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texto base da apresentação de álvaro garcia no e-poetry 2015

Grão é meu primeiro e último trabalho de poesia digital, e me consumiu 30 anos. Comecei a pensar no poema quando larguei a medicina para me dedicar à poesia e me dei de presente um curso, que incluía música, línguas, linguística e a leitura assídua de outros autores. Logo tive contato com o chinês e a ideografia, que fascinava gente como Serguei Eisenstein no cinema, Ezra Pound e Ernest Fenollosa na poesia. O livro The Chinese Writen Character as a Medium for Poetry me influenciou assim como a Haroldo de Campos que difundiu essas idéias no Brasil. Uma língua que grafava visualidades em contraste com a nossa que grafa sons, a etimologia visual e a etimologia sonora, o sânscrito e as línguas indoeuropéias, as diferentes gramáticas de diferentes línguas.

Na época me fascinou um poema usado com exemplo da gramática chinesa, onde um autor descreve uma cena campestre sem sabermos o ‘quem’ e o ‘quando’ da cena. E aí descubro que em chinês o tempo, a pessoa e o gênero da fala não são tão relevantes quanto para nós falantes indoeuropeus, que grudamos nos verbos essas informações. Resolvi então escrever uma cosmogonia com características desse tipo de gramática.

De início pensei em fazer fluxos de semas retirando deles os sufixos e prefixos substituindo-os por sons que poderia manipular para fazer rimas e combinações. Pensei em trocar os ‘os’ e ‘as’, por exemplo, por ‘es’ e ‘is’ do italiano, e recriar as finalizações dos verbos livremente para destruir a noção de temporalidade, pessoa e gênero. Esses sons em português nos remeteriam ao latim, e de alguma maneira uma sonoridade relacionada à religiosidade que me interessava.

E comecei a colecionar semas e a ler cosmogonias em várias religiões e lendas indígenas, enquanto paralelamente meu trabalho poético ia tomando seu rumo.

Na década de oitenta, sincronicamente com os  Campos, com Wilton Azevedo, Philadelpho Menezes e Julio Plaza, eu publicava com autores de Minas Gerais videopoemas usando pc xts em telas de 320×240 pixels e 4 cores simultâneas. Daí me tornei diretor de audivisual, roteirista e finalmente diretor de multimídia, produzindo um grande número de títulos publicados em cd roms, dvds, sites internet, exibidos em televisão, rádio, cartazes em ônibus, livros impressos etc. Meu trabalho poético digital passou a gravitar em torno de um site chamado Sìtio de Imaginação onde evoluimos a interatividade e animação usando action script, a linguagem de programação do Flash.

E foi aí que Grão amadureceu. Decidi que a cosmogonia seria escrita com semas substantivados, no singular, mantendo as terminações mais simples possíveis em português, sem conectores, com um fraseado e exibição na tela sincrônico com ideogramas, sons e imagens também ancestrais, animados e com interação programada em um software livre que criamos a partir da nossa experiência com o Sítio de Imaginação e outros audiovisuais interativos que dirigi.

Em Grão, muitas vezes usei palavras de outras línguas como o sânscrito e o inglês para mostrar essa força transversal dos sons primordiais e imaginei que esse fluxo poderia ser entendido por falantes de diversas línguas, ajudados também pelo conjunto de imagens e sons que se compõe com os textos. Ao mesmo tempo me agrada brincar com as sutis diferenças, como no título, ‘grão’ em português é ‘grain’, ‘grano’, mas também ‘muito grande’ por exemplo. Os ideogramas servem como grafismo para nós, funcionam como títulos para os fluxos, e escrevem um poema em chinês tradicional.

Já no tempo de finalização do poema, estava bem empolgado com ideias do neurocientista e filósofo português Antonio Damásio que resolve um problema que vinha desde a década de 1990 para mim e outros autores digitais. Como fazer a multimídia se tornar uma linguagem nova e que de fato integrasse os diversos media e linguagens que são usados na criação e recepção de duas obras? Philadelpho Menezes usou a palavra intermídia, eu cunhei a palavra intersenso, e finalmente peguei de Damásio a palavra Imaginação, e de Pierre Levy a expressão Ideografia Dinâmica. Tudo se encaixava e integrava. Para Damásio uma imagem no sentido mental, cerebral, é um cluster, amálgama, de diversos inputs sensoriais, mixados e sequenciados com inputs das memórias, de modo que lidamos dentro da nossa cabeça de forma integrada e descategorizada com imagens sejam visuais, sonoras, olfativas, táteis, proprioceptivas etc, quando pensamos, sonhamos… imaginamos.

E bingo, fugir da metáfora da página nas interfaces digitais era o sonho de praticamente todos os pioneiros e pensadores da informática, e meu também. Podemos ficar, por exemplo, com Theodor Nelson, que na década de sessenta cunha a expressão hipertexto, e que vai evoluir para hipermídia. Ele descreve também o que seria a transliteratura. Está destruído o espaço bidimensonal da folha impressa e aberto o espaço hiperdimensional dos links e nós. Se estamos no digital vamos abandonar a página do impresso e tentar trabalhar com fluxos de imagens como fazemos na mente e os softwares tem que se adaptar a isso. Eu hoje só uso páginas como véus, como respiros para a informação, o arroz nos pratos culinários. Mas fruição é a palavra, animação é a base da interface.

Managana, criado como software livre, serve então como ferramenta para a autoração, edição coletiva e também exibição e interação desses fluxos de imagens mentais, toda a sua estruturação parte desse pressuposto. E a poesia stritu sensu (textual sonora e visual) sente-se à vontade nesse ambiente, já que historicamente tem longa trajetória de contato com a música, artes visuais, matemática, enfim, outras linguagens e sistemas. Entretanto, o software vai bem além da poesia, cabe ressaltar que hoje usamos em audiovisuais interativos, instalações em museus e centros culturais, para publicação de revistas eletrônicas e integração com blogs e redes sociais.

Então aí está o Managana, estou no player para Windows, aqui no celular temos o player para ios e para android, temos um executável, um show time com interações sofisticadas para instalações com video mapping, integração com kinect, arduino, etc. Aqui, além da navegação pela obra podemos comentar, compartilhar, votar… e editar.

Lhes mostro a interface de edição do Managana, que tem um editor local e também web que agrega muita coisa do WordPress no sentido de ambiente de edição conjunta, com potentes ferramentas para a ‘programação’ dos fluxos imagéticos e suas interações, inclusive algoritimicas e entre dispositivos, transformando-os em controles remotos uns dos outros.

A estrutura do menu fala um pouco de sua organização, temos comunidades, fluxos, playlists, a ideia é a criação de paisagens mentais com essas playlists mixadas e sequenciadas numa espécie de meta time line e preparadas para delivery em múltiplas plataformas. E os dados são todos gravados em formatos abertos e padrão numa pasta que pode ser livremente manuseada.

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acervo álvaro Blogue - cultura digital, poiesis e work in progress

milho verde déjà vu remix

Milho Verde Déjà Vu Remix

Faz mais de uma década desde a gravação em vídeo; as águas e o moinho, as vendas, a chuva barroca na capela, a cozinha da roça… eu sabia que teria mais imagens preciosas diante de mim…

Pensei no quarto: não queria filmar nada. A segunda chuva barroca seria só literatura. Deixei o celular na tomada e sai andando até o gramado, que segue plano até a igreja e depois desce suave até a escola e o campo de futebol.

O gramado é o centro de uma grande espiral de terra, que pode ser vista dali. O Lageado cercado de montanhas com o rasgo branco das águas que circundam a vila e seguem para o Jequitinhonha. Sim, estamos nas cabeceiras do rio. Diante de mim o Itambé, uma das maiores montanhas do espinhaço, com 2002 metros de altura, seu cume estava cercado de névoas que contornavam a pirâmide azulada atrás da serraria mais próxima.

Dois feixes de luz abriam espaço entre os cúmulos. Uma névoa fina e úmida batia na face, o sopro vinha de lá. Dois arco iris, um de cada lado da montanha, batendo na terra e penetrando nas imensas nuvens que circundavam o pico.

A lua quase cheia apareceu simultânea, enquanto Ubirajara (uma encarnação graciosa em forma de cão, que viveu e foi enterrada no Sítio de Imaginação) se posicionava saltitante diante de mim. Ele já estava em outro de seus corpos, mas ainda com a coleira anti pulgas.

