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A Arte da Imaginação


I – Introdução

A idéia de escrever esse ensaio (1) se consolidou nos últimos quatro anos, depois de longos anos de atividade criativa na produção de obras exibidas em meios digitais – CD ROM e Internet. Em 15 anos de trabalho, imerso nestes meios, vi transformarem-se paradigmas e conceitos, praticamente ano após ano. E agora meu interesse se volta para o surgimento de um novo ambiente comunicativo, afeito a uma nova arte.

Apesar de trabalhar num ambiente digital, durante esse período continuei produzindo arte em outros meios. Desde 1985 me dedico à literatura, tendo publicado 8 livros impressos de poesia e 2 de prosa. Tenho me dedicado também à produção de audiovisuais, documentários e autorais, exibidos em televisão e copiados em fitas de vídeo.

Meu primeiro contato com computadores foi em 1987, quando comecei a fazer programas de videopoesia. O computador pessoal estava começando a se tornar uma realidade e logo depois, no início dos 1990, a multimídia surgiu, com a disseminação de computadores com processamento gráfico, leitores de CD ROM e suporte para áudio e vídeo. Foi quando comecei minha carreira de diretor e roteirista de projetos de multimídia.

Vários textos anteriores que escrevi acompanham a evolução das idéias que me levaram a este texto. Em 1987 escrevi O Quadro Cinético, em 1994 Videopoesia e Poesia e Tecnologia, em 1996 foi a vez de Multimídia, Imaginação e Poesia Zen, em 1998 foi publicado Multipoesia, Um Nome Provisório Enquanto Surge o Novo, e finalmente, em 2000, Video Digital e Vídeo Interativo. (2)

O questionamento que me levou a escrever esse texto se relaciona com o nome multimídia (3), dado à uma nova forma de comunicação multisensorial e interativa, na qual as mídias conhecidas são integradas e gerenciadas pelo computador que se transforma num veículo de comunicação. Eu acho que o nome privilegiava a multiplicidade de meios em detrimento da sua integração. Cheguei até mesmo a cunhar o termo intersenso para me referir a estes softwares interativos e multisensoriais, mas o nome multimídia continuou, cada vez mais universalmente usado e cada vez mais inespecífico.

Esta fragmentação midiática sem algo que integrasse os meios em um novo sistema ordenador repercutia na minha vida pessoal e na dos artistas digitais que conheço. Eu era o quê? Poeta, escritor, diretor, programador, coordenador, roteirista, fotógrafo, músico? Até hoje, os artistas que trabalham em meios digitais são categorizados de forma estranhamente ampla e inespecífica. Artistas e obras em meios digitais, artistas multimídia, criadores em novos meios… De alguma maneira, ainda não foram privilegiados os aspectos intrínsecos da arte e da comunicação que surgiu junto com a evolução tecnológica e é isso que pretendo fazer.

Há um conceito que define com mais precisão minha situação atualmente: sou um imaginador, um propositor e mantenedor de imaginações. Então por que não dizê-lo e mostrar o por quê? É o que pretendo, tecer um raciocínio que acompanha o surgimento de uma nova forma de expressão, suportada pelos meios digitais e mais especificamente uma nova forma de arte que se apropria dessa nova matriz tecnológica e comunicativa.

Considero este ensaio um texto inaugural, por isso há um amplo espaço para incorporação de novas idéias e conceitos a esse primeiro insight, além de novos desdobramentos que ainda não tenho em mente. Considero o texto incompleto e aberto a incorporações e exégeses. Ele é tornado público para iniciar uma conversa sobre esse assunto e não para esgotá-lo.
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II – Antecedentes e conjuntura atual

Vivemos um momento importante na história da comunicação através de computadores. Se olharmos brevemente para interfaces (4) de computadores pessoais, encontramos uma evolução que veio da linha de comando em texto para as interfaces gráficas de hoje, baseadas na metáfora da mesa de trabalho (5). Essa evolução, entretanto, chegou a um ponto onde precisa se adequar às novas funções comunicativas que os computadores passaram a ter, especialmente a partir da década de 1990, com o surgimento da multimídia e a expansão da internet.

Quando o computador deixou de ser uma ferramenta de trabalho e se tornou um veículo de comunicação, sua função mudou consideravelmente.Tanto é que hoje, boa parte da pesquisa tecnológica nos hardwares busca resolver essa questão: redes sem fio, monitores de tela plana de grande tamanho, redes de alta velocidade, conectividade com celulares e pads, sistemas de armazenamento para vídeo, etc.

Do ponto de vista de software, a necessidade de mudanças também surgiu. A interface dos sistemas operacionais que simula a mesa de trabalho tem seus dias contados. Hoje uma nova geração de usuários usa ferramentas iconizadas em softwares cujos ícones já não remetem ao objeto original, desconhecido deles. É que com a popularização do computador, as pessoas acabaram por substituir as ferramentas tradicionais de trabalho. Para dar um exemplo: quantos web designers que usam programas de desenho conheceram o aerógrafo? Entretanto, na interface dos programas existe um ícone que remete ao desenho dessa ferramenta, desconhecida dessa geração.

Com o passar do tempo, certamente essa situação vai se agravar. Por isso se pesquisam opções para a mesa de trabalho. Já se fala na nova interface do futuro, imersiva, onde o usuário interage com a informação num ambiente multidimensional. Diversos sistemas avançados de realidade virtual (6) já foram desenvolvidos e suas tecnologias se incorporam aos computadores pessoais, especialmente nos ambientes dos jogos e softwares de autoria de multimídia.

Com a universalização da internet passamos a nos familiarizar com a metáfora da página eletrônica, composta e diagramada com texto, fotos e elementos gráficos, com alguma quebra de linearidade através de ligações entre documentos realizadas por hipertextos. Vídeo e áudio eventualmente são acessados em janelas que simulam uma tela. Essa metáfora, uma representação de páginas dos meios impressos em computador, tem muita dificuldade de lidar com elementos de mídia que necessitam de temporalidade, como vídeo, áudio e animações, mas foi a primeira a nos mostrar que o computador podia ser usado para comunicar e não apenas para trabalhar.

Simultaneamente, os sistemas de autoria de multimídia nos trouxeram a metáfora do teatro e cinema para as interfaces de computador, introduzindo a linha do tempo. Pense em objetos de mídia como atores, a tela como um palco, coloque seus atores no palco, distribuídos ao longo de uma linha do tempo e programe suas interações. Assim funcionam muitos dos softwares usados na autoração de multimídia.

