Subject: Belgrade blues
Date: Wed, 21 Apr 1999 09:51:05 -0300
From: Santiago Arevalo
To: circular@encomix.com Belgrado Blues
Por: Jasmina Tesanovic
tradução: Álvaro Andrade Garcia
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26 de março
Eu espero que todos sobrevivamos a esta guerra, as bombas: os sérvios, os albaneses, os maus e os bons, aqueles que pegaram em armas, aqueles que desertaram, refugiados nas florestas de Kossovo e os refugiados de Belgrado, perambulando pelas ruas com suas crianças nos braços, procurando por abrigos inexistentes, quando o alarme das bombas toca.
Eu espero que os pilotos da OTAN não deixem para trás as esposas e crianças que eu vi chorando na CNN, quando partiam para seus alvos militares na Sérvia. Eu espero que todos nós sobrevivamos, mas não este mundo do jeito que está.
… Eu fui ao mercado na minha vizinhança, ele estava voltando a viver, adaptado às novas condições, novas necessidades: não há pão do estado, mas muito grão no mercado, não há informação na TV oficial, o que vale são as conversas entre a população assustada sobre quem está ganhando. Adolescentes apostam: foram nossos ou deles, os aviões que foram derrubados, nossos ou deles, quem mente melhor, quem melhor esconde as vítimas, quem expõe as melhores vitórias ou vítimas outra vez. Tudo como se fosse um jogo de futebol.
A cidade está silenciosa e paralisada. Mas ainda funciona. O lixo é levado, temos água, eletricidade. Mas onde estão as pessoas – nas casas, nas camas, nos abrigos. Eu escuto várias histórias pessoais de nervosismo. Estão todos nervosos, menos os que tiveram seu ataque de nervos no ano passado, quando a guerra no Kossovo começou. Estes são muito poucos, mas agora se sentem melhor: o perigo real é menos assustador que as fantasias de perigo. Eu não pude cope com a guerra invisível como cope com necessidades concretas: pão, água, remédios.
Eu penso nos albaneses do Kossovo, nos meus amigos e seus medos, eu penso que eles devem estar numa pior que a nossa: o medo aumenta só de pensar. Significa que não é o fim ainda.
28 de março
Toda noite eu vou com os amigos e família para a grande estação de metrô na vizinhança. Eu agora conheço as pessoas que já estão lá, de todas as idades e tipos. Eles chegam com bancos e conversa pequena. Nós pensamos em fazer um plano de emergência. Tentamos listar todos os possíveis desenvolvimentos da situação. Dificilmente alguém pode ser bom para nós, pessoas comuns que não podem acreditar em ninguém, que têm apenas alguns dólares nas bolsas e muita, muita experiência ruim. “Pelo menos não somos patéticos”, eu digo, “e nossas crianças não serão saqueadas”… Eu até digo: “minha filha será uma raridade, uma verdadeira beleza da Sérvia, pronta para morrer por nada!” Algumas culturas vão amar isso. Vai ser tão excitante para estes que temem as luzes e o trovão ver uma mirrada adolescente de jeans que não teme as bombas.
… Eu vejo o Jamie Shea na conferência de imprensa da Otan. Ele é terrivelmente preciso, você o ouve você ouve tudo isso, a realidade que ocorre para nós acaba sendo apenas um pequeno desvio do seu curso. Mas é claro que não é tão simples assim….
Eu luto por meu computador todos os dias, toda hora, todo mundo na minha família quer meu computador, o único em casa para estudar, jogar e comunicar.
Nós ouvimos nossos amigos do Kossovo, eles não querem falar no telefone, eles já estão vivendo o que provavelmente virá nos próximos dias: assassinatos, saque de apartamentos, casas, anarquia completa.
30 de março
Hoje não houve bombas. Dormi por 16 horas, sem alarme… Um jornalista da BBC disse que os sérvios são um povo com grande coração, eles não teriam assassinado o piloto do avião que caiu, eles teriam dado a ele pão caseiro e conhaque. Como podem então os generais da Otan acusar os sérvios de cometerem atrocidades contra os civis albaneses? Eu acredito em ambos…
Meu pai sonhava com bombardeios muitos anos depois que a guerra acabou, acordava durante a noite, me tirava da cama e levava ao porão: sonâmbulo. Eu me lembro dele fazendo isso, eu fiz isso noite passada, com a minha filha, algumas vezes. Eu sinto como se uma doença estivesse saindo do meu corpo, uma longa febre histórica, uma ansiedade enterrada que eu herdei por ser sérvia, de pai sérvio da Herzegovinia.