Mais um plano com a igreja e suas duas palmeiras diante de mim. O cemitério está coberto de capim, até parece que ninguém morre por aqui. Puro engano, o tempo levou da comunidade quatro mulheres, conhecidas por quase todos.

Logo soube, a Jacira morreu de câncer, nova, que dó, lembro dela, amável, forte, poeta e politica, guerreira. A cozinheira e lutadora das causas da negritude passou rápido por aqui. Morreu também velozmente a Rita, do Armazém. Outras que se foram, já eram velhas quando conheci, foi-se uma época. Dona Santinha ganhou o nome do posto de saúde, nossa querida parteira e raizeira. Dona Neusa, da crônica da cozinha mineira, Dona Lourdes… O câncer levou todas elas, as queridas donas da velha geração… entristeço pela Rita e Jacira, que saíram da terra jovens ainda, mereciam estar entre nós.

O Adelmo açougueiro, que depois vendia um fabuloso pastel com caso na sua venda, achei que estaria também morto, pela idade que tinha quando conheci, mas na volta do chuveiro de águas do Lageado, lá estava ele na porta de casa. Não vende mais o pastel, nem a prosa da sua pequena portinha.

As vacas pastam na rua entre os incríveis cães, selecionados em anos de convívio com galinhas, não atacam nem mosquito. Anotei ao menos um nome óbvio e bonito, Rajan, que não quis descer com o neto da dona, mas assentou-se do meu lado debaixo da árvore que fica atrás da igreja. Um lab lata preto e peludo, alegre como ele só. Aliás os vira latas do lugar estão cada vez mais pretos, com aquele pelo e cara de labrador, já sabemos como são mestres em espalhar o dna.

Conheci outro cão engraçado: o olho preto, com estatura de cão de caça, branco malhado fino de cinza. Suas poses, seus asnas, no meio das ruas ainda de terra são dignos de um master de yoga. Continuam pacíficos os cães daqui. Esparramados nas ruas, dormindo em pose, zero de agressividade.

Dessa vez depois de tomar assento no banco diante do bar do Adir, afiei o ouvido com o sotaque da roça, um pouco já abaianado, no nasal e na cadência e fui atrás das bençãos no poço de cascalho da Carijó. Ora de ver também como está o Moinho.

Depois do banho, sai andando pelas ruas do vilarejo lembrando em cada ponto de todos os fatos e pessoas que estiveram naquelas ruas comigo. Todos os tempos se entrelaçaram num desfile. O quarto de esquina quando fui com a Isabela na viagem com o Fox, a viagem com a Luciana, Rodrigo e Ana, ele com um pod de proibidão, brincando de anjo torto no paraíso… O encontro com o Piga na passagem de ano, o festival de inverno e sua turma, que sempre nos levava a um passeio na região, os domínios do Paulinho em São Gonçalo, a casa da filha do Ademil e seus hóspedes, as caminhadas e aventuras no entorno, Capivari, Grota Seca, Baú, as inúmeras visões solares, iluminações e banhos. De alguma maneira o livro Álvaro e o web doc Sertoes.art.br tiveram momentos de trabalho nesse lugar.

Hora de terminar com o desfile, então, procurei o Armazém. Assentei na mesa perfeita, com o visado para o lajeado e a serra do raio, na varanda dos fundos. A tarde caia. Toca blitz e bandas pop anos 80. ‘Fazer amor de madrugada, com jeito de virada, para para pá’. São as espirais do melangè déjà vu

Veio dar a graça e pedir carinho, e lógico, comida, o Sorriso, cão vermelho de media estatura, a gata branca branca Sofia e o Francisco, preto preto com olhos de pantera, igual à minha Pituna. A turma é da filha da Rita, que tem um quê da mãe, e que assumiu o negócio.

Mais tarde vendo o Ubirajara mijar percebi que era uma garota, na encarnação em questão. Rajan e todos os seus amigos me cumprimentaram outra vez e desci a rua até o Lageado, hoje área estadual de proteção ambiental com 10.000 hectares.

Só digo o seguinte, a época é de floração, caminhei entre jardins rupestres nos campos do Lajeado. De toda espécie, rosa, laranja, branco, azul, violeta, as mais bonitas, as flores do campo. As tais que nascem sem semeadura, delicadas não se cultivam. E o fim disso tudo? Um poço e uma ranhadura na pedra onde se possa tomar sol e nadar, meditar, pensar.

Abriram um café, se chama Veredas, o único que te serve um expresso arábica incrível com vista para um curral do outro lado da rua, com direito às vaquinhas e bezerros, e de quando em quando galinhas, bicicletas, jipes se interpondo. Um caldo, uma tortinha, um café, um suco, o curral enche esvazia, passa uma galinha, a janela ao lado dá prum cafezal, é mole?

Não tem como falar de café sem chegar no imperdível galpão de quitutes da Dona Geralda. A casa dela fica na esquina, diante da igrejinha e no quintal ela fez um galpão grande com um forno de barro redondo no meio. Por 10 reais acontece um self service. Ela vai tirando do forno os biscoitos, bolos, broas, basta servir o café, o leite, manteiga e queijo do lugar. Ela me salvou no domingo depois que todo mundo foi embora e a cidade fechou todas as portas, se não fosse ela passaria fome. Esse é um cuidado, se for fora de fim de semana e feriado tem que garantir a comida com o lugar onde vai se hospedar e levar coisas para completar.

Muitos anos depois a cidade continua especial, e conseguiu se cuidar muito, dadas as condições de evolução urbana nesse início de século. A área de proteção ambiental é um luxo inacreditável que criou um bem comum e a vila tem atividade econômica com o turismo, sem que ninguém se aposse das melhores belezas e águas. O celular pega super bem e a banda é larga mesmo, 6 mb, deu pra ver streaming a minha série preferida. As pousadas têm wi fi, o lugar respira melhoras na infra sem perder quase nada do seu jeito de ser. O Mauro serve no Fogão de Lenha em breve. E já cheirei pelas ruas: pernil, biscoito de polvilho, frango, candeia, sabonetes e flores diversas… jasmins, lírios, dálias, margaridas, cravos.

A pousada André Luiz, onde fiquei uma vez está à venda e o Rancho Velho com as portas fechadas. Foi ali hospedado por chegar em cima da hora, que conheci Dona Neusa. Uma das vendas do filme também fechou. A casa de Aparecida, que passeia comigo pela vila a pedaladas, está toda pintada, mas não sei quem mora lá. Vi umas meninas que parecem parentes. Dela tive notícias já faz algum tempo, que estava adolescente, adulta jovem e que estava estudando em Belo Horizonte. Todo dia eu tinha que tomar água no chafariz cujas pedras estão com lodo fininho, parece que não lavam mais roupa lá, é… chegou a água encanada, mas os quintais continuam incríveis de frutas, flores, milho, abóbora, feijão.

À noite tem forró com sanfona, pop, mpb ou rocão para escolher, tem lua cheia e filetes de água por toda parte. Esfria, outono em Minas Gerais. Hora de usar meu casaco de lã uruguaio. E bora comer uma pizza no Angu Duro. Enquanto saboreio a delícia com presunto de parma e uma pale ale da Baker olho a mesa ao lado com sete pessoas, seis de olho e tocando nos seus celulares. O sétimo, como ficou também só, olhava pro lado sem ter o que fazer.

Não é incrível o que me aconteceu depois que eu desliguei a câmera e a literatura começou a gravar? Como ela revolveu em mim todas as frinchas da memória e me jogou suavemente num fluir de mananciais estésicos. Devo confessar, esse é o presente que me dei para o aniversário, para começar o mergulho mais profundo da minha vida, e escrever a minha obra mais densa.

Pois para completar, não é que o dia 2 de maio nasceu nublado, friorento, com uma luz difusa e suave cobrindo tudo. Mais pé na trilha, pão de queijo quentinho, suquinhos, bolinho frito na hora. O dia ficou apto a cumprir a promessa que fiz para o próximo setênio, contar a estória, e fazer o notebook que trouxe servir para alguma coisa.

Os personagens estão aqui diante de mim, na rua também me procuram, o velhinho banguelo com um cajado que já se aproximou para puxar assunto… como atraio histórias, a rude briga dos cachaceiros no Ademir, as pessoas conversando na rua. A turma toda ‘trabalha na MRV e ganha bem em BH’. O som afiado das vozes, as palavras precisas, a Anglo American em Conceição… O dia em que Cássia Eller morreu, as histórias do Sacy, a festa do Rosário, o dia de Reis…

Segui o cortejo da minha saga e mergulhei na vila que estão criando no meio da mata, depois de fugir da Bahia. Começa aqui a pequena outra e ficcional Vila de Conceicão do Mato Dentro. O teclado dispara e vão sendo cortadas as toras, feito o madeirame, capinadas as roças, queimadas as raízes mais grossas. A mina ganha a proteção de N. Sra. das Brotas e as penas de água são divididas pelas famílias. Lá está a matriarca, ainda criança construindo a sua história até se tornar a Dona Lita e espalhar sua prole pelo Brasil.