Mais recentemente ainda, para lidar com o crescente aumento do conteúdo rico em vídeo e áudio que se dissemina pela internet, CD ROMs e DVDs, ganhou importância a metáfora do console de mídia, uma representação de um controle remoto de eletrodoméstico na tela, algo como o painel de um carro ou o cockpit de um avião. É uma metáfora simplista, onde o usuário aciona, desaciona, sequencia e faz ajustes nos seus vídeos e áudios. A informação audiovisual agora está numa janela, cercada de instrumentos de controle.

Para chegar ao fio da meada, é preciso ressaltar o papel fundamental da internet na transformação do computador em veículo de comunicação. A interconectividade mundial e a possibilidade da interação entre miríades de canais de produção e consumo de informação se tornou uma realidade, que agora avança com o aumento da velocidade dos meios físicos de comunicação, o que tem permitido trocas imediatas de maiores quantidades de dados, vitais para aplicativos com uso intenso de meios audiovisuais e sistemas que usam interação em tempo real.

Além disso, a internet é fundamental na disseminação do conceito de hipertexto, cunhado por Vannevar Bush, em 1945 (7). Ao invés de um sistema de manuseio e arquivamento da informação baseado em estruturas hierárquicas e classificatórias dos bancos de dados tradicionais, a informação no hipertexto se constitui em nós, aglomerados de informação – clusters, cachos, que através de ligações, estabelecidas de forma associativa, podem estabelecer redes por diversas formas de afinidades, de uma maneira mais próxima à que fazemos nos nossos processos mentais. Uma palavra num texto remete a outro texto que remete a outro…

Posteriormente, com a disseminação de recursos computacionais de suporte a outros meios além do texto, tais como capacidade para processamento gráfico, exibição de fotos e desenhos, vídeo e áudio, o termo foi ampliado para hipermídia, onde não apenas textos se referem associativamente a outros, mas qualquer elemento de mídia se refere a qualquer outro, através dessas ligações associativas. Os nós de informação se tornam documentos compostos com a presença de elementos diversos de mídia.

Como veremos a seguir, a imaginação efetiva uma nova metáfora que abandona as metáforas usadas nos softwares atuais. O que não significa que não irá incorporar, ressignificando, muitas das características úteis dessas interfaces atuais. Seguramente, o conceito de hipermídia será incorporado, pois o que se pretende é dar a ele um ambiente mais adequado a seu pleno desenvolvimento.
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III – A Imaginação

Com o passar do tempo, imerso neste ambiente em transformação, ficou claro para mim que uma nova forma de expressão, uma nova arte, um novo veículo de comunicação estava surgindo. Precisava achar um termo que me ajudasse a melhor compreender o que estava acontecendo e que me ajudasse no trabalho, na criação de obras expressas dessa maneira.

Para chegar a esse conceito parti da dificuldade pessoal de expressar minha atividade criadora e da minha percepção da evolução das interfaces e dos softwares de comunicação em computador. Pensava que multimídia privilegiava a diversidade ao invés do unisenso, e já me impressionava com a incompetência bastante comum na realização dos sofwares. Boa parte deles recorria ao uso sobreposto de meios sem interrelação entre eles, apenas para ser considerado um software multimídia.

Sempre fui um crítico da ‘ditadura pornográfica’ que se impunha a eles. Os programas têm que usar muitos meios para serem uma obra multimídia? Uma voz em solo não seria considerada, mesmo que essa fosse a melhor forma para expressar uma idéia. Ora, nem sempre o excesso de meios se adequa a uma expressão.

Tudo continuava evoluindo numa direção: nós mesmos, como pensamos, como manuseamos a informação no mais sofisticado sistema jamais criado para isso. O próprio termo hipertexto nos remete a essa idéia, não é a tôa que o clássico texto de Vannevar Bush se chamava Como Nós Talvez Pensemos.

Revendo minha experiência, me aprofundando no que dizem as pesquisas mais recentes em neurociência, relendo autores que tratam da evolução dos meios digitais ampliei consideravelmente a compreensão sobre os acontecimentos nessa área. Busquei então repensar tudo o que aprendi a partir de uma espécie de zero. Na verdade, partir de uma situação descategorizante-recategorizante, onde encontrasse uma nova terminologia que fosse mais útil e adequada ao que estava em curso no meu pensamento e ação.

A palavra que um dia me apareceu foi imaginação. Poderia ser pensamento, imagética, arte mental, etc. Em chinês o ideograma que representa esses conceitos é o mesmo. Mas escolhi imaginação. Aqui a palavra é mais um invólocro, o importante é a definição que irei traçar para esta forma de comunicação. O importante é delinear algumas das suas características a partir dos primeiros experimentos criativos com esta proposta, é chegar às características da nova arte que se apropria desse universo disponível.

A definição da imaginação enquanto meio de comunicação é uma evolução da definição de multimídia. A imaginação é uma forma de comunicação multisensorial e interativa, mediada também por sistemas computacionais, como é a multimídia, mas avança na busca de uma nova metáfora que abandone a metáfora da mesa de trabalho, a metáfora da página gráfica, a metáfora geográfica, a metáfora da linha do tempo e a metáfora do console, usada nos softwares atuais. A imaginação é fruto da incorporação de linguagens e meios numa nova linguagem e meio e não de sua utilização e justaposição.

A imaginação é baseada na criação de ambientes computacionais, chamados aqui de extensões mentais colaborativas, que são propostas e mantidas por uma comunidade. Esses ambientes, por sua vez, também são interativos com outras comunidades conectadas em redes.

Na sua construção usei metáforas que remetem diretamente ao funcionamento do cérebro. Os blocos de construção desses ambientes são chamados de imagens. E certos estados mutantes de articulação entre elas, através de ligações e diagramações, são chamados de estados mentais e de consciência e inconsciência. Por fim, temos o ambiente do software como um todo, se assemelhando a um organismo informacional vivo, o qual chamei de Imaginação.

Uma imaginação, como um filme, um livro, uma peça de teatro, um quadro.

Este ambiente contém imagens em permanente fluxo e conexão umas com as outras. Tal processo ocorre perceptivelmente e também imperceptívelmente, através de interações e outras ações previstas em códigos escritos no software. Usando a metáfora mental, num certo tempo teremos acesso apenas a uma parte das imagens, que trazemos para o foco, num processo semelhante ao da consciência, enquanto outras permanecem desapercebidas, porém interagindo com o todo.

A seguir, uma descrição do neurocientista Antônio Damásio sobre o funcionamento da nossa mente e como isso pode ser transposto com algumas limitações e adaptações para o ambiente computacional comunicativo que estou propondo. (8)

“O processo a que chamamos mente… é um fluxo contínuo de imagens, muitas das quais se revelam logicamente interligadas. O fluxo move-se para a frente no tempo, depressa ou devagar, de forma ordeira ou sobressaltada, e algumas vezes, avança não apenas numa sequência, mas em várias. Outras vezes, as sequências concorrem, convergente ou divergentemente, e algumas vezes sobrepõe-se. O pensamento é uma palavra aceitável para traduzir um tal fluxo de imagens.”

