não pode ser ainda. Ele precisa crescer mais. Tem que estar pleno. O oceano, a escuridão, o silêncio, nada está tão denso quanto meu desejo. Ele sente que sinto. É só este o momento. Estamos sós numa pequena enseada. Seu sorriso é cúmplice.
Me beija, ai que calor. A hora some. O mundo se condensa nos dois corpos. Sinto tudo em mim, nele. Caímos na areia, nosso tapete. Suas mãos me acariciam. Agora seguro seu pênis e o trago para dentro de mim. A metade das coisas que não tenho, o outro lado de tudo. Estou girando, dando voltas e afundo na terra.
Não temos mais corpos, um só.
Estou lá, onde não posso mais. E dele nada mais resta.
O sol veio aconchegante.
Os primeiros raios são apenas ternura.
Acordamos descansados. Olhei para ele, olhei para o mar. Nossos corpos nus chegam a ser transparentes. Nossa beleza. Choro. A mesma emotiva de sempre. As ondas quebram próximas dos meus pés, tenho vontade de entrar. Tenho medo. Ele brinca com a areia e corre mar adentro, até afundar numa onda que se prepara para quebrar. Que não acabasse tudo aquilo. Mais e mais me perco e me esqueço, depois que acordei, para onde fui? Para onde? Subo até uma colina e avisto a cidade. Pudesse parar o tempo.
Comecei a viver uma enorme confusão que dura até hoje.
Na tarde de terça-feira ele passa por mim, mas não me vê. Está distante. Eu o sigo com os olhos. Atravesso a rua e corro até ele. Recebo um beijo no rosto. Ele ainda é inteiro amor.
Ele veio com o carnaval, se viesse noutra época saberia onde encontrá-lo. Mas agora não se sabe de onde vem as coisas. Só depois, e depois quase sempre é nunca.
Calma, Ana, pode ser que seus miolos pensem também em silêncio, você fica aí tagarelando consigo mesma, tentando se penetrar. Calma, mesmo. Ainda ouço ele falando aquelas coisas maravilhosas que ele sabe dizer.
Estou afastando, só quero compreender, antes que seja tarde. Foi um instante daqueles que a gente pensa que morrer não faz mal, já valeu a pena viver. Meu corpo foi se embalando, atrás da canção que você me cantava nos sonhos, até que acabo fazendo parte de lá.
Um vulto sorridente me diz: Ora, amiga, agora veja se dorme um pouco, deixa sua alma vagar nestes momentos que você considera tão caros e se satisfaça em não existir.
Quando me certifiquei, já era quarta-feira de cinzas, um arrepio percorreu meu corpo, enquanto continuo ouvindo o som da bateria, mas em outro lugar. Foram. Acho que dormi pela manhã, acho que tive pesadelos, não me recordo. Sei que há um vazio, um buraco nesta manhã. Onde estava? Onde estava ele? Só me lembro olhando para trás.
Minha morte foi estar olhando para trás. Você se trai, quando menos se espera. A morte é assim, a soma de todas. Ele foi embora.
Ele foi! Um estrondo. A quarta-feira de cinzas. O fim. Acabou o carnaval. E corri. Não podia sentir a dor de ver nascer o fim.
Ele estava em toda parte: no meio da multidão, depois se separou dela, se entregou a mim, na praia, no seu quarto… mas não fui capaz de fazer outra coisa que não me lembrar dele. Como uma vaca faminta, querendo regurgitar todos os momentos, tentando ressentir cada instante. De uma hora queria sessenta minutos, de cada minuto sessenta segundos, de cada segundo a eternidade. Eu queria demais, muito além das minhas possibilidades. Eu tratava com o impossível e pela primeira vez tive medo de me perder.
Onde estou. Despida, descoberta de outros predicados, e que tais. Das máscaras e ornamentos, despida de adjetivos, tive medo de tudo que me acontecia. Queria saber de mim sem atributos. Carne e osso. Queria sentir outra vez sem antecedentes. Virei as minhas costas, não quis saber se a fantasia também era real, deixei-me afastar de lá, assustada. Ele me forneceu pistas, tive presságios, me fez uma exigência e não cumpri, estava cega, não fui capaz de enxergar. A avenida principal está interditada. Dois cordões de isolamento fecham o acesso. Há um ônibus de turismo estacionado. Os prédios nas laterais estão vazios, correm pedaços de papel sobre o asfalto, está escuro. Os turistas descem do ônibus, uma banda começa a tocar, enquanto eles andam em várias direções, alguns fotografando. A banda se incendeia à medida que executa a música. O fogo se alastra. Tudo se queima. As cinzas se espalham pela avenida e começam a brilhar. Ofuscam a visão, tudo começa a mudar, molda-se outra forma.
Logo que o carnaval acabou, o Boi de Papel se reuniu na praça. Aqueles senhores solenes, murmurando as últimas marchinhas. A batucada tocou uma estranha e repetida melodia. Grave e distante. Meu boi morreu… todos choravam. Ele morria, e uma grande fogueira foi feita com as fantasias. Atirei a minha também. Começava a quaresma, meu boi morreu. Era quarta-feira de cinzas. Pássaros revoam, o mar inquieta. O sol desanda do céu. A minha cidade se afasta.
Um cão ladra. Está muito escuro. Ele partiu. Sinto vir uma noite aveludada, como uma capa de camurça negra. Algum movimento suave e persistente continua levando as ondas de encontro à praia. Sei que não voltou mais, como te encontrar na mesmice da minha vida, na incompreensão do meu apartamento? Você rasgou a minha intimidade, eu não resisti e me afastei. Mas vem. Agora estou preparada para você. Por que se esconde agora? Se fecho os olhos, chego mais perto? Não tenho mais medo. Mais uma última chance. A última.
É a ofuscação que eu quero. Estou numa paisagem estranha, num quarto de luzes azuladas, quero ir para lá, quero aquele carnaval outra vez. Quero estar com você.
O tempo agora é uma gangorra.
Será que todos vivem algum carnaval, algum dia?
Cada tem o seu momento como aquele. Tem que ser, senão o mundo seria feito de uma terrível tristeza. A hora se aproxima de mim. Setembro passou impunemente. Tenho impressão de não ter mais passado, eu fico, mas não sei aonde. E me vem as lembranças, não consigo formar um quadro, o fio da meada se perdeu. Quem sou eu agora?
Eu falo, mas não tenho mais palavras, penso, mas nem pensamento me sobra, quero, mas nem vontade me resta. O curso da vida nos afasta do que realmente É. Busco a diferença entre o que é real e o sonho. Eles estão tão próximos agora que fica cada vez mais difícil separar. A realidade com sua alucinante velocidade. Logo, logo estamos vivendo o que nos fica na memória. Pensar é sempre um pedaço, digo que é muito pouco. A realidade é bem mais rápida que um instante.
Ele deve ser um anjo que despencou do céu. Pedaços de deus caem assim?
Caem quando perdem a memória.
Por que tudo insiste em se repetir, o córrego da infância com seus pedregulhos, os sonhos, meus sentimentos, para onde vai tudo? O início? As coisas voltam? Mesmo quando não existiram realmente? Quando vou da vida, o que realmente fica? O que se extravia para sempre comigo? Você existe?
Você me ensinou a viver os carnavais. Antes passava por eles, vestia uma fantasia, me divertia. Não encontrava. Carnaval pode ser um dia debaixo de uma árvore. Ou, hoje, aqui nessa cama.
Você vem de novo? Ou irei dessa vez?
Vou encontrá-lo ou perdê-lo de vez? |