À noite no Armazém o aniversário prossegue com um show animado, com muito Jorge Ben Jor, O Paulo estava lá, firme e forte achei que a birita iria acabar com ele. Mas nada, o cara tá inteiraço enquanto Rita se foi…

Na sequência conheci os caras de uma banda e três girls that wanna have fun, uma versão tropical das Bruxas de East Week. E seguimos em caravana, com catuabas selvagens em garrafas de plástico, rumo ao Bambuzinho, a venda ainda existe, o Agostinho não está mais lá, agora funciona um espaço cultural com palco para shows. O astral é o mesmo, rock, reggae, tropicália. E rolou um show muito bom em cima de Gil e mais Jorge Ben, Raul, Caetano. Conheci a galera da banda, o Fernando estava lá, a Pilar, Taís e Tatá brincaram e brindaram comigo. Bem… Tatá, todos que conhecem a história do nome da Jitataoca sabem, é fogo em Tupi. A mesa toda comemorou meu aniversário. E dancei até não aguentar mais de cansaço, além de misturar catuaba cachaça e cerveja. Hora de tomar uma hidratante definitiva e caçar rumo. A noite sempre me vence. ‘O mundo vai acabar e ela só quer dançar dançar dançar’ ‘oxossi ogun são senhores da picada’, ‘tudo passa, tudo passa’…

A estrada já foi asfaltada. As pessoas que andam na rua estão bem mais obesas, especialmente as mulheres, o povo da Axion (lembra do desenho do wall-e, o transatlântico espacial). Tem muita gente de Ipatinga e região, é bem perto vindo por cima. As casinhas dos pobres ainda fazem dinheiro extra com as turmas do vale do aço. E as pousadas abrigam os trabalhadores do ferro, que agora podem passear com os filhos, soltar pipas com logos do desenho Carros ou com o desenho da asa do Batman. Os filhos já brincam com seus tablets e joguinhos, deixando orgulhosos os pais. O lajeado também ficou mais família, uma nova geração que aprendeu a gostar de cachoeira.

O grupo Mandala se apresentou na igrejinha, claro que a lua cheia nasceu atrás, Jorge foi saudado e cantou para nós. E os hipongas deram o ar da graça, com os esvoaços multicores de batas, mantas, crochés, cabelões e dread locks.

Milho verde estranhamente comporta esse tubo de tempo, e ainda passa bem devagar, ainda bom. A mistura de gente mudou um pouco, mas quem é do lugar sempre te cumprimenta na rua. Sempre. É bom dia, boa noite, como vai, o tempo todo. O mundo merecia um dia em Milho Verde. Eu tive a sorte de passar meu aniversário aqui.

Repórter Álvaro Garcia
Para o caderno de turismo e memória do Tempo (fictício)

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texto integral do declame o gesto da palavra

O GESTO DA PALAVRA

(para ver vídeos da apresentação, clique aqui)

Texto do declame no Sarau do Memorial
30 de agosto de 2014 no Memorial Minas Gerais Vale
praça da Liberdade BH MG

Poesia?

Apresentarei a vocês um recorte da minha obra passando por textos de quase todos os meus 11 livros. Neles, colhi poemas que de alguma forma tocam na pergunta fundamental. Poemas, poeta, poiesis, eu diante da condição de ser um. O que é poesia e o que não é mesmo. Mesmo?

Lucas, parceiro no Sítio de Imaginação Ciclope, o sitio.art.br, vai discotecar a mente poética já publicada no ciberespaço. Ele fará isso ora em sinergia, ora em dispersão, na maior parte do tempo sem som, de forma mais cenográfica, numa projeção atrás de mim.

… Foi interessante a ‘pesquisa’.

Achei muitos poemas cheios de mais perguntas e novas respostas, quase todas válidas, e concluí: a poesia não tem contorno e suporte bem definidos, mas…

… que existe, existe.

Vamos convidar para este declame o primeiro dos nossos abuelos

O caso do cumpadi, a sua ‘formação’
por seu biluzinho,
pescador de januária mg, na beira do rio são francisco
(acervo do Sertão de Minas 1.0, hospedado em sertoes.art.br)

Espero trazer indícios, traços, pistas, para afinar em perguntas ou inquietações, melhor dizendo.

Pretendo ler poemas para nós e tecer uma rede em volta, construir uma ‘formação’.

Construir um castelo de areia para vê-lo ruir com a maré

De onde começamos, a partir do livro Monódias:

ABSOLUTA

o que faço é ser às vezes
o que muitos outros são

poesia definitivamente não é verso
busco o gesto das palavras

Tem uma anotação da mesma época.

ANOTAÇÃO

o poema nem sempre está
quase nunca deve
nem às vezes se espera

o ar não parece ocupar
e a língua não é apenas falar

Começaria tentando apresentar aqui um certo olhar, Esse ‘olhar’ da poesia.
O poeta observa a sua musa. Sentada na mesa de um bar.

A MUSA SÉRIA

de traço reto
e linha grossa
entre a testa e os olhos
cor de carvão
(cara-de-pai)
olhos sonsos – de quem não vê
(usa óculos e os põe por vezes)

lá está a musa
séria e reta
bem diante de mim
iluminada pelo neon
imaginada pelas palavras
distante dos olhos
que não vêem os óculos

a musa séria e reta
que agora me leva
mais um guardanapo

sobre-olho preto
boca suave
traço de seu-pai
corpo de mulher
a musa séria
com cara de desmaio
displicente
fixa num ponto da mente
toda mistério

busco os gestos do seu espírito
que acerta cada dessas arestas
cada vez que sobe a sobrancelha
sem dobra
e nos deixa um olhar
isósceles e sonso

O HOMEM DO BAR

era desalinhavado
ouvia-se e reclamava-se
o tempo todo

Os bens inestimáveis. De certa forma o território da desmedida.

SALTO NA DIVISA

livre no sertão
com um caderno de música
alegre e só no ermo
a paisagem grandiosa
que não cabe no quadro
a terra-e-o-céu
o cavaleiro da luz
no solapino
no plano desse horizonte
o cavaleiro da luz
salta na divisa
lá-se-vai
na pista desse dia
no plano desse dia
na divisa céu-e-terra
salve alturas!
salve larguras!
no plano sem ribanceira
o liso apenas
um vasto contorno
vejo de costas
vejo só teto
meus olhos palpam chão
meus olhos debruçam céu
ó mundo inóspito!
oxalá tivesse a fôrma
desse contorno grandioso

O É, o instante

ENTRETIDO

entre
duas paredes
gemelares
de sebo
de gota
de glande
tido
concebido
de boca
grande
de môro
turvo
concepcionado
través de mãe
viés de pai
visto
depois
como ente
valente
garoto
tido
entre tantos
tido entre
outros
possíveis
para ser
exatamente
o
É

trecho capturado do documentário Pan-Cinema Permanente
sobre Waly Salomão, dirigido por Carlos Nader )

Como começa 1 poema?
A busca do primevo, o início, as fontes.

A PROFECIA DO GÊNESIS

I
fora aos usurpadores
que se apropriaram
da nossa fome
fora! o sagrado
queremos também

II
agora lembramos
o código nos pertence
agora lembramos
amamos a terra e o mais entranho
dos perfumes de chuva
sabemos ser como os animais
e entendemos o porquê de morrer
estamos aqui antes da extorsão
e da usura

IV
quero o mundo antes da posse
quero o mundo antes do pasto
esta folha branca outra vez
a arte bizonte
o artista atrás da obra
o ciclo imutável da vida
passando aqui
quero navegar através das eras
e esquecer a pobreza do século
o tempo na larga
como o geólogo e o astrônomo
quero partos com dor
e a vida como ela é
desde sempre…


também não sou alegre

nem sou triste
e daí?
sou templário
o homem antes do bom selvagem
e de todas as formas de dizê-lo
como ser

antes da tora
todo dia um ritual
antes do paraíso
e de dante
mesmo, antes
nem bem nem mal
o que é bom
apenas
antes da fartura
ser cobiçada
ainda no uso-fruto
sem tiranos
com o prumo da raiz
e o sumo da planta
e a matriz de todas as seivas
na hora da vida
na hora da morte
a mesma medida
reto e correto
como um arco
a linha na linha
e o ponto no ponto
onde deve ser
porque
é a minha Lei
e vem antes de adão
do mundo
sem homens
sem costelas
sem terras
sem paraíso
a vastidão
a terra sem promessa
pronta para começar

Nomear. Quando uma palavra se torna.
O espaço dos nomes próprios.