As imaginações, propostas, mantidas e interagindo com comunidades, são de fato extensões mentais colaborativas em ambientes computacionais, onde grupos expressam e lêem suas idéias na forma de imagens interativas, que se constróem-destróem como um organismo vivo. Estas imaginações, evidentemente, se relacionam também interativamente com outras, trocando imagens, estados mentais, comunidades, etc.

Antes de prosseguir desenvolvendo a idéia, gostaria de definir um pouco melhor o termo imagem, no sentido que uso aqui. Para isso, recorro novamente ao neurocientista António Damásio, pois é muito importante agora descolarmos definitivamente o termo da visão, tendo dele uma compreensão mais ampla, que será muito útil mais adiante.

“O termo imagem não se refere apenas à visão… Pelo termo Imagem quero significar padrões mentais com uma estrutura construída com a moeda corrente de cada uma das modalidades sensoriais: visual, auditiva, olfativa, gustativa e somatosensorial … que inclui vários sentidos: tato, muscular, temperatura, dor, visceral e vestibular… A palavra imagem não se refere apenas às imagens visuais e não se refere apenas a objetos estáticos… Quando utilizo o termo imagem, quero sempre significar imagem mental. Não utilizo a palavra imagem para me referir ao padrão de atividades neurais que pode ser encontrado através dos atuais métodos da neurociência, nos córtices sensoriais quando estão ativos.”

As descrições de como as imagens são produzidas na mente humana, também de António Damásio, vãoi nos ajudar a compreender como podem se organizar as imagens no meio imaginativo, em ambiente de computador.

“As imagens são construídas quando nos ocupamos de objetos, do exterior do cérebro para seu interior, desde pessoas e lugares a dores de dente; ou quando reconstruímos objetos a partir da memória, do interior para o exterior. A produção das imagens nunca pára, enquanto estamos acordados, e mantém-se até durante uma parte do sono, como se pode demonstrar sempre que sonhamos.”

“As imagens são a moeda corrente da mente, as palavras que estou a usar para transmitir estas idéias formaram-se em primeiro lugar como imagens de fonemas e morfemas – imagens auditivas, visuais ou somato sensoriais -, e só depois foram colocadas nessa página de forma escrita. Do mesmo modo, estas palavras agora impressas perante os olhos do leitor são processadas em primeiro lugar como imagens verbais, para em seguida darem lugar à ativação de outras imagens, agora não verbais, com as quais os conceitos que correspondem às minhas palavras podem ser exibidos mentalmente.”

“As imagens podem ser conscientes ou inconscientes. No entanto devemos notar que nem todas as imagens que o cérebro constrói se tornam conscientes. há uma enorme desproporção entre o grande número de imagens que são constantemente geradas e que competem umas com as outras, e a janela, relativamente pequena, através da qual as imagens se tornam conscientes – a janela através da qual as imagens são acompanhadas pela sensação, imagética também, de que estamos a apreendê-las. Por outras palavras, falando metaforicamente, existe realmente um subterrâneo debaixo da mente consciente e esse subterrâneo possui diversos níveis. Um desses níveis é composto por imagens a que não foi prestada atenção, um outro nível é composto por padrões neurais e relações entre padrões neurais que subentendem todas as imagens, quer estas eventualmente se tornem conscientes ou não. Um outro nível ainda, está relacionado com a maquinaria neural necessária à manutenção de arquivos de padrões neurais na memória, o tipo de maquinaria neural que abrange disposições implícitas, inatas e adquiridas.”

A imaginação é um espaço-tempo possível, um ágora presente com uma certa duração de passado e futuro, onde ocorrem fluxos e ordenamentos de imagens organizadas em forma de cachos (clusters), constelações Benjaminianas (9), e em linguagens ressigificadas. Uma imaginação começa a partir de uma proposta que alinhava condições iniciais de publicação da informação e um modelo de interação das comunidades correlatas a ela, especialmente a comunidade mantenedora e as comunidades interativas.

Quando começamos não sabemos onde estaremos, o que seremos. A obra começa dessa maneira, estabelece-se um tempo para ela e ela vai se construindo. Não lhe falta isso ou aquilo, nem ela está totalmente publicada, nem totalmente em rascunho. Ela é o que pode ser agora, e muitas coisas não estão lá por que não se estabeleceu ainda o tempo para que se fizessem. O tempo da imaginação faz parte da sua sintaxe. Seus padrões de evoluções são definidos pelas comunidades ativas.

A imaginação recorre ao conceito de versão, como nos softwares, que começam um dia e estão em permanente mudança depois, na medida em que surgem implementações, novas formas, possibilidades, avanços tecnológicos, etc. As obras nunca estarão acabadas depois de publicadas e isso é uma mudança substancial.

Como já vimos, elas adquirem o que chamo de organicidade, características que compartilham com modelos biológicos e também com o cérebro humano. Elas estão em permanente mutação, nascem, morrem, crescem, regeneram, duplicam-se, lembram-se, esquecem-se, criam conexões, etc.

O neurocientista António Damásio nos diz em seu livro O Erro de Descartes: (10)

“… a operação dos circuitos de neurônios depende do padrão de conexões existentes… a experiência modela o design dos circuitos. Além disso, em alguns sistemas mais que outros, as potências sinapticas podem alterar-se ao longo da vida do indivíduo para refletir as diferentes experiências do organismo e, como resultado o design dos circuitos cerebrais continua também a alterar-se. Os circuitos não são apenas receptivos aos resultados da primeira experiência, mas repetidamente flexíveis e suscetíveis de serem modificados por experiências contínuas…”

“… Alguns circuitos são remodelados vezes sem conta ao longo do tempo da vida do indivíduo, de acordo com as alterações que o organismo sofre, outros permanecem predominantemente estáveis e formam a “coluna vertebral” das noções que construímos sobre o mundo interior e exterior.”

A narrativa aqui não é algo apenas pré-definido, as comunidades podem montar seus sequenciamentos, as imaginações e planos focais, as consciências e inconsciências. O foco perceptivo de objetos dispostos no espaço-tempo contínuo, segundo suas afinidades causualidades e seu multi-sequenciamento, faz parte da sintaxe das obras. E a troca destas consciências-inconsciências entre usuários das comunidades também.

