versão 1: 1996
A cibercultura chegou. A multimídia é a sua forma mais nova de comunicação. A utilização de programas de comunicação multisensorial em computador vai se tornar cada vez mais corriqueira, à medida que o milênio chega ao fim. Falamos de realidade virtual, ciberespaço, internet, data railway, enquanto as pessoas de carne e osso se dividem cada vez mais em duas grandes castas: os muito pobres e os muito ricos. Os pobres são empurrados para a ruas, tomando conta do espaço público. Perdem pequenas propriedades, sítios, saem das favelas e ocupam as praças, as vizinhanças, as ruas, num processo intenso de tribalização. Os ricos se enclausuram nos seus castelos tecnotrônicos. Se locomovem cada vez menos e trazem para si as informações que precisam para continuar a alimentar seu espírito materializado. As ruas se tornam perigosas, o trânsito infernal, as pessoas se deslocam de casa para o trabalho, do trabalho ao shopping e de volta ao trabalho. Em seus casulos, se conectam às redes de televisão interativa, ao telefone e se teletransportam para outras partes onde não onde estão.
Num cenário tridimensional que se constroe a partir da referência do sentido tectrônico, o rico vai se tornando um paraplégico que se interconecta e se perde no seu mundo fantasioso de opções. O mundo da realidade virtual surge com cada vez mais força no ambiente urbano. É o mundo de um estímulo pornográfico que bombardeia o espírito anulado. Que vive a experiência que se dá apenas através da imagem, sem a intermediação da realidade. O mundo onde uma maçã tem cheiro de shampoo de maça. Onde a vaca dá leite em pacotes quadrados, a galinha põe às dúzias no supermercado.
Hoje, a expansão da ideía de acumulação ganha novo fôlego na circulação de mercadorias informacionais. O limite ecológico para novas indústrias e para a circulação de pessoas em seus automóveis e aeroplanos já chegou. Mas a informação é “clean” e “reciclável”. Os gigantes japoneses compram os grandes estúdios, os americanos marcam presença com as grandes redes de tv a cabo que transmitem “ao vivo”, e vendem em massa a imagem de que as pessoas estão fazendo parte dos acontecimentos. O povo parabólico já está antenado a centenas de canais de informação e em breve vai fazer compras e escolher filmes sem sair de casa.
Mas as pessoas estão em casa assentadas, cada vez mais confinadas e hiperinformadas até se desinformarem numa grande massa de consumidores eletrônicos. A casa moderna, da tv interativa, do home theather, do shopping a domicilio é a prisão mais sofisticada que se moldou.
O homem que trançava pelo planeta na época das grandes navegações terminou por conquistá-lo quase que por inteiro e agora se aquieta no final do século, acuado pela miséria que criou ao seu redor. Ele deixa que os impulsos elétricos cheguem até ele, alimentando-se através de bytes tarifados e nutrindo os mesmos grupos industriais que levantaram indústrias gigantescas como a automobilistia e a do entertenimento.
A poesia não se isola de todas estas mudanças. Ela quer penetrar nas novas mídias, ela quer se permear nas novas redes, fazer-se presente. Mas, à luz desse contexto, fica uma pergunta no ar: será que nesse momento em que vivemos, não é muito mais importante transmitir acalmar que estimular os leitores? Desestimular, diminuir os estímulos, refinar a comunicação, aumentar o silêncio, revitalizar o espírito. Será que o momento não é para a poesia multimídia e sim para a poesia zen. Será que a utilização de formas de comunicação multisensoriais não acaba moldando o nosso imaginário às imagens possíveis da tecnologia de um determinado momento e estamos esquecendo de imaginar?
A imaginação é uma faculdade que tem o espírito de representar imagens, evocando objetos já percebidos ou não e de realizar novas combinações de imagens. Essa representação mental a partir do que é percebido ou recombinado possui características próprias. Entretanto, uma imagem visual, uma imagem sonora, uma imagem em forma de linguagem escrita ou falada, ou tátil tem uma determinada representação dominada pela cultura.É esta representação que permite a troca, ou o intercâmbio entre imaginações de seus membros.
A poesia é uma forma de linguagem extremamente sugestiva, inaugural que recombina códigos de linguagem com extrema facilidade. Essa facilidade de ruptura e desconformidade, essa força da palavra inicial, faz com que o texto poético atinja com grande intensidade a imaginação de quem tem acesso a ele, e fez com que o poema tivesse uso em quase todos os processos sagrados do passado e nos processos de rebelião e avanço social contemporâneos.
Não digo que a poesia não pode ser reprodutora e conformista, ela é também isso quando o autor ou o leitor assim desejam, mas digo, e isso é indiscutível, que ela tem uma potencialidade de renovação muito grande, embutida na suas características formais de construção. A facilidade que tem para incorporação de elementos visuais e sonoros de linguagem, a facilidade para recombinação, recodificação de linguagem e fusão de imagens de diversas origens está na base dessa característica.
Eu poderia arriscar e ir mais longe. A poesia, quando penetra, é uma das mais importantes formas de transmutação imaginística das pessoas. A poesia, enquanto forma de linguagem, tem muita facilidade para evocar imagens mentais dos seus leitores, sucitando rearranjos e recriações internas. Dando vida ao imaginário, trazendo a ele novos códigos e liberdade de composição. A abertura das combinações possíveis na linguagem, os silêncios entremeados entre palavras, a formação imaginística de conjuntos semânticos, contribui de forma decisiva para essa característica.
Por isso penso na poesia contaminada pelo zen. O zen fala que boa parte do que sentimos e pensamos é ilusão, O zen transmite a mensagem de que é necessária uma revelação que vai nos afastar definitivamente da teia de ilusões que permeiam o nosso espírito. O zen renega o consumo, a acumulação e a prosa. Ele se afasta de quase todas as formas de linguagem que bombardeiam o espírito. Mas sempre esteve próximo da poesia. Os coanas, os haicais, cumprem um importante papel no descodicionamento mental. É como se a imaginação estivesse poluída com formas que eram apenas códigos para comunicação e que foram confundidos com a verdade (ou com a imagem mental em si).
Os poemas induzem, sensibilizam, despertam, descortinam, tocam de leve e suscintam as mais remotas imagens, impenetráveis pela linguagem, incontíveis no que é possível registrar. A poesia zen, a poesia chinesa antiga, a poesia de diversos autores atuais consegue quebrar a sintaxe, descondicionar e aproximar a linguagem da imaginação mais profunda e dessocializada. Talvez o paradoxo esteja diante de nós. Na era da multimídia, a poesia deve entrar nos computadores e se ligar na rede, mas é preciso ter em mente que o poema não está ali para hiperestimular moribundos. O poema deve imaginar como fazer as pessoas mais vitais. O poema deve saber dar uma banana tudo e instituir o silêncio que todos precisamos ouvir.
Álvaro Andrade Garcia