O DICIONÁRIO PRIVADO

é nome
minha primeira intenção
e quando fizeram-me Álvaro
passei a pertencê-lo
e assim como todos os nomes
que se tornam próprios
agora ele é meu
com nuances e verbetes
indispostos nos dicionários

é um sudário
uma rachadura
um fecho
meu nome é uma sutura
nas paredes do tempo
não me grite, é vão
não me evoque
meu nome é um santo
esquecido e alongado
na têmpera do tempo
é um serviço
sacro em seu benefício
nele você se expia
e sabe o quanto se ama
ou se destrói

porque
certa vez
disse-me um
grão
não é
carma
seu nome
é darma de alma
é salmo da alma
seu nome

ALVARIAÇÕES

Alvíssimo
Alvarinho
Alvaroço
Alvarão
Alvaríssimo
Alvarado
Alvaror
Alvinho
Alvrinho
Alvorecer
Alvaredo
Alvoredo
Alvarada
Alvarinho
Alvura
Alvarido
Alvarez
Alvarento
Alvará

O testemunho de 1 tempo, ‘eu sou o cara, eu estava lá’.

MESSIAS DE 1 HOMEM SÓ

desencaixotado
rebelde de causa
um pensativo inveterado
um fracasso meditatório
uma espécie de silêncio
maldito até em casa
que já faz tempo
fala com cafundó
atalho de
notícia & pessoa
fogo & fadiga
afluxo de alegria
o pão da poesia
meu defeito de fabricação
meu sestro
meu verso
e minha alegria
‘eu sou o cara
eu estava lá’
eu sou a voz
que ousa
eu sou a vez
da dúvida
e duvido da morte
e duvido da dor
e não sei onde acabo
nem onde estou
perdoado & contente
‘eu sou o cara
eu estava lá’
ensandecido
desterminado
estado de alma
um poema imprenso
os perigos
e as idéias incontroláveis
livre, indébito
começo de tudo
fim de nada

A poesia é algo que acontece entre um massacre e outro.
Entre uma guerra e outra, sou mais um refugiado.

ÉRAMOS

sou um ocidental
produto do índio português
que veio à origem
e nos chamou do que era
sem saber quem éramos
sou um produto da matéria sexual
que serve à propagação
da idéia indoeuropéia
sou a fronteira
entre o leste e o oeste
estou no meio da tempestade
entre a rocha e a onda
o marisco
venho do resto
portugal é o resto
de uma diáspora mal sucedida
de um movimento
que partiu rumo às índias
e aportou aqui
e disse índios
os que éramos
e acabaram ficando
e seu trabalho foi
fundar uma zona
uma rodovia qualquer
que resolveram fazer
para pilhar a terra
ah! eu vivo aqui
faço parte do butim
em minas bósnia
são paulo bagdá
no rio haiti

Acima de tudo, o poeta é uma pessoa que tem uma relação para lá de especial com as palavras.

Do Verão Dentro do Peito.

A PALAVRA VIVA

a palavra lava o que agente mente
a palavra mente onde agente sente
a palavra cansa a palavra amansa
a palavra passa o que agente pensa
a palavra amassa
a palavra atrasa o que agente esquece
a palavra aquece o que agente teima
a palavra queima
a palavra fogo que agente apaga
a palavra tralha que agente afasta
a palavra gaga
a palavra lavra
a palavra ato
mato onde agente embrenha
a palavra exata onde nada ata
a palavra sacra
a palavra senha a palavra laca
amarga doce luz
assanha brilho soa
bela voa
a palavra garça
taça
a palavra que agente bebe
a palavra tonta
a palavra esquece
a palavra enterra o que agente troca
a palavra cava
a palavra cova
afoga trama aplaina
a palavra amaina
amanhece
a palavra espaço dia
como brisa

Poesia experiência sacra?

PREFÁCIO DE DEUS

no mundo que é cerca
busco as palavras da imanência
a boa luz
e meu deus tem esta fôrma
que não posso esquecer
ele é a minha palavra de súplica
de desejo mais sincero
meu paço de humanidade
converso com Ele
como se as palavras
fossem ele-elas-também

Ele me fez na forma de um nome
que louvo com a blasfêmia
das minhas faltas
e com a certeza da Sua compreensão
diante Dele sou puro
princípio e consagração
na luz que banha
a treva-eu
Sua presença me constrói
sem Ela
minha beleza se desmancha
em ossos baldios

Banal?

NADA DEMAIS

tudo é vulgar como o batom vermelho
e a saia justa de crochê
como os sorrisos da caixa
– as mentiras amargas e a música sertaneja –
a garapa escorrendo entre os dedos
o brilho na pedra falsa
– o Shop Pastel –

Guarapari
teus olhos de kitch me fitam
nossa cumplicidade…
as coisas em seu lugar
– doce é a vida, doce é o olhar –
o jeans délavé
o senso comum de mãos dadas
com minhas madrugadas
tudo é igual no fundo dos olhos
que se cruzam pelo caminho

da praia dos namorados à ponta das castanheiras
pedras toscas e negras
senhores aposentados
nomes no tabuleiro de damas
tatoos descartáveis
uma mineral de plástico
seu prisma neon
como um brilhante adocicado
e também aquele senhor
que hoje fabrica mentiras em mim
suas mesquinharias
a poesia banal, seu traço vulgar
a pizza esquecida
à noite no calçadão
o vento ressoa nos ouvidos
os caracóis som-de-mar
desejos de clareira
ver aquelas pedras trinar
nada demais
um filé com fritas
nada muito sério
um sunday de caramelo

A estética tropical, a luz implacável. A poesia em êxtase como no Caraça, naquele dia. Blake com uma pitada de Rimbauld?

CARAÇA

Pequena enxurrada de poesia
que antecede a chuva
que não chega a cair exatamente.

Santa Bárbara de Minas
Dezembro de 1991

cantareiras voando degraus no céu
trinchas grossas no céu
calmaria de cinzas
vapores de caules degraus
talo das plantas
os brotos a benção
calmaria de cinzas
trinchas grossas no céu
graneleiros no ar
rebentos odores
avisos passagem
o tenor do sol
o ruflar de nuvens
o também dos pássaros
ervas sementeiras
mãos úmidas por toda parte
talos e calos talos

mastigar as plantas sorver esperança
a saliva plena dos bosques
a supremacia os planos da afeição
aviltar as cascas as frinchas as lesmas
revolver mensagens paradeiros e fatos
tirar o som do sol o som do sim
tinir o balde azucrinar a mula
zurrar a bica sapecar a massa
os fatos com nacos de ti

estalidos
traques no céu
armaduras de chumbo
estacas estiradas
filete de água córregos
ferpas pó de água
estiletes estampidos borbulhos
plenos viços pulmões ferroadas
ares de ventania
sobrancelhas no céu

o fim de ornamentos
o fadado, os ciscos, os vãos
ruindo, destramelando
o dia tine, alveja a vida

A letra vem com a música, a poesia com o silêncio, li numa entrevista de Nando Reis.

Poesia não é para entender, entender é pedra, seja árvore disse Manuel de Barros.

OS AFAZERES DA PEDRA
(como em manuel de barros)

todos os afazeres da pedra
estão escritos antes dela
por que dali ela não moverá
por vontade própria
e de si
será
apenas
se em pedaços
lhe fizerem
oh deus
os afazeres da pedra
são tantos
silencio obsequioso
dureza, frio e aspereza
nas suas rugas não há velhice
mas tato de mineral
os afagos da pedra não me vêm
logo que sinto a dor e as faltas
posso ficar ali
por horas e dias
todo o tempo que tenho
de vida
e ainda assim
ela estará ocupada
em ser o que é

Poesia e lucidez, como em Fernando Pessoa.

“Eu é que sei. Coitado dele!
Que bom poder-me revoltar num comício dentro de minha alma!