1 de abril
Passei a última noite no abrigo, três adultos, cinco crianças e dois cães. Este abrigo é uma casa com um bom porão próximo a uma estação de metrô bem profunda, a mesma onde passei a primeira noite de bombardeios sobre Belgrado, a mesma, anteriormente habitada por ciganos e mães com suas crianças. Nosso grupo era uma família psicológica, é interessante, fazemos grupos em bases psicológicas e não biológicas.
Nosso grupo estava unido no medo de ser acertado por uma bomba da Otan, ou por um guerreiro local. Ontem, um grupo de vândalos primitivos estava perambulando pela cidade, destruindo janelas e gritando contra tudo que sentissem diferente. Até que a polícia os assustou. Finalmente a polícia estava fazendo o que eu esperava que fizessem. Em 97, durante as demonstrações, eles estavam do outro lado…
… Nós estamos esperando bombas no centro de Belgrado, disse a CNN. Ao contrário, o que aconteceu foi a captura de três soldados americanos, assim disse outra vez a CNN. Esta é uma guerra suja, eu digo, pessoas no porão, soldados machucados na tv, refugiados albaneses chorando na tv, todo tempo dizendo aquelas coisas que as pessoas jamais deveriam ter que dizer, especialmente na tv. A dignidade humana aqui não vale nada. Primeiro de abril, dia dos tolos.
Meus pais estão sozinhos no seu apartamento, eles ouvem o alarme com dificuldade, eles assistem a tv oficial e a todo momento me ligam, dizendo “não se preocupe, vai tudo ficar Ok”. E eu me sinto melhor, a voz do meu pai me acalma, como quando eu era criança, ele me dá segurança. A segurança que eu não dou as minhas crianças. Ao contrário, este mundo não é mesmo um lugar seguro.
2 de abril
Hoje é Sexta feira santa… o filho de meu amigo ligou na última noite do campo de batalha. Ele quase não conseguia falar, ele dizia que estava em algum lugar sem dizer aonde, que estava Ok mas que alguns dos seus amigos não. A idade limite para voluntários que querem se alistar agora é 75 anos para homens. E para mulheres? Não há limites? Elas são frequentemente tão mais convictas do seu patriotismo.
Eu vejo um mar de refugiados orquestrados dos dois lados na fronteira da Iugoslávia, Macedônia e Albania. Isso tudo me lembra a cena que vi em 95, quando os sérvios de Krajina foram despejados na Sérvia por dias e dias, sem resistência, pensamentos, idéias de por quê e como aquilo estava acontecendo. Eu tinha uma idéia de que aquilo era orquestrado – tudo menos a dor e os atores eles mesmos, eles estavam sendo verdadeiros.
3 de abril
É manhã, uma bela manhã de sol, eu estou chorando… na última noite o centro de Belgrado foi bombardeado com uma intimidadora precisão, sim os alvos militares, mas apenas a 20 metros de um estava a maior maternidade do país, onde eu nasci e anos atrás dei a luz. Eles destruiram o ministério do interior: alguns dos meus amigos se lembram de terem sido interrogados ali.
Eu estou aliviada, feliz com a precisão da Otan, estava até chovendo, mas eu me sinto visível, exposta àqueles jovens pilotos responsáveis por atingir um alvo sem destruir um recém-nascido. Eles foram todos para abrigos, os bebês e suas mães, e eu estou chorando, aliviada, atormentada por toda esta questão de vida e morte, me lembro da minha chegada, eu era uma brava e chorava ao mesmo tempo.
4 de abril
Mais uma noite no abrigo. Outras duas pontes detonadas, a ferrovia para Montenegro foi destruída no território bósnio. Estes fatos me fazem claustofóbica, a cerca finalmente se torna visível em torno da nossa jaula. Aqui estamos, selvagens e maus sérvios do século XIII, alguns em jeans, muitos falando a Língua (o inglês), mas ainda assim diferentes, alienígenas.
Esta estratégia está completamente de acordo com os nacionalistas locais que dizem “quando a maternidade foi atingida pelo tremor das bombas, nossos bebês nem mesmo choraram, por que eles são bebês sérvios…” Bem, eu não sou um bebê, mas chorei ontem como uma louca, escutando a canção Lá Longe é a Sérvia. Um bela e triste canção da primeira guerra mundial, quando soldados sérvios foram à Grécia, para lutar, e poucos voltaram.