As imagens pulsam, comunicam-se através de vários meios sensoriais, se refazem ao acaso, ao avesso, exploram combinações sintáxicas novas, rumos aleatórios e não lineares. Os vídeos se tornam interativos e multifluxos (multistreaming videos), com alinhamentos e desalinhamentos em relação a diversas linhas do tempo simultâneas, coordenadas ou aleatórias, passíveis de interação com as comunidades. Os áudios se configuram associados a textos, fonemas, sons incidentais, articulados em linguagem musical. Criam-se paisagens sonoras (11) no ambiente mental.

Essa nova forma de expressão e comunicação abole as fronteiras que já eram tênues entre diversas formas de linguagens num ambiente digital, as fronteiras entre criador e seus públicos, as fronteiras entre idiomas, estilos, etc. Enfim, não cabe mais dizer que nesses ambientes temos linguagens e múltiplas entradas e saidas sensoriais atuando simultaneamente. Texto impresso, texto falado, voz, música, som ambiente, gestos, linguagem matemática, linguagens de programação de software, fotografia, cinema, vídeo, animação bi e tri dimensionais, teatro, artes plásticas, etc se tornam aqui elementos descategorizados do seu sentido original enquanto meio ou linguagem.

A nova linguagem surge da integração dessas linguagens, desses meios, dos sentidos do homem. O que se propõe é a construção de uma nova linguagem incorporando esses elementos, o que se propõe é algo muito simples e poderoso: a construção de modelos de comunicação baseados em como sentimos e pensamos, em como vasculhamos, articulamos, internalizamos e externalizamos o que recebemos pelos sentidos.

A imaginação se estrutura como uma obra que se comunica via entradas-saídas multisensoriais digitalizadas e se constitui em uma base de dados digital com uma sintaxe mutante baseada em linguagens de programação que ordenam os elementos sensoriais da obra. Esta nova sintaxe permite, entre outras coisas, a interferência permanente dos criadores e dos públicos leitores na obra, categorias estas que passam também por profundas modificações, tendendo a desaparecer, como veremos adiante.

O tempo é tratado como fluxos. Não temos um único vetor temporal linear. A noção de simultaneidade ressurge vigorosa. Pode-se esperar uma linha de tempo da obra, que encerra outros fluxos, na medida em que a obra vai sendo construída. Mas cada objeto, cada momento tem uma linha do tempo própria e mutante, interativa com comunidades e usuários que as moldam também a seu tempo. Ocorrem fluxos paralelos num instante de tempo, vetores temporais podem ser invertidos. E essas novas possibilidades nos abrem as portas para os multifluxos interativos, especialmente os audiovisuais, nos fazendo abandonar o conceito da linha do tempo unidirecional e única, que rege as linguagens atuais do cinema e do vídeo.

Entretanto, é preciso evitar a idéia de que para se conceber obras de imaginação tudo tem que interagir e nada pode ser linear. Na nossa mente há muitas narrativas que pedem linearidade, há imagens que devem ser pouco interativas. Passada a euforia do surgimento dos meios não lineares e interativos, chegou a hora de saber usar esses elementos de linguagem de forma mais balanceada. Linearidades e outras formas de sequenciamento ou não, interações ou não, quando como e se usar, entre quais elementos, são decisões que fazem parte da nova sintaxe que se delinea.

Vejo o tempo agora como o componente ação de imaginação. O tempo corresponde a movimento. E a imaginação é capaz de lidar com dimensões temporais as mais diversas. Aquelas que nossos olhos e ouvidos percebem e também aquelas perceptíveis apenas pela comparação feita pela memória de imagens distintas. Existem animações que são fruto de movimentos cuja duração entre estados é maior que a nossa capacidade de lhes perceber a variação de luz ou a propagação sonora imediata. Pense numa criança crescendo, numa plantação. A maioria dos movimentos têm durações imperceptíveis ao nosso aparato sensorial audiovisual sem interferência da memória, e estas movimentações, ou estes tempos, que não são tratados nos meios atuais cinéticos, como o cinema e o vídeo, que privilegiam a percepção instantânea, são agora também passíveis de tratamento nas obras de imaginação.

Uma imaginação não é para se assistir, mas para se estar nela. São obras presenciais. A noção de palco ou de tela, ou de página, que remete ao conceito de projeção e de espelhamento, se desloca para a idéia de uma presença imersiva da informação. Esta se coloca como uma opção acessível e disponível, extracorpórea, capaz de relacionamentos próprios, estabelecidos no ato propositor ou nos desdobramentos interativos da obra durante sua manutenção. Devo salientar que os movimentos e interações da obra de imaginação continuam ocorrendo, mesmo na ausência de um observador.

O espaço onde se ambienta a extensão mental colaborativa não tem que ser bi ou tridimensional. Nem mesmo quadridimensional, com a inclusão do tempo. O espaço informacional pode ser abstrato ou realista, pode ser construído de diversas formas. O que se busca a imersão, não se trata de representar a realidade cada vez mais, mas estender nossa mente cada vez mais.

Os ambientes não precisam ser salas de mármore com reflexo 3d. A arquitetura das obras de imaginação está liberta da representação da realidade. Tal como ocorre hoje com as Hipersuperfícies (12), uma nova área da arquitetura que estuda a fusão de espaço físico e mídia, e experiências com multimídia fora da tela do computador em robôs e aparelhos em geral, o espaço da imaginação nem mesmo é necessariamente o da tela de um computador. Sua arquitetura faz parte da sua sintaxe.

A realidade virtual, tal como ela é proposta, se adequa à expressão de algumas idéias, tais como teletrabalho, reconstruções de ambientes físicos, etc, mas existe toda uma gama de aplicações possíveis, onde o desejável seria a des-identificação com a realidade, ou a a-identificação. E mesmo quando pensamos, por exemplo num console de manipulação a distância de uma máquina, certamente o ambiente terá componentes bem próximos à realidade de uma operação de trator, mas terá outros componentes sobrepostos e interagindo que vão facilitar, modificar e adequar essa operação. E esta será uma nova realidade que já não é a inicial que serviu de base para a construção da metáfora.

Há ainda a aplicação dos ambientes na tradução de entradas e saídas sensoriais fora da nossa escala de percepção. Como, por exemplo, a tradução de espectros de luz e de som, raios x e outras energias. Esse tipo de ambiente que vai lidar com a ampliação traduzida da percepção somática humana não precisa ter uma concepção ‘realista’. As concepções vão estar ligadas aos objetivos que se planeja alcançar.

Um bom livro transporta seu leitor a uma imersão que talvez um ambiente hiperrealista necessariamente não transporta. O presenciamento na imaginação se dá a partir de uma fluidificação e de uma identificação entre a comunidade interativa e as informações e sintaxes armazenadas na extensão mental colaborativa. A compreensão, a familiaridade e a utilidade da imaginação para os fins propostos é o que vai contar.