Mas até nem parvo sou!
Nem tenho a defesa de poder ter opiniões sociais.
Não tenho, mesmo, defesa nenhuma: sou lúcido.

Não me queiram converter a convicção: sou lúcido!

Já disse: sou lúcido.
Nada de estéticas com coração: sou lúcido.
Merda! Sou lúcido.”

(Álvaro de Campos, in “Poemas”)

Não só o lúcido, o lúdico, como nestes POEMAS DE BRINQUEDO

PALAVRAS GÊMEAS UNIVITELINAS
(atenção: ler cantando, ritmo rápido com paradas no reco reco legal)

bole bole
mexe mexe
pula pula
pisca pisca
troca troca
quebra quebra
reco reco
legal

bora bora
quero quero
puxa puxa
nheco nheco
xup xup
lambe lambe
reco reco
legal

toque toque
puxa puxa
quebra quebra
tico tico
lambe lambe
xique xique
reco reco
legal

lero lero
xup xup
tico tico
rela rela
bora bora
bole bole
reco reco
legal

PALAVRAS GÊMEAS BI VITELINAS
(descobrir quais são separadas, têm hífen ou são escritas junto)

zig zag
tic tac
bate boca
pica mula

cabra cega
guarda chuva

mestre cuca
passa quatro
vice rei

couve flor
banho maria
lusco fusco
mestre sala
tira teima

maria mole
cata vento
guarda roupa
porta treco
ping pong
estrela d’alva
supra sumo

guarda pó
maria fumaça

ave maria
trem bala
porta avião
e guarda sol

A conversa de eternia. A literatura no seu sentido estendido. Uma rede que se conecta no tempo largo. Um diálogo multicultural e transnacional.

Da tradição ocidental converso com Pré Socráticos, Dionísio, Baco, Nietzsche, poetas franceses, americanos, latinos e brasileiros… Encontro muitos literários e libertários, em revolução, insurgência, indivíduos em crise com seus estados, tempos e valores.

Da tradição oriental, buda e o tao: a ressonância, o ritmo vital, a sincronicidade, a empatia, o vazio, o vaso o entre, o não é (wu wei), o yin yang e o silêncio. Uma mente pacificada em sintonia, uma mente coletiva e abrangente.

É a fissura que se abre entre essas escolas, a minha poesia.

O BUDA OCIDENTAL
(poesia da palavra literal)

meu buda tem
uma vara de pescar fogo
às vezes
apago seu fogo
num lago de aguardente
porque não suporto
seu perfume

meu nunca
tem um buda
deleitado
num berço
cego vasto
pasmo e ato

ESCULPINDO O DESEJO

traga-te o abismo
onde se talha, se despedaça
rompe a matéria do sol
ainda que rochas
onde se pára
entre pontes
fortaleça até a trinca
as rachas da fortaleza
o desejo alarga onde se dói

O BUDA DA PALAVRA

cristo foi condenado a morrer
pelos sábios do templo
e mesmo depois
de sagrado deus
quando sua igreja queimou
herejes na fogueira
e abençoou de morte
índios em suas terras
e galileu mentiu
para não virar pó
quando a arte degenerada
foi banida pelo reich
e os judeus calcinados
hiroshima também ardeu
em chamas e câncer
quando os cruzados abriram
a temporada infinda do fraticídio
e os descendentes das cinzas
voltaram para exterminar maomé
e quando ontem o talibã
demoliu o buda da montanha
a poesia ecoou
no precipício do seu princípio
e subiram em labaredas
desde alexandria
as chamas de palavras banidas
de todos os livros de silêncio
de todos os homens emudecidos
por todos os poderes
que se proclamam eternos
e eu perguntei
buda foi destruído?

minha poesia é um riso
do que pode o homem
onde não pode a tirania
e lá onde acaba o poder
está imóvel meu buda
a palavra sã
que jamais se esquece
e arde através do tempo
e mesmo que me calem
ainda que me matem
meu buda vai estar lá
no princípio que principia
ele tem uma vara de pescar fogo
e nunca se apressa

A palavra sã.

Destruição e renascimento. ‘Eu sou a rudeza destes pastos, queimados e renascendo…’ (Cora Coralina).

A esponja. Os nervos do entulho.

O HOMEM VAZADO

por que sou sênsaro
só tenho poros
e tudo me trespaça
eu pelica
eu de treliça
só tenho poros
sou todo furado
tudo me trespaça
eu pelica
eu de treliça

DULHAS

mecânica quântica

sinto até átomo
mudando de lugar

o ofício

o poeta é um
sabe-não-parar

o poeta em chuang tzu

o profeta-inspirado
o ato-impulso

o bom do menino

é cara de não sabe de nada
é nunca pensa da mesma maneira

POESIA FRACTAL

uns partem outros nunca
ao limite do infinito
a franja de pontos
o senso das fronteiras
o inexato encosto
entorno de ordem e caos
dois mares que se atracam
nunca e sempre vazantes

uns partem outros nunca
ao topo das lógicas
o absurdo entrevisto
o certo que não se palpa
com o entendimento
mas que se vê com olhos
que dão números ao infinito

Para terminar, uma intervenção do abuelo Tião Paineira, ele nos explicar como aprendeu a ser oleiro.

(para ver um documentário do DOC TV realizado com o Tião, clique aqui)

Será que poesia é cerâmica também?

Um tato na mente e uma expressura na mão?

Grato

Álvaro

ps:

Em ciclope.com.br os textos integrais e a visualização gráfica dos livros de poesia. Lá também alguns textos relacionados, da seção Acervo Álvaro Andrade Garcia:

O TRONCO NEGRO DO FARAÓ
A LIBERDADE DAS COISAS
POESIA E TECNOLOGIA
DA VIDEOPOESIA À IMAGINAÇÃO DIGITAL
O QUE É O SÍTIO DE IMAGINAÇÃO
MULTIMÍDIA IMAGINAÇÃO E POESIA ZEN
DESCATEGORIZAR E RECATEGORIZAR A POIÉSIS A PARTIR DO DIGITAL

 

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descobrindo o brasil

Infelizmente se perdeu o texto da apresentação do CD ROM Descobrindo o Brasil no Prix Mobius de multimídia. Foi nosso primeiro trabalho de audiovisual interativo,  baseado numa interface que usa um palco circular de teatro e atores para a navegação, que se dá em forma de jogo. Um software para didático sobre a formação do Brasil, nos 500 anos da chegada dos portugueses à América.

Lamentamos, mas a apresentação está em inglês. A apresentação mostra o aplicativo e as estratégias de sua construção, explorando a interação em audiovisuais.

 

 

Para registro, aqui é possível baixar o iso do referido cd rom, para fazer uma cópia no seu computador e rodar o programa. Lembre-se que foi feito no Director, em 2.000, provável que não rode em máquinas 64 bits e sistemas mais atuais, sem emulador.

Imagem ISO do cd rom Descobrindo o Brasil, Ciclope, 2000. 642 mb.

 

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o tronco negro do faraó

O Tronco Negro do Faraó
Publicado no livro Messias de um homem só, jornal Dez Faces, edição 4, 2007

Manoel Torre, que não sabia ler nem escrever – o homem, sem embargo, com a maior cultura no sangue, como dizia Garcia Lorca – , tinha sua própria filosofia sobre o canto.” 

Em uma ocasião ele disse a um que cantava:

Tu tens voz, tu sabes os estilos, mas não triunfarás nunca, por que tu não tens o duende. E no canto jondo há sempre que buscá-lo, até encontrá-lo, é o tronco negro do faraó.”

Garcia Lorca em pessoa nos descreve:

Então a Ninha de los Peines se levantou como uma louca, tronchada como uma chorona medieval e bebeu de um trago um grande vaso de cazalla, como fogo, e se sentou a cantar sem voz, sem alento…, com a garganta abrasada, mas…
com duende.

Havia logrado matar todo o andamento da canção para dar vez a um duende furioso e abrasador, amigo dos ventos carregados de areia… A Ninha de los Peines teve que desbarrar sua voz, por que sabia que a estavam ouvindo gente ‘esquisita’, que não pedia formas, e sim tutano de formas… E ela teve que se empobrecer de faculdades e seguranças, é dizer, teve que afastar sua musa e quedar-se desamparada… E como cantou! Sua voz já não julgava, sua voz era um jorro de sangue, digna por seu trabalho e sinceridade…”

Sordera de Jerez, um cigano que canta como os anjos… nos diz que o duende é uma coisa que se leva dentro. ‘Eso no lo conoce nadie, eso tiene que nasé de la persona…’ E se pode cantar sem que isso lhe ocorra? ‘Hombre, claro que canto sin que me ocurra eso’, não tenho remédio além de cantar, pois canto… mas quando me sinto a gosto, se me saltam as lágrimas cantando, por que ponho o coração… aí não penso se estou bem ou se estou mal, canto ao meu ar, ao que me sai.*

* Tradução livre de trechos de El Cante Flamenco, Ángel Álvarez Caballero, Alianza Editorial, Madrid, 1994

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características de obras de imaginação digital (rascunho)

Características de Obras de Imaginação Digital

Texto em redação. Versão beta 1.0, ainda rascunho.