Meu avô foi um deles… Quando eu era uma criança ele cantava para mim esta música, quando fiquei adulta, cantava esta música fora da Sérvia, quando me pediam uma música típica daqui. Esta é uma música que sei cantar e fazer as pessoas choraram. Ontem, milhares cantaram-na na praça da República, durante o concerto. Mas eu não podia cantá-la mais, ela não é mais minha canção, esta não é minha Sérvia mais, não aquela pela qual meu avô lutou. Longe, longe é a minha Sérvia. E eu estou agora presa e em exílio, no meu próprio país.
5 de abril
A pior coisa, num certo sentido, é que nada realmente acontece. Na manhã estamos vivos, nós temos comida, eletricidade, uísque. Mas por outro lado, nós estávamos aqui, onde tudo isso aconteceu, mais uma vez, não para nós, mas para alguém. Nestas falsas execuções, nós sobrevivemos à nossa própria morte toda noite.
Eu entrei numa farmácia. Ela estava mais cheia que antes, mas não era possível obter aspirina, tranquilizantes, e todos estavam pedido por isso. Outro detalhe, as lojas de doces estão lotadas, as pessoas compram doces como loucas – angústia emocional, falta de amor…
6 de abril
Hoje é o aniversário do bombardeio de Belgrado em 41 por Hitler. Entretanto, o maior dano a Belgrado foi feito no final da guerra por bombardeios dos aliados, a chamada libertação ou as Bombas Inglesas. Eu sei que todos aqui vão usar este paralelo para se sentir melhor ou pior…
Eu estava sentada no terraço esta manhã, o sol estava me banhando com grnde amor, eu sonhava com o mar e o céu claro do qual falamos na última noite, esperando pelos ataques aéreos noturnos, pelos aviões que sobrevoam nossas cabeças. E eles vieram outra vez. Mas não bombardearam Belgrado na última noite, outra vez outros lugares, outras vítimas. Eu me sinto tão culpada, mais que nunca, por este Outro. Meus amigos e inimigos de todo o mundo me perguntam: você é capaz de imaginar quão terrível é estar no Kossovo agora? Eu consigo, realmente consigo, e me culpo, por estar me sentindo mal aqui sem ter o horror que eles têm lá. Mas nossa guerra, pelos últimos 10-50 anos tem sido sempre este tipo de horror invisível, temos ainda um longo caminho até a catarse, para nos livrar da nossa má consciência, mitos equivocados, inércia…
Sinto-me desligada do resto do mundo, mais pontes abaixo, mais amigos e inimigos nos apontando os dedos para dizer quão maus somos, mais pessoas loucas fazendo carreira em insistir no fato de sermos pessoas divinas. E o povo? Nos porões esperando por nada.
Sonhei na última noite com bombas caindo no meu porão, na minha cama e eu depois me sentindo aliviada, livre. Eu deveria parar de escrever, detesto meus sonhos, pensamentos e idéias. Isto é um vício
…
7 de abril
Correndo para o abrigo com comida, saindo do abrigo para comprar comida. É primavera, quem se importa? Ligando para amigos e parentes, trocando necessidades, mercadorias, medos, informação: quem foi, quando foi atingido, quem é o próximo. Nunca um porquê. Não vejo as notícias mais, eu as detesto, todas, de todos os lados, todas as verdades. Elas parecem excessivamente verdadeiras, eu não tenho distância. A Iugoslávia está desabando, que dó… aquelas pontes. Pontes sempre mandam boas mensagens: pessoas construindo pontes, pessoas atravessando pontes… Vítimas? Eu não sei, que dó por aqueles que desperdiçam vidas inocentes por que apenas alguns não podem encontrar as palavras adequadas.
É este meu futuro, correndo para dentro e fora deste abrigo, como um rato? As escolas estão fechadas, as crianças tem olhos seriamente crescidos. Dentro e fora dos abrigos. É este nosso futuro?
8 de abril
Noite passada assentamos no terraço para esperar… Ouvimos algumas grandes detonações. Meu ouvido direito ficou surdo e dolorido, como se estivesse viajando num avião. Nós começamos a apostar, meu lance absoluto venceu-me a aposta, e é claro meu corpo feminino, como um mapa de dor deste mundo. Um prédio governamental foi atingido, a apenas um quilômetro de nós. Bem, nós estávamos esperando por isso faz dias, nós do centro de Belgrado. Nós começamos a rir com alívio, quando ouvimos que não houve Dano Colateral. É assim que a Otan chama a Morte. A Otan … os Agressores Assassinos da tv Sérvia.