Estamos diante de um novo horizonte de exploração dessas novas perpectivas, inicialmente com experiências introdutórias em diversos pontos de interseção: visual-interativo, visual-sonoro, sonoro-interativo, linear-deslinear, ordenado e aleatório. Teremos a limitação da linguagem incipiente, ainda pouco desenvolvida, da interface dos softwares e hardwares atuais e da velocidade pequena da maioria das redes ligadas à internet. Mas o que hoje existe é mais que suficiente para a implementação de projetos práticos usando estas idéias.
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IV – A Imaginação e a Ideografia Dinâmica – Conceitos próximos

O conceito da ideografia dinâmica (13) proposto por Lévi é um conceito que considero muito próximo ao que estou propondo, e de certa forma bastante sobreposto. Segundo ele:

“A ideografia dinâmica é a forma de escritura reivindicada pelos suportes técnicos contemporâneos. Ela funciona segundo o princípio de uma representação figurativa e animada dos modelos mentais, especialmente, pela reduplicação da linguagem fonética num plano visual. Como faz o alfabeto.”

“Dentre tantos usos da ideografia dinâmica para a pesquisa científica, a educação, a formação, a comunicação grupal, o lazer e a diversão, quem sabe não esteja por nascer uma forma de arte ainda desconhecida do novo cinema-linguagem.”

Como podemos ver, Lévi propõe uma nova forma de comunicação construída em computador, que manuseia imagens cinéticas, criando assim um novo alfabeto, cinético-visual. Ele propõe uma imaginação artificial.

Ele caminha próximo ao que proponho aqui, discutindo de forma brilhante várias das novas características dessa nova linguagem, naturalmente similares a muitas que proponho aqui. Entretanto seu conceito se restringe em demasia a uma substituição da linguagem textual/estática pela linguagem visual/cinética em ambientes computacionais. Essa dicotomia entre textual e visual, estático e cinético, permanentemente lembrada em comparações, entre as vantagens do sistema visual em relação ao textual, impediu-o de tratar a questão de forma mais ampla como pretendi fazer aqui.

O que se busca é um plano mais abrangente e mais integrador. Se vamos lidar com imagens cinéticas, fazendo representações dos modelos mentais, então temos um conjunto integrado de linguagem e senso. Mais do que se tornar este ou aquele o veículo melhor para a expressão de todas as idéias, pensamentos e sentimentos, podemos compreender que temos todas estas linguagens e entradas-saídas sensoriais à disposição para armazenar e comunicar, como ocorre na nossa cabeça. Não se trata de este ou aquele meio, mas de todos os meios. Evidente que cada imagem vai pedir uma combinação adequada de blocos formadores, seja vindos do campo fonético, textual, visual, olfativo, etc. E essa dosagem e esse amalgamento se tornarão elementos importantes no desenvolvimento da nova linguagem imaginativa.

Então, eu diria que a escritura dos suportes técnicos contemporâneos pode funcionar segundo o princípio de uma representação metafórica dos modelos mentais, reduplicando a linguagem textual, falada ou escrita, cinética ou não e a linguagem visual e auditiva num plano imagético, e não apenas visual. Num plano onde as imagens são cachos multisensoriais integrados em uma nova linguagem.

Não posso deixar de terminar essa breve colocação incluindo aqui a menção explícita a blocos construtores de imagens provisoriamente fora dos ambientes computacionais atuais, tais como o tato, o olfato, a propriocepção, etc. Não termos ainda disseminados nos computadores interfaces de e para esses sentidos. Coisa que já existe em ambientes experimentais e de realidade virtual. Os videogames já nos mostram que é uma questão de tempo para estarmos trabalhando também com estes elementos no nosso cotidiano de computadores pessoais.
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V – A Imaginação e o Vídeo/Cinema – O que está mudando?

É engraçado, é como se tivéssemos esperado demais para que os computadores pessoais começassem a suportar a imagem visual e sonora em movimento. Eles agora podem, e estamos pasmos diante disso.

O vídeo num aplicativo multimídia começou ocupando uma janela, usualmente acionada por um botão, de preferência um botão com o desenho de uma filmadora. Só que agora os computadores têm mais recursos de processamento e os vídeos podem ser maiores, ocupando até a tela toda. Além disso é possível tocar vários vídeos simultaneamente. Não faz mais sentido tocar vídeos em janelas, como se fossem algo à parte do resto da tela.

O conteúdo audiovisual cinético na imaginação é parte da interface, de um conjunto muito maior de elementos de linguagem que interagem num espaço ainda mais amplo que toda a tela. O vídeo interage com informações em outros meios e agora pode se tornar peça central da interface, no que chamo de videoancoragem. A videoancoragem se refere ao posicionamento do vídeo como elemento central da interface, papel até então assumido pelo texto e telas gráficas estáticas. A imagem visual e sonora em movimento, integrada e interativa, tem uma temporalidade que acaba repercutindo na relação da informação com as pessoas e com o design dos softwares.

O vídeo fazendo parte da interface faz com que ela também se torne cinética. Quando terminei meu primeiro projeto com o uso da videoancoragem, o CD ROM Descobrindo o Brasil 2000 (14), me veio claramente a idéia de que a informação não está mais parada, esperando por nós, ela está contida nos fluxos imaginéticos que se constituem no aplicativo e nas suas relações com o público.

A inclusão de temporalidade na interface é muito interessante pois o vídeo tem que passar, e nesse sentido ele ajuda a quebrar a estrutura atual de menus e ferramentas, sempre disponíveis para o acesso imediato. Podemos acelerar percursos, mover para frente, trás, lados, pular etc, mas sempre estamos confrontados na interface com a necessidade de aguardar algum tempo para chegar ou partir de e para algum lugar. A informação se movimenta com os fluxos.

E como a sintaxe e as informações não estão necessariamente apenas no vídeo, surge o espaço para a videoilustração, a audioilustração, a videoancoragem e o cruzamento dos vários fluxos de imagens visuais e sonoras com outros elementos da tela, como textos, fotos, desenhos, animações e diagramas, menus, consoles, etc.

Pouco tem sido feito quando se trata de produção de vídeos não lineares e com possibilidades de edições on line, tais como troca de câmeras e sequenciamentos em blocos. Tais vídeos criam a necessidade de novos procedimentos, tanto na hora de captar e editar as cenas, quanto na hora de gerenciar a exibição. Temos ainda que pensar em como ‘folhear’ vídeos, como movê-los para frente e para trás, para os lados. E realmente acho antiquada e pouco prática a idéia de transformar a tela numa réplica de uma ilha de edição convencional, ou num controle remoto, como hoje ocorre com os consoles de mídia.