Falar de possibilidades criativas e especificidades de um meio tão novo e ainda em mutação acelerada nos obriga a assumir uma postura cautelosa e considerar que estamos num campo experimental onde poucas obras existem, onde é grande a influência de meu trabalho autoral e pesquisa própria na formação desses conceitos aqui colocados, de modo que o máximo que posso fazer agora são algumas inferências e hipóteses. Podemos considerar os tópicos abaixo como uma lista inicial que nos ajuda a construir obras de imaginação digital e avaliar trabalhos existentes e em elaboração. Uma lista em mutação e crescimento à medida que nosso entendimento e a sedimentação de conceitos vai se estabelecendo.

a) o software é poesia (code is poetry)

Na imaginação digital, o software é a obra, integrando interatividades, interfaces de entrada e saída sensorial, multilinearidades & fragmentação, mixagem e sequenciamento de imagens. Na escrita do código ficam as variáveis, elementos lógicos básicos como os ‘if then’ ‘do while’, acesso a mídias, compartilhamento e licenças de edição. Nessa escrita são também definidas classes de comportamento, o código aceita texto e funções matemáticas. A programação pode permitir a evolução em versões, o crescimento colaborativo, a tradução facilitada etc.

Na era das apps stores de Apple e Google, podemos dizer que o que irá circular serão aplicativos, enfim, softwares. A mídia conhecida estará embutida em programas. As obras são vendidas, distribuídas, como software: o documento ganha mais inteligência, ou dizendo de outra forma, o documento-software interage, reconfigura rizomas, faz-se e desfaz-se ao sabor de sua capacidade de encontrar mantenedores e comunidades que se interessem por aquele conjunto de nós e informações. O software pode adquirir qualquer forma, integrar qualquer tipo de mídia, aceitar qualquer tipo de entrada saída.

Sendo o software o veículo da disseminação de uma imaginação, podemos dizer que a imaginação recorre também ao conceito de versão, já corriqueiro: as obras começam um dia e estão em permanente mudança depois, na medida em que surgem implementações, novas formas, possibilidades, avanços tecnológicos etc. As obras nunca estarão acabadas depois de publicadas e isso é uma mudança substancial.

Como um exemplo do poder desse tipo de construção, temos o WordPress1, um dos maiores ambientes de publicação digital em código aberto, disponível na internet. Seu código é feito por centenas de voluntários da própria comunidade e através de milhares de plug ins e temas transformam um site em qualquer coisa, interagindo com uma comunidade de 25 milhões de pessoas em todo o mundo. E é deles a frase inspiradora ‘code is poetry’.

b) recategorização de autor/leitor-espectador, agora propositores, mantenedores e comunidades

Na nova dinâmica das obras digitais, o antigo binômio produtor/receptor muda para uma estrutura minimamente tripartite. Há uma pessoa ou grupo que propõe o embrião de uma obra com um código de desdobramentos iniciais, um grupo que a mantém disponível no ar e a atualiza (mantendo-a publicada) e grupos que interagem com a obra em diversos níveis, lembrando que uma mesma pessoa pode fazer parte de mais de um grupo.

Isso implica em novas definições quanto a direitos autorais e trabalho em equipe, já que é quase impossível que uma pessoa domine por completo todas as formas artísticas e linguagens disponíveis para a realização das obras. Surgem questões também quanto à remuneração de contribuições vindas das comunidades que participam da obra.

c) descategorização e recategorização de linguagens, formas artísticas, métodos de trabalho – matemática, lógica, linguística e literatura, música, artes visuais, cinema, teatro, jornalismo etc.

Sempre é bom bater nessa tecla. O que se propõe aqui é a criação de uma nova linguagem a partir da assimilação, incorporação, remanejamento de fronteiras, uma nova poiesis. Nesse sentido não se trata de acabar com as fronteiras ou artes pré-existentes, mas recategorizá-las para trabalhar com elas em ambiente digital. Vamos lidar com imagens numa metáfora mental, onde a concomitância e interpenetração de linguagens, métodos, recursos, acabará por criar novas margens e relações entre o que até então conhecemos. A imaginação digital se espelha na forma já integrada de processamento da informação que fazemos na nossa própria cabeça.

d) a página passa à animação o status de âncora da interface homem-máquina

Apesar das inúmeras possibilidades, as interfaces de multimídia na internet ainda se baseiam na metáfora da página gráfica, com texto e fotos compondo a página e consoles de apresentação e sequenciamento de audiovisuais abrindo em janelas ou full screen e sem integração fluida com os outros elementos de tela.

A construção da imaginação digital passa pela transposição da temporalidade, leia-se sequenciamentos, à tela. Tudo é animado. Perceptivelmente ou não. A questão do tempo gera novos desafios para a construção da interface em computador. Interpolação entre estados, o uso de véus como forma de paginação, a duração e a movimentação de imagens compondo e decompondo paisagens se torna fundamental.

Isso implica em reformulação completa da interface para lidar com planos cinematográficos, áudios e elementos que não se encontram parados na tela e que sofrem mudança sintática no caso de interrupções fora dos tempos de corte.

e) Imersão e extensão da realidade

As imagens, organizadas em fluxos que proponho chamar de ‘pensamentos’, organizam-se em torno de quem assiste. Aquele que lê a obra também interage com ela e produz novos nós e links. As obras se constroem em camadas (layers) que permitem a condensação das imagens diante do leitor/escritor. As imagens se movimentam em torno de ‘centralidades perceptivas’ que podem ser chamadas de focos ou alvos e correspondem ao consciente na sua relação com o inconsciente. As relações entre imagens e suas propriedades – tamanho, transparência, movimentação, permanência, simultaneidade, interação – é que vão criar a ambientação imersiva da obra, sendo possível também mixar camadas produzidas previamente com imagens em tempo real vindas do mundo real, criando paisagens e interações novas.

f) Construção de paisagens mentais

Ampliando as possibilidades do cinema, do vídeo, da produção musical e dos livros existentes, as obras de imaginação digital não registram apenas um caminho possível da mixagem e sequenciamento de seus elementos imagéticos. Elas permitem a criação de paisagens mentais (mindscapes). Nas paisagens mentais as imagens têm suas próprias linhas de tempo (time lines), permitindo que se movimentem de forma única e diferenciada em função das entradas e saídas sensoriais geradas pelo código da imaginação. Cada elemento da tela tem sua própria animação e comportamento. Isso impacta na mudança da estrutura da produção e edição dos planos audiovisuais, criando situações parecidas com o processo musical, com síncopes, elementos que continuam no plano enquanto outros desaparecem, mudam de lugar etc.

g) Recategorização do espaço: distância é interação e não medida em centímetros

A distância como a conhecemos se torna imperceptível, uma vez que as informações dos nós estão armazenadas em computadores e trafegam a velocidades instantâneas de qualquer lugar, montando simultaneamente paisagens que fluem em qualquer outro lugar. Podemos dizer que, no espaço mental da imaginação, as distâncias serão medidas pelo número de links entre um nó e outro, e não pelas distâncias medidas em metros. A topologia da obra se estabelece em função desse mapa de distâncias a partir das associações mais diretas ou menos diretas entre os nós do rizoma.

h) Multidimensionalidade

O espaço-tempo onde se ambienta a extensão mental colaborativa não tem que ser bi ou tridimensional. Nem mesmo quadridimensional, tornando explícita a participação do tempo. O espaço da imaginação, metaforicamente mental, pode ser abstrato ou realista, pode ser construído de diversas formas e ter ‘n’ dimensões, como matematicamente e mentalmente é possível e já estabelecido cientificamente. O espaço real é apenas um subconjunto de um espaço mais amplo onde transitarão as imaginações digitais.