A voz do meu pai estava estremecida, ele não escutava nada, ele não via nada, ele já está surdo e velho para mover. Mas continuava dizendo: “o que podemos fazer agora, nada, podemos? Eu pensei que era a frigideira caindo na cozinha, mas então eram as bombas, o que podemos fazer agora?”
Na última noite o concerto de rock moveu-se para a ponte. A ponte sobre o Danúbio, que une a nova e a velha Belgrado. Nós somos famílias partidas entre as duas Belgrados, mas não nos atrevemos mais a atravessar a ponte, para ficar com nossa parte da família, no caso de afundarem todas as pontes.
Ontem teve futebol. Um jogo entre Grécia e Iugoslávia. Foi um grande evento nacional, as pessoas estavam chorando, cantando, beijando, e os jogadores tiveram dificuldade para jogar. Eu sempre pensei que a energia destas platéias podia finalmente ter uma causa humana: parar a guerra.
Um comentarista militar da BBC descreveu os sérvios como pessoas horríveis e incrédulas, que não pensam em nada a não ser em suas próprias vidas. Eu fui seriamente atingida por seu comentário, eu não gosto de louvar ou degradar qualquer povo. Eu nunca havia imaginado que há algo como o Povo Britânico, mesmo depois de passar 12 anos numa escola inglesa. Mas depois do seu comentário eu percebi que existe. Eu fico pensando como o povo inglês reagiria nas condições dos albaneses e dos sérvios.
Muito vem de nós nestas situações limite, muitas descobertas: hoje sei que meu medo, meu enorme medo, com quem lido todas as noites, quando as sirenes soam, poderia apenas ser balançado por algum ato de heroísmo. Se eu soubesse como parar a guerra…
A mulher cigana que mora no porão ao meu lado, minha velha amiga, está calma desde que os bombardeios começaram. Sua única amolação é o fato de não poder mais comprar cigarros. Ela sempre me pede um quando passo por ela. As suas falas agora são balanceadas e sábias, não usa linguagem chula, não amaldiçoa, nem agride. Ao invés de ir a uma palestra “As razões da Agressão da Otan à Iugoslávia”, na Alternative Belgrade University, fiquei escutando esta mulher. Eu não gostei do título. A diferença entre sua filha cigana e a minha agora é mínima, ambas vivemos nos porões, com muitas emoções, poucos cigarros e muita cerveja…
Um menino cigano me pediu um centavo. Eu disse que eu havia dado à minha filha. Ele me perguntou quando pintamos nossos ovos de páscoa. Eu disse, “eu não sei, não acredito em deus”… mas vou pintar meu cabelo para a páscoa, ele branqueou demais estes dias.
9 de abril
Eu me lembro, antes da guerra, esta era uma data considerada boa para fazer seu bebe se você desejasse tê-lo no dia primeiro de janeiro de 2000. Eu me lembro, o tanto que isto era ridículo e idiota, eu lembro agora como era sugestivo também. Agora que estes dias vieram, ninguém nesta parte do mundo tem estes planos. Agora apenas os cochichos sobre o que faremos se tropas entrarem na Iugoslávia. As mulheres estão esperando não estar grávidas ou pensando no que fazer com seus filhos se eles tiverem que usar armas. Duas de minhas amigas, pacifistas, feministas, disseram-me já, se chegar a situação de tudo contra tudo na guerra terrestre, elas irão pegar em armas ao invés de ficar escondidas tomando tranquilizantes. Pensei em outra mulher que acabou de ter um filho. Ela está fechada num porão e sua criança está doente. Ela não melhora ou piora a situação por Ter um bebê na hora errada, no lugar errado, pelo contrário, ela faz se tornar visível o lugar errado e a hora errada, e as ações erradas.
A lógica militar está entrando na linguagem do dia a dia. Eu nunca gostei de jogos de computador, ou mesmo de jogos competitivos. Quando a competição entra na minha mente me sinto paralisada, eu sinto diferente de outras pessoas, nem pior nem melhor.