Graças à possibilidade de movimentos programáveis via software, estamos diante de novas fronteiras no campo das artes visuais. Embora lidem diretamente com o movimento, o cinema e o vídeo – por trabalharem com takes de segundos encadeados em seqüências de minutos a horas, exigindo a presença continuada do espectador na sala de exibição – não conseguem explorar, no seu tempo real, alguns movimentos fundamentais da vida, que são apercebidos apenas através da comparação de estados ‘estáticos’ através da memória.

Imaginações podem se movimentar, se transformando em velocidades que os olhos não conseguem captar instantaneamente. Elas têm ‘vida’ por si, independentemente da presença de um espectador. Estão se modificando e se apresentando a quem, num dado momento, se conecta. Assim, temos oportunidade de explorar concepções de tempo e movimento até hoje inimaginadas enquanto representação artística: podemos explorar o domínio de movimentos imperceptíveis, de duração catastrófica ou paulatina, infinitamente pequenos ou grandes. Podem ser feitas programações que duram horas, dias, estações, anos. É possível conceber obras que têm vida e que, apagadas as informações no disco do computador, podem morrer, como paisagens que se desfolham no inverno. A obra está em movimento, esteja ele sendo apercebido ou não por quem interage com ela num dado instante.

A imaginação também nos liberta da linha do tempo única do cinema e do vídeo, onde um canal de vídeo e outro canal de áudio (ainda que dividido em 2 ou 4) seguem a linha do tempo alinhados. Num mesmo instante, na mesma timeline da imaginação, ou na timeline individual de alguma imagem, os elementos de vídeo e de áudio podem ser quantos forem e estar alinhados ou não entre si. E mais ainda, estes alinhamentos e desalinhamentos podem ser programados na sintaxe do software. De fato estamos lidando com entradas e saídas audiovisuais de uma nova forma. As imagens da nossa extensão mental têm novas autonomias e interdependências, que repercutem nas suas emanações audiovisuais.

Aqui o conceito de paisagem sonora pode se estender para paisagens mentais, incluindo elementos visuais também. Temos que levar a sério o conceito de estar em, e não mais considerar as pessoas como espectadores que vêem e ouvem o que alguém gravou para eles. A imaginação lida com ambientes, universos, e não com palcos, telas, platéia.

Afinal o que muda num ambiente onde as fontes de emissão de imagem visual e sonora têm autonomia e interdependência entre si?

Vamos pensar numa sala no mundo físico real, com uma tv ligada, uma criança no sofá assistindo, uma pessoa encerando o piso e outra pessoa lendo um livro. A pessoa que lê o livro escuta a enceradeira fazer um som, escuta seu coração bater – se prestar a atenção, escuta os ruídos da criança, do livro manuseado e o som que a tv faz. Pode ver a página do livro, a tv ou a criança ou a pessoa encerando, ou fechar os olhos e não ver nada.

Vamos usar então esta sala como uma metáfora de um ambiente que vamos criar, de algo que pode ser metaforizado na nossa extensão mental colaborativa. Numa imaginação a enceradeira pode ser desligada ou até mesmo movida para fora do ambiente, podemos focar ou não o ruído do coração, podemos mostrar imagens da tv, da enceradeira, da criança, do livro, do que aquela pessoa que lê está a pensar, simultaneamente ou não. E esses elementos todos estão cinéticos e também interativos entre si. Significa que a tv interage com a criança que pode mudar os canais e com isso mudar as imagens que ela produz, a enceradeira interage com a pessoa que a movimenta, o livro interage com a pessoa que o lê…

No cinema e no vídeo assistimos a uma captação que foi gravada nesse ambiente, com uma leitura que foi feita a partir de uma edição pelos criadores da obra. Na imaginação assistimos à imagem visual e sonora resultante das interações entre os elementos do ambiente, e entre eles e você, e entre você, eles e outros membros da comunidade. Não tenho a menor dúvida de que a linguagem audiovisual está prestes a se transformar enormemente.
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VI – Imaginação e Interatividades – O fim do estímulo resposta

O que tem sido interatividade na maioria dos softwares na internet e em CD ROM? Dar ao usuário, através do clique sobre botões, acesso imediato às informações que deseja e permitir a ele a customização do software, através do recurso chamado pele (skin). Essa noção de interatividade, que na verdade torna o usuário cada vez mais passivo, não deixa de ser um modelo simplificado de uma reprodução da uma interatividade nos moldes do estímulo-resposta de Skinner. E o pior, tem embutida uma falsa impressão de interatividade, já que as conexões entre as informações contidas no software e o usuário já estão previamente definidas.

Uma das primeiras providências no desenho das interatividades da imaginação é acabar com a idéia de que o clique do mouse, seguido de navegação ou execução de uma tarefa, é a mais preponderante interação numa obra digital. Precisamos nos libertar do flagelo do botão, um materializador do desejo compulsivo e instantâneo.

Na imaginação o desenho das interatividades é fundamental. E é preciso definir como elas ocorrem entre as imagens, entre elas e as comunidades e as relações que podemos criar entre as comunidades. A hora é de buscar novas formas de interação, na navegação e na relação entre os usuários do software e as informações. É preciso incluir interação com o tempo – criar maturações, movimentos catastróficos, movimentos paulatinos. Interação com o acaso. Interação com o não – a realidade é torneada com nãos. Interações associativas, interações cruzadas, ou baseadas em potenciais.

E nada melhor que buscar idéias na metáfora da mente. Afinal os neurônios guardam conexões com até centenas de milhares de outros simultaneamente, formam grupos em forma de redes, trocam informações, lidam com mudanças potenciais, criam circuitos para gerir informações por curto prazo, sofrem modificações para lidar com informações de longo prazo, trafegam informações sensoriais e as traduzem e conectam a sentimentos e pensamentos.

Por mais simples que sejam, esses novos modelos de interatividades, desenvolvidos a partir dessas novas premissas serão infinitamente mais ricos que os hoje disponíveis.
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VII – O Autor/Criador e o Leitor/Espectador/Público – Categorias em desuso

Por tudo que vimos anteriormente não faz mais sentido falar em autor e espectador quando se trata de obras de imaginação. Elas são obras abertas por sua natureza intrínseca. Por outro lado, não faria sentido descategorizar sem recategorizar as pessoas que interagem com a obra mediante novos contornos.