O que se busca é a imersão nessa amplitude: não se trata de representar a realidade cada vez mais, mas de estender nossa mente cada vez mais. Os ambientes não precisam ser apenas salas de mármore com reflexo 3d, como se vê no espaço digital rudimentar que ainda predomina. A arquitetura das obras de imaginação está liberta da representação exata da ‘realidade euclidiana’, ou mesmo ‘einsteniana’. Tal como ocorre hoje com as hiper superfícies2, uma nova área da arquitetura que estuda a fusão de espaço físico e mídia, estudando também experiências com multimídia fora da tela do computador em robôs e aparelhos em geral, o espaço da imaginação não é necessariamente o da tela de um computador, nem tem as dimensões delimitadas. Sua arquitetura faz parte da sua sintaxe à medida que aprendemos a construir novas topologias.

Há ainda que pensar na construção dos ambientes imaginários e suas representações na tradução de entradas e saídas sensoriais fora da nossa escala de percepção sensorial. Como, por exemplo, a tradução de espectros de luz, de som e de outras energias ‘invisíveis’.

i) Organicidade

A metáfora mental cria um ambiente que tem muitas características orgânicas, que podem ser exploradas na construção das obras. Crescimento rizomático com agregação, recombinação e esquecimento de imagens. Elas mesmas estão em permanente mutação, nascem, morrem, crescem, regeneram, duplicam, conectam, contaminam, comportam-se como bando etc. O código pode implementar vários desses comportamentos.

j) Construção de ágoras que levem em conta os ciclos de vida de informações diferentes

O jornal envelhece todo dia, um livro didático tem uma certa duração, outras imagens podem durar para sempre. A imaginação digital permite a organização espacial e temporal de informações que têm ciclos de vida diferentes no mesmo ambiente. Como no cérebro, há informações perecíveis que se encadeiam com informações que vão se perenizando e criando eixos e estruturas na obra.

A obra cresce em versões com rearranjos, desmembramentos e incorporação de novas interações, entradas saídas sensoriais etc.

k) Base de dados indexada e também hipertextual

O hipertexto, a hipermídia por extensão, tratam do armazenamento da memória dos caminhos percorridos por homens em nós de informação. As obras de imaginação devem pensar na inclusão de sistemas default de recuperação de informação e indexação, como o full text search, as indexações alfanuméricas, por data etc, mas também investir nas opções de navegação e de criação de links a partir da participação humana. Isso sem prejuízo da incorporação de inteligência artificial para a criação de novos padrões de conexão a partir do uso da obra pelas pessoas.

l) Construção de bases

Na era da hiper informação, vivemos no tempo dos DJs e outros profissionais que se especializam em criação de bases prévias para uso em mixagens e sequenciamentos, muitas vezes em tempo real. Muitos deles já são vistos também como artistas. Pensar em bases é fundamental para a imaginação digital, já que se criam topologias e opções de interação bem maiores que aquelas possibilidades pela consulta à obra. A meta criação faz parte também da sintaxe da obra, já que mixagens, sequenciamentos e propriedades novas incorporadas a imagens já produzidas acabam por criar novas imagens.

m) Interatividade ampliada

Ainda vivemos a era da interatividade ‘skineriana’. Um clique: uma resposta. Há muito que avançar na construção das interatividades possíveis na imaginação digital. Podem ser usadas interfaces multimodais, mais intuitivas e sensoriais, afastando o computador-ferramenta do computador-mídia. A interatividade pode ser construída em camadas: interação individual e coletiva, interação em partes da obra por meios diferentes etc.

n) Gestão do silêncio, concentração/dispersão, gerenciamento da interrupção, áreas de densidade e rarefação

Uma imagem isolada, uma imagem que dura mais ou menos, uma imagem junto com outra, a ausência, os intervalos, o controle dos fluxos, as informações que interrompem a fruição da obra, a construção de áreas de densidade e rarefação são elementos importantes. Como na música, na poesia, no cinema, o silêncio, o vazio, compõe-se com as imagens criando ritmos e pontuações, trazendo novo significado aos conteúdos.

o) Rumo à ideografia dinâmica

Na articulação lógica dos elementos dos pensamentos criados numa imaginação, podem ser usadas novas sintaxes oriundas de infra lógicas e processos mentais já estudados – composição, justaposição, negação, mitopoética, analogia etc. Decisões em rede neural, processos intuitivos, tudo isso é campo de pesquisa e experimentação.

As temporalidades e movimentações podem ocorrer sem sobressaltos indo do screen saver, do ‘quadro’, da ‘página’, à temporalidade medida pela memória, passando pelo fast forward, play, slow, e todos os tempos possíveis. Seja no texto escrito, na movimentação na tela ou na diagramação, tudo isso cria novas formas sintáticas a se explorar.

Caminhamos para a era da ideografia dinâmica, termo cunhado por Pierre Levy3 que trata justamente desse novo alfabeto e sintaxe possibilitados pela tecnologia digital. Apenas discordo do autor quando ele foca demais o termo na predominância da linguagem audiovisual. Ela será importante, mas não é capaz de dizer tudo que existe e nos passa na cabeça.

p) Processamento paralelo, computação em nuvens, pan-óptico, múltiplos dispositivos, redes e mais redes.

Estamos na era da computação em nuvem, com imagens armazenadas e processadas em milhões de computadores simultaneamente em diversos lugares. O próprio computador se fragmenta, enquanto aparelho, tendo novas formas segundo as condições de uso. As obras de imaginação se encaixam como luva nessa nova configuração da rede mundial de computadores. Ao criá-las, devemos levar em conta as possibilidades proporcionadas por essa nova realidade.

Enfim, a imaginação digital pavimenta um caminho possível para obras abertas como sempre sonhamos, cria organismos mentais estendidos entre homens e suas máquinas eletrônicas. É um ágora riquíssimo para a poiesis se manifestar. Uma arte ainda muito incipiente e nova, com enorme potencial. A nós, artistas, cabe a tarefa de tecer nessa nova urdidura. O novo nunca foi problema para nós, mas desafio.

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saudade

Crônica sobre o quadro Saudade de Nello Nuno.

Publicada em http://blogdonello.blogspot.com.br/2012/08/saudade-nello-nuno.html e no livro Nello Nuno – A Poética do Cotidiano de Márcio Sampaio.

O quadro era quase todo uma mancha verde. Vários tons dessa cor, sobrepostos com vigorosas pinceladas, formavam uma gradação que partia da cor mais escura embaixo à mais clara na parte superior da tela. Dessa forma os planos ficavam aparentemente confusos. Mas a impressão que se tinha era de que o primeiro plano continuava por algo que seria uma janela, dando para montanhas ao fundo. Algumas pinceladas brancas, em forma de retângulos e triângulos, pareciam indicar uma cidade no canto superior esquerdo. Atrás dela, uma porção verde-oliva: as montanhas. No canto superior direito, o verde escuro das porções inferiores dava a impressão de haver algo tenso, inexplicável. Nas proximidades dessa mancha, um velocípede e uma planta davam um ar de familiaridade à cena. Finalmente, algumas pinceladas vermelhas no centro da tela, um pouco à esquerda, formavam algo entre uma grade e as chamas de uma fogueira. Reunindo o branco e o vermelho, em proporções mínimas, diluídos no verde, o artista conseguiu transmitir uma estranha sensação de leveza. Ao mesmo tempo, detalhes como uma fissura ao longo do centro de gravidade da cena ou o imobilismo do velocípede remetiam o observador atento a um estado de primitivismo e até mesmo de ausência.

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Revolução digital e literatura: novas relações entre leitura, escrita e autoria

Revolução digital e literatura: novas relações entre leitura, escrita e autoria

Texto publicado em
http://www.goethe.de/ins/br/lp/kul/dub/lit/pt8457823.htm

No mundo dos aplicativos e dos tablets, escritores e leitores criam novas formas de relação com a literatura. Sem querer anunciar o fim do livro-texto ou da prosa longa, está claro que “ler e escrever” ganham novos significados.

São muitas as questões inspiradas pela revolução digital em curso nas últimas décadas. No mundo da literatura, as alterações trazidas pelas novas tecnologias atingiram primeiro o plano da produção do texto, ou seja, da escrita. Escrever no teclado é hoje algo praticamente considerado uma “segunda natureza”, tanto que em algumas regiões dos Estados Unidos o ensino da letra cursiva está em vias de extinção, com sua substituição nas escolas pela aula de digitação.