Falamos de nos adaptar às condições da guerra, encontrar outro trabalho, novas formas de relaxar e viver. Minha amiga, uma professora universitária, disse que vai limpar casas para velhos, outro está trabalhando com crianças ciganas. Estou pensando em fazer uma escola para as crianças que vivem soltas por ai, sem hábitos de trabalho, tarefas.
Mas o assunto do dia é As Tropas Terrestres. Virão ou não? Não nos preocupamos com nossa vida pessoal, a maioria de nós não vai aos abrigos, não pensa em deixar o país… Nós estamos apenas ficando aqui, quem se importa por quanto tempo, não temos uma saída decente, somos reféns de nossa própria vida, sem poderes.
10 de abril
Hoje decidi limpar a casa, a cabeleireira da vizinhança também abriu, e está trabalhando. Todos ignoram o alarme que não parou, mesmo durante o dia. Os pilotos devem estar frustados por não ter jogado todas as suas bombas na última noite, o briefing da Otan vai ser tenso, os comentaristas militares vão especular sobre a nova ordem mundial, mas tivemos uma noite pacífica. Sem boom booms, apenas os aviões locais, que tem agora um som bem mais humano.
Amanhã é a páscoa da igreja ortodoxa. Minha filha pintou ovos. Não somos religiosos, nunca fomos, ela disse que estou enfadonha, eu pensei que seria melhor deixá-la fazer algo construtivo. Ela é uma criança da guerra, e quem sabe, ela pode ser uma criança de Deus. Ela disse ontem: “tenho um sentimento que eu vou ser morta quando tiver dezesseis, por que você então me amola pedindo para ir à escola?” Eu apenas disse “você vai para a escola de toda maneira.
11 de abril
Apenas um pequeno pensamento de páscoa: se alguém está assassinando, estuprando, fazendo a faxina étnica nos albaneses, por que eu devo ser poupada disso? Meu amigo, uma pessoa muito decente, não pode acreditar que isto esteja acontecendo. Eu acredito muito, muito que isso está acontecendo.
Na última noite Belgrado estava de joelhos, sirenes acionadas, mas multidões de pessoas nas igrejas, em torno das igrejas, para o serviço da meia noite. Estive olhando as pessoas: velhos, simples e pobres, alguns snobs e aqueles que realmente acreditam. Todos com a mesma trágica expressão.
Ao mesmo tempo, por outro lado, na ponte sobre o Sava e Danúbio, o concerto estava enfurecido, as pessoas estavam furiosas, patrióticas, acreditando na sua força ao invés da de Deus. Eu não pude encontrar meu lugar em ambos os lados. Eu não acredito em Deus, mas eu não acredito em mim mesma contra o mundo. Eu fico apavorada quando o alarme soa, e eu não quero que minhas crianças se arrisquem por nada e nem por ninguém. Então fui ao videoclube pegar alguns filmes para ver. Peguei um com o Mickey Rourke, meu ator favorito até 18 dias atrás. Ele estava tão idiota, eu pensei, ele não sabe mais nada da minha vida, ele não me ama mais, então não posso mais adorá-lo. Não dividimos a experiência da minha vida. E então teremos que separar, depois de todos estes anos…
Fui para a cama cedo e dormi profundamente. Resolvi desligar minha geladeira, que faz um barulho pior que os ataques aéreos. Decidi também limpá-la hoje, apesar disto ser um mau presságio limpar na páscoa, minha avó costumava a dizer.
Quando tinha cinco anos, minha avó me levou secretamente para a igreja na páscoa. Meus pais eram comunistas e não podiam saber. Eu me lembro do medo e da excitação quando entrei no maior prédio que eu jamais vi na vida, sentindo estranhos perfumes e vislumbres das velas, da laje ao piso, tudo ao redor de mim. Depois de um primeiro momento de alegria, eu lembro até hoje, pois este sentimento não me abandonou, me veio um sentimento de nadeza, de despoder, a visibilidade da minha pequena pessoa. Eu comecei a chorar como uma louca, enquanto berrava para minha avó: … “serei queimada, vou ser punida…” Ela saiu comigo, muito arrasada por sua missão infrutífera. Ela me comprou um sorvete e um cão de brinquedo. Nunca mais falamos sobre a páscoa ou sobre a Igreja. Nunca mais, até alguns anos atrás, quando entrei numa igreja outra vez, o sentimento era o mesmo, mas eu era mais forte, minha crise mística estava no fim, não resolvida, mas acabada. E minha avó não estava viva mais, para me dar uma resposta ou conforto.
Álvaro Andrade Garcia