Então, vamos a eles. Uma imaginação precisa de algumas condições mínimas para começar a existir e depois para continuar existindo. Para começar é preciso que alguém proponha a obra. O propositor, pessoa ou grupo, é quem inicia o processo de criação das condições básicas iniciais da obra de imaginação. Uma obra já proposta vai estar inscrita em bits em sistemas de computador onde será acessada pelas comunidades.

O público, leitor ou espectador, eu chamo de comunidades por que esta palavra sintetiza a nova posição do público, que além de receber informações, interage com as obras, onde influi e participa na sua configuração, na sua alimentação de dados e na sua evolução. Cada comunidade interage com as outras e entre si e com a obra. É importante salientar que uma mesma pessoa pode fazer parte de comunidades distintas e que estas comunidades não têm que ter limites rígidos.

Uma comunidade específica fundamental para a existência da obra é a comunidade de mantenedores. Uma obra com mantenedores continua existindo. Tal como um organismo vivo, uma imaginação necessita de recursos financeiros para permanecer arquivada em bancos de dados e manter sua conectividade. Tal como um organismo, a obra tende à entropia e à desordem, se não recebe periódicas manutenções no conteúdo, nos softwares, etc. A comunidade mantenedora é fundamental também na evolução da obra. Finalizando, por seu caráter mutante, cinético e interativo, a imaginação necessita de implementações constantes para fazer sentido a sua existência. Uma imaginação sem mantenedores tende à ‘morte’ por inviabilidade, tornando-se caótica ou inoperante.

As outras comunidades têm níveis variados de acessos e capacidades de modificação da obra definidos ao longo do desenvolvimento da obra. Em função de seus interesses e características, são essas comunidades que lêem e editoram a obra, que sem elas, também ‘morre’, dessa vez por esquecimento. No caso de não fazer sentido, uma imaginação se torna mais um dos bilhões de documentos desinteressantes disponíveis hoje na rede.

O que tem sido chamado de obra aberta, ou interativa, são obras onde o autor abdica em prol do leitor de seu controle do conteúdo da obra, que também não chega a ter uma forma definida, já que é mutante, work in progress. Assim são as obras de imaginação. Entretanto, não interessa a distinção entre autores e leitores. Nem a perda de todo o controle sobre a obra pela comunidade de mantenedores ou propositores.

A imaginação se organiza como uma rede, onde o sistema de alguma maneira precisa validar usuários. Depois dessa validação, o usuário se habilita a frequentar a obra, obtendo permissões que vão de uma possibilidade de interferência em algumas seções para algumas pessoas e comunidades à interferência em todas as seções, afetando todos os grupos. O que se deseja é a criação de premissas de relacionamento que permitam a criatividade compartilhada, sem deixar a obra rumar a um estado completamente caótico.

Usando a nossa metáfora mental, é desejável que haja bastante mudança e interrelação em partes da obra, mas que outras partes tenham ritmos mais lentos e acessos mais restritos. Caso contrário, ela tenderia a se descaracterizar completamente. Uma obra que sucumbe inteiramente ao controle de quem a usa não comunica. Se não há algum tipo de ‘eu’ colocado lá, dialogando com os usuários, a obra se esvai.

Por outro lado, nem faz sentido criar obras com controles rígidos num ambiente tão afeito à mutação, mudança de estado, etc. A relação entre as possibilidades de acessos, edição, acréscimos e deleções de imagens e ambientes faz parte da nova sintaxe que surge. Cada imaginação pressuporá interativamente seu nível ótimo, também mutante, de níveis de acesso às comunidades.

A imaginação tem uma característica editoradora, na medida em que as comunidades e indivíduos podem modificar aspectos de conteúdo, diagramação, sintaxe, etc na obra. Esta característica traz à tona uma importante interação que havia sido perdida com o surgimento da imprensa e depois dos meios de comunicação em massa. Com estes meios criou-se uma condição que condicionava as obras ao engessamento a partir do processo de publicação.

As obras de imaginação podem se reproduzir em grandes quantidades sem deixar de ser plásticas o suficiente para serem modificadas por quem as usa. É importante salientar que esse resgate traz uma novidade que a tecnologia permite: o computador pode registrar as versões da obra, enquanto ela vai sendo modificada. O registro da mutação pode ser preservado.
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VIII – Poiesis Imaginativa – Um experimento em curso

Tornado claro que está em curso o desenvolvimento de uma nova arte, que tem uma linguagem própria, que incorpora e modifica outras, mas ainda é incipiente, é preciso experimentar e criar as novas amálgamas de elementos de linguagem que vão posteriormente se sedimentar como elementos da linguagem imaginativa. Para ajudar a alicerçar a estrutura da nova linguagem, busquei nas já existentes aquela que mais afinidade tem com o novo, com o não mapeado, para fornecer modelos de operação sintática para serem utilizados na espinha dorsal da linguagem da imaginação.

Optei pela linguagem poética. E me propus a utilizar o termo na sua acepção mais ampliada, não apenas a restrita à arte literária. É que apesar do consenso de que poesia é uma arte de escritores, observo o termo frequentemente ligado outras artes. Tal imagem é poética… a poesia de uma passagem musical… de um personagem… O termo é também usado em muitas situações cotidianas, sem ligação direta com o texto, nelas, o termo é usado com uma conotação que leva-nos a entendê-lo mais como um ‘estado mental’. É essa acepção ampliada, ligada a esse ‘estado mental’ sensível e criador e suas operações sintáticas, inclusas as textuais, mas também as outras, imagéticas, a que se adequa.

Ao longo dos últimos anos tenho buscado dar à linguagem da poesia um status de linguagem articuladora de linguagens, na criação da nova linguagem da imaginação. Experimento esse caminho porque considero a poesia uma forma de linguagem extremamente sugestiva, inaugural, que recombina códigos de linguagem com extrema facilidade. Essa facilidade de ruptura e desconformidade, essa força de iniciação sempre fez com que o texto poético atingisse com grande intensidade a imaginação de quem tem acesso a ele, e fez com que o poema tivesse uso em quase todos os processos sagrados do passado e nos processos de rebelião e avanço social contemporâneos.

Não digo que a poesia não pode ser reprodutora e conformista, ela é também assim, quando autor ou o leitor assim desejam, mas sustento, e isso é indiscutível, que a poesia tem uma potencialidade de inovação muito grande, embutida na suas características formais de construção. A facilidade que tem para incorporação de elementos visuais e sonoros de linguagem, a facilidade para recombinação, tradução e recodificação de linguagens e fusão de imagens de diversas origens está na sua essência.

Enquanto forma de linguagem, a poesia tem muita facilidade para evocar imagens mentais, suscitando rearranjos e recriações internas, dando vida ao imaginário, trazendo a ele novos códigos e liberdade de composição. A abertura das combinações possíveis na linguagem, os silêncios entremeados entre as imagens, a formação de conjuntos semânticos, tudo isso contribui de forma decisiva para que essa característica esteja na base da criação de uma nova linguagem.