Se o teclado substitui a caneta, com o avanço dos laptops e com o aumento de conteúdos disponíveis na internet, a leitura em telas passou a fazer parte do nosso cotidiano, roubando-nos o tempo dedicado aos livros em papel, ao mesmo tempo em que a leitura passa por transformações e sofre a concorrência direta de outras atrações midiáticas cada vez mais presentes nos computadores.

Cenário brasileiro

No Brasil, apesar de nossos baixos índices de leitura, assistimos a uma rápida e poderosa expansão do número de computadores e do conteúdo disponível de textos na rede, especialmente em português. O país ocupa a terceira posição mundial em venda de computadores, abaixo apenas dos EUA e da China, sendo a metade de notebooks. Temos hoje 74 milhões de pessoas conectadas na internet. Para um país que tem poucas livrarias, considerando seu número de habitantes, essa notícia ganha importância maior que em outros lugares do mundo.

Os tablets também se aproximam gradualmente, embora, enquanto nos EUA 10% da população adulta já tem um leitor digital, no Brasil sua presença nas ruas ainda é tímida. A banalização em curso desse tipo de equipamento é, contudo, óbvia. Serve como exemplo a estratégia de marketing de uma das principais revistas do Brasil, que oferece um tablet a quem assinar a publicação. Há escolas e universidades fazendo o mesmo para aqueles que se matriculam.

Livro: objeto de desejo

Enquanto os limites ecológicos ligados à indústria do papel tornam os livros cada vez mais caros, no meio digital ocorre o contrário, com equipamentos tendencialmente mais baratos, capacidade de armazenamento maior e menor consumo de energia. Ou seja, a migração de boa parte do papel para o digital é inevitável. Um veredicto que não implica em querer decretar o fim dos livros “convencionais”, que provavelmente se transformarão num nicho de mercado, com espaço para produções especiais e elaboradas.

É provável que livro em papel se torne um objeto de desejo, apto a sobreviver em publicações de obras que tenham na plasticidade um elemento fundante, como nas edições de arte. Em outros setores é provável que o papel seja totalmente substituído. A Coreia do Sul, por exemplo, terá todos os seus livros didáticos editados em tablets já no ano de 2014.

Fronteiras desfeitas e indefinição de novos limites

No entanto, o digital transforma a leitura e a escrita de uma forma muito mais profunda do que pela simples substituição das gráficas e do papel: ele muda nosso entendimento do que seja “ler e escrever”. Num futuro próximo, teremos novas formas de expressão e novos lugares para a literatura, que por sua vez vai se transformar e se recompor em combinações com outras formas de arte.

Vivemos uma época onde as fronteiras conhecidas estão sendo desfeitas, os contornos estão borrados e novos limites ainda não estão definidos. Mas creio que existirão e serão cada vez mais específicos: cada obra e cada conteúdo exigirá muito mais de autores e editores, uma vez que os recursos disponíveis para materializá-los aumentam em número e complexidade.

Interseção com outras linguagens

Se antes baixávamos um livro em formato e-book ou pdf, agora temos os apps para termos o mesmo material nos tablets. Um app é um software. O que ele pode conter? Praticamente tudo. Textos falados, escritos, imagens, sons, interações em diversas camadas. Nós, escritores, seremos estimulados a trabalhar próximos àqueles que conhecem outras linguagens com mais profundidade. O que não elimina o livro-texto ou a prosa longa, e sim traz a possibilidade de fazermos obras novas em termos de expressões artísticas.

Provavelmente, em poucos anos teremos novo tratamento para algumas obras em papel, que atingirão certa aura de preciosidade e serão produzidas em tiragens reduzidas e exclusivas, tornando-se objetos remanescentes do passado, como hoje ocorre com os discos em vinil. Mas o que mais empolga é ver surgir novos formatos para as obras literárias, que são escritas e lidas simultaneamente online, se integram ao audiovisual e podem ser lidas por comunidades, que também participam dos seus desdobramentos enviando conteúdos e feedback.

Chamo os livros eletrônicos de “livres” justamente por trazerem em sua constituição a capacidade de agregar novas características ainda pouco exploradas, como crescimento rizomático, animação, criação de novas linguagens e interatividades muito mais sofisticadas que as atuais. Um cenário tão movimentado quanto confuso, no qual cabe a escritores, artistas, editores, jornalistas e produtores culturais desvendar as novas possibilidades e fazer as escolhas certas.

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kooyanisqatsi e eu

Memória de um filme que marcou para o jornal 10 Faces.

Kooyanisqatsi: life out of balance (vida em desequilíbrio)
direção de Godfrey Reggio, trilha de Philip Glass, 86 minutos, 1982

por Álvaro Andrade Garcia

Quando uma imagem vale mais que mil palavras ou seria, quando uma imagem suscita mais de mil silêncios, ou talvez fosse assim: mil imagens mostram uma mesma palavra.

Vi e ouvi Kooyanisqatsi pela primeira vez por acaso. Estava em São Paulo, vivendo um conturbado momento da minha vida. Entardecia, eu caminhava pela Augusta, andando a esmo, quando vi o cartaz do filme e resolvi entrar no cinema. Eu tinha um bom motivo para encarar aquela palavra entoada no filme de forma mântrica… kooo yaaaa nis qatsi. Ele foi escolhido o melhor filme pelo juri popular da Oitava Mostra de Cinema de São Paulo, naquele ano de 1984.

O que se passou naqueles 86 minutos, diante de pura música e imagens em sucessão, o tempo todo com a temporalidade alterada. Gravações quadro a quadro durante longos períodos de tempo (time lapses), slows e fasts, um crescendo de velocidade nos movimentos, pausas precisas em slow sobre as faces das pessoas, o sentimento através do gesto facial, e voltavam os engarrafamentos, a vida in the box da metrópole, seus óbvios movimentos, repetitivos e pixelatadados. Uma sinfonia com acordes e arpejos acompanha tudo isso. Um som preciso e totalmente integrado com as imagens. Músico e diretor trabalharam anos juntos nisso.

Sai do cinema em estado de choque. Já era início de noite. E as luzes da cidade, o trânsito, os prédios, tudo me jogava de volta ao filme. Era como sair de uma história que se passou na tela e encontrar ela outra vez ao seu redor, por toda parte, um contrário do que acontece em Rosa Púrpura do Cairo. E se eu já estava desequilibrado ao entrar, sairia completamente fora do eixo. Fui direto para a rodoviária e embarquei para Belo Horizonte, como se isso fosse resolver alguma coisa… e, bem, nunca mais fui o mesmo.

Há filmes assim, livros assim, discos, pessoas. Há momentos em que imagens nos despertam, como se fossem a peça que faltava para fechar o quebra-cabeça, catalizam, transformam cobre em ouro, adensam um pensamento que ainda era confuso e esparso. Depois de passar por elas, já somos outra pessoa, mesmo sem compreender por quê ou mesmo como.

Depois, revi o filme diversas vezes ao longo das décadas seguintes. E posso dizer que aí, além de me transformar, ele virou uma influência, de nova linguagem, sobre dizer o essencial. Como um filme sem diálogos ou texto podia dizer tanta coisa? No final do século 20? Persigo várias ideias cinematográficas que aprendi no filme, penso e escrevo sobre a experiência de viver nesse mundo urbano, nas grande metrópoles contemporâneas, imersos em tecnologia, cada vez mais distantes do ritmo natural.

Sei que os americanos ainda não estavam tão gordos, nas inúmeras cenas de rua e metrô. De resto, o enredo continua bem atual, de 1982 a 2011, as imagens já estavam todas lá: as centrais nucleares, as minas exaurindo a terra, a metrópole, os engarrafamentos, a vida in the box da grande maioria da população mundial.

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Lua de Maio

Despontou no céu algo que vulgarmente chamamos de lua. Com ela, em mim, algo que significava uma sensação de onipresença. Ela já radiava, lá no céu, mas me faltava uma palavra de som cristalino. A lua! Gritava dentro e redemoinhava. Assim mesmo, ela chegou em mim e subiu às altezas do céu só para devoltar para o outro lado. Zombou de mim, a lua, de graça, numa quina de rua, entre vigas de concreto.

Veio sono, nada. Varei a madrugada enluando também. Busquei reduto numa mesa de calçada, pedi um chopp e fiquei ali. A sombra de uma morena de coxas largas apareceu. Assim como estava, meio incapacitado, meio desfazendo a atenção, permaneci de olho nela, até desgravidar, virar rocha branca e serena. Se a morena sentiu meu segredo, não sei. Só quando era dia, eu, luar do céu, trasmontes busquei dormida.

Álvaro Andrade Garcia