Por que não usar esta sua potencialidade para articular vigorosamente a
integração de linguagens existentes na nova arte da criação e circulação de imaginações?
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IX – O Sítio de Imaginação – Uma extensão mental que se constitui

O Sítio de Imaginação Ciclope é uma obra que surgiu para ser um laboratório para o desenvolvimento dos conceitos expostos aqui. Não faria sentido estar elaborando estes raciocínios se não houvesse um ambiente onde eles pudessem estar sendo praticados, criando-se o desejável intercâmbio entre pensamento e ação. O Sítio é uma extensão mental colaborativa que passou a existir na minha mente desde maio de 2000, depois de anos de experiências na construção de sites voltados para arte digital. Depois estreiou em junho de 2002 na internet, no endereço www.ciclope.art.br, com versões para CD ROM e intranets, e já com intensa participação de colaboradores. Desde então, vem se construindo como um ambiente digital com características orgânicas, em permanente mutação.

O Sítio experimenta os conceitos da imaginação adaptados aos limites atuais das redes, especialmente a internet, e ao estado atual do hardware e software dos computadores domésticos. Mas levando em consideração que a obra é viva e que ela vai se desdobrando e também evoluindo com o meio onde ela se manifesta, será fácil compreendê-la em seu estágio atual e ver seu potencial num futuro próximo. Por uma questão de conforto a obra do sítio é de ficção. É na ficção onde posso realizar com mais leveza a tarefa de escrutinar o real. Num mundo onde a mente ainda é confinada, controlada e muitas vezes impalpável, a ficção, ao libertar-nos de dilemas como verdade e mentira, nos projeta em outras esferas de entendimento, mais amplas, mais fluidas.

O sítio tem duração indefinida e atualizações com periodicidade mensal, para facilitar a rotina de visitas das comunidades que estão se formando. Seu funcionamento é intuitivo e a sua interface contempla uma série de novas ferramentas para lidar com a imaginação no meio digital, levando em conta as restrições que ainda existem. Os objetos na tela são arrastáveis e se arrastam, são ampliáveis, rodam, ficam transparentes, duplicam-se, desaparecem, podem ser manuseados, editados. Esses objetos são chamados de imagens, e se formam em amálgamas de elementos audiovisuais, textuais e gráficos sem distinções entre si, como discuti nesse texto.

Vídeo e áudio ilustrações, sequenciamentos multi lineares, multifluxos, fusão de linguagens, estados mentais, foco, consciência e inconsciência, mundos em movimento. Ali, esses conceitos que conhecemos aqui estão articulados numa série de experiências de interatividades e organização gráfica, em constante evolução.
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Notas

(1) Na finalização desse ensaio contei com a leitura crítica e sugestões de Maria Lúcia Andrade Garcia, Ely Bonini Garcia, Maria Aparecida Moura, Matheus Braga e Luciana Tonelli. <- voltar

(2) Esses textos, que pontuam a trajetória das idéias expostas aqui, se encontram disponíveis em www.ciclope.art.br/pt/memoria/textos/textos.php. <- voltar

(3) Multimídia: embora o termo seja também usado para descrever obras de arte e espetáculos onde duas ou mais linguagens e formas de expressão coexistam, aqui uso a palavra para nomear a nova forma de comunicação multisensorial e interativa, na qual as mídia conhecidas são integradas e gerenciadas pelo computador que se transforma num veículo de comunicação. <- voltar

(4) A Interface realiza operações de tradução, de estabelecimento de contato entre meios heterogênios, funciona como operadora de passagem. Uma interface homem máquina é um conjunto de programas e aparelhos que permitem a comunicação entre um sistema informático e seus usuários humanos, através de dispositivos de entrada e saída. <- voltar

(5) A metáfora da Mesa de Trabalho (desktop) foi desenvolvida pela Xerox e depois deu origem aos sistemas operacionais do Macintosh e Windows. <- voltar

(6) Realidade Virtual se refere a tecnologias ou ambientações que proporcionam pistas realistas a alguns ou todos os nossos sensos, suficientes para causar no participante uma suspensão de descrença. <- voltar

(7) Vannevar Bush – As We May Think, Atlantic Monthly, 176. v.1p.101-108,
jul. 1945. <- voltar

(8) António R. Damásio – O Sentimento de Si – Publicações Europa América ltda – Portugal – 2000. <- voltar

(9) Walter Benjamim – Magia e Técnica, Arte e Política – Editora Brasiliense – São Paulo, 1994. Origem do Drama Barroco Alemão – Editora Brasiliense, São Paulo, 1984. Para Ler Benjamim, Flávio R. Kothe, Francisco Alvim Editora, 1976. Benjamim apresenta o conceito de Constelação, em oposição ao conceito de Sistema. Constelação indica um relacionamento com características dialéticas onde as partes adquirem sentido mais completo no todo em que se constituem, sem subordinação. Suas considerações sobre o papel do narrador foram úteis na construção de narrativas em obras digitais, servindo de contraponto à quebra pura e simples da linearidade / temporalidade e da tendência a criação de mosaicos com elementos desarticulados, vista em muitos softwares atuais. <- voltar

(10) António R. Damásio – O Erro de Descartes – Companhia das Letras, 1994. <- voltar

(11) Murray Schaffer – O Ouvido Pensante – Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.
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(12) Para ler mais sobre Hipersuperfícies recomendo a leitura das revistas HyperSurface Architecture (Vol 68, 5-6/99, profile 133) e HyperSurface Architecture II (Vol 69, 9-10/99, profile 141), publicadas como parte da série Architectural Design (AD) pela Academy Editions, John Wiley & Sons., Londres. Nelas estão expostas teses de Stephen Perrella um dos principais pesquisadores na área. Os dois títulos das revistas estão disponíveis via www.amazon.com. O texto Cyberarchitecture: virtual architecture beyond real space metaphor, de Ana Paula Baltazar dos Santos, The Bartlett, University College London, UK é uma outra boa fonte de consulta. <- voltar

(13) Pierre Lévi – A Ideografia Dinâmica – rumo a uma imaginação artificial? – Edições Loyola, São Paulo, 1998. <- voltar

(14) Descobrindo o Brasil, uma interface de vídeo interativo – texto de apresentação do CD ROM Descobrindo o Brasil 2000, no Prix Moebius – Festival Internacional de Multimídia, no Centro George Pompidou, Paris, 2000. Esse texto se encontra disponível no site www.ciclope.art.br/pt/memoria/textos/textos.php. <- voltar