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A Chegada em Darkover, de Marion Zimmer Bradley

Darkover, a ficção-fantasia antes de Avalon

Marion Zimmer Bradley ensaia a vitória da magia sobre a técnica em busca do graal do sucesso

A Chegada em Darkover, de Marion Zimmer Bradley
Editora Imago, 172 p.

Basta a cada dia o seu mal. Marion Zimmer Bradley é hoje reconhecida como autora de histórias atraentes para qualquer clube de leitoras interessadas em consumir o chavão do feminino. Passados vinte anos da sua primeira edição, o exercício de Mrs. Bradley na série Darkover pouco acrescentou ao território da ficção científica, esse gênero prolixo e tanto mais chato quando não é tratado com mestria. Não é nada, não é nada, são onze volumes para preencher o tempo vazio de quem sente um leve cansaço das séries televisivas e do cotidiano morno e sem sal. O primeiro livro tem lá sua inventiva. No século XXI, uma supernave estelar se desvia de sua rota e cai em um planeta selvagem. Os sobreviventes precisam lutar contra o ambiente hostil e estranhas forças psíquicas até construir seu novo lar. É o conhecido mito da origem, contado e recontado à exaustão nos últimos séculos por todo autor de renome que se preze.

Quando a série Darkover começou a ser escrita, a moda era o amor livre, as comunidades alternativas, o movimento hippie e seus congêneres. A cabeça das pessoas se ligava em tudo que tivesse a aparência do novo e do fascinante. Como é usual na ficção científica, o romance de Marion se prende mais uma vez aos traumas do tempo presente. O futuro não passa de uma projeção tosca de anseios e inquietações corriqueiras, cabendo à narrativa abrir o espaço da imaginação para o que se lia diariamente nos jornais. Eis a Terra do próximo século na ótica da ficcionista de plantão: um planeta superpovoado, poluído, com a saúde pública controlada pelos avanços técnicos. Seus habitantes acham antiquadas atitudes como a do herói Rafael MacAran, que prefere escalar uma montanha em vez de usar o teleférico. Ele fatalmente forma um par com a altiva e obstinada Camilla Del Rey, cujo nome de cantora de bolero esconde de fato uma personagem feminina vencedora como outras que são mostradas na saga de Avalon. Entre o afeto de Rafael e o amor do Comandante Leicester, ela prefere se impor e ficar com os dois.

A autora sabe jogar com a descrição das paisagens extra-terrestres em que sobressaem os extremos do calor ao meio-dia e da nevasca à meia-noite, o ataque de formigas-escorpiões, flores e frutos que crescem rapidamente sob climas violentos. Chamam a atenção quatro luas multicoloridas e um incrível vento que traz um pólen ou vírus capaz de levar as pessoas à satisfação imediata de seus desejos passionais. Na verdade, o Vento Fantasma — como é chamado pelos personagens — faz também com que os terrestres adquiram poderes extra-sensoriais ao gosto de narrativas em que magia e realidade têm que andar de mãos dadas. Mrs. Bradley não dispensa imagens levemente ridículas narrando o delírio psicodélico dos personagens, como a de um homem com a perna quebrada que sai correndo até cair rindo para uma das luas, enquanto um tigre lambe seu rosto carinhosamente.

Assim como não se vê à vontade com os efeitos do inusitado vento alucinógeno, Marion escorrega na sua visão da técnica e suas aplicações. Ela ridiculariza os homens que não conseguem dar um passo sem o apoio da boa e segura tecnologia. A nave interestelar resume o avanço e a competência alcançados pelo homem no século XXI. A queda no planeta desconhecido faz dela uma fuselagem pesada e sem função. A máquina contamina a imagem que MacAran faz de si mesmo. Ser civilizado é o pecado original dos heróis em Darkover. Não há caminho de volta ou ponte com a história que ficou para trás, só é possível olhar para a frente. Esse insensato futuro preconizado por Marion Zimmer Bradley não deixa de ser engraçado e soar hoje ligeiramente anacrônico. A nave precisa ser destruída. O computador, que levara o comandante a devanear sobre a própria semelhança com deus, deve ficar reduzido à condição de biblioteca até o dia em que os homens consigam retirar de si mesmos (de suas almas?) o conhecimento já armazenado na máquina. Nada como uma ficção científica depois da outra para repetir que o destino da técnica e, por tabela, do homem é insano.

Marion Zimmer Bradley encontra espaço em sua narrativa para descrições líricas sob um novo céu e uma nova Terra. Em seus bons momentos, a ficcionista nos mostra o êxtase de Camilla, embriagada com a natureza. Em Darkover, os personagens encontram sua juventude restaurada. Há mulheres feitas de flores, o sol da infância bate nas pálpebras de homens adultos e, nas palavras da autora, paira uma euforia gloriosa sempre que os terrestres são acometidos dessa estranha visão que modifica a lógica das coisas. Ao embalo das descrições fortemente marcadas de erotismo e sensorialidade, Camilla e seus companheiros de aventura passam a desenvolver a percepão extra-sensorial. É comum na narrativa que alguém esteja ouvindo o que outros pensam e tendo pressentimentos de que algo está para acontecer. Enfim, é a maneira que Marion encontrou para liberar seus personagens da opressão que ela prevê como a moeda corrente no futuro. Através de suas pulsões, todos se tornam humanos, estranhamente humanos, com a expansão de seus sentidos e sentimentos.

Como nas antigas lendas da Terra (leia-se, nos mitos anglo-saxões), o futuro está completamente voltado para o passado. Apesar de anticoncepcionais à base de hormônios injetáveis e propulsores M-AM que levam a Alfa Centauri, não faltam ressonâncias do tipo Eram os Deuses Astronautas e memórias de velhas canções que falam do amor de um peregrino por uma fada. Sem perda de tempo, a compreensiva Marion estende aos leitores os princípios de sua antropologia. O homem primitivo deve ter reunido poderes psíquicos que permitiram a sobrevivência e o desenvolvimento antes da civilização e da tecnologia. Reinava a percepção extra-sensorial, não havia entrado em cena a madrasta civilização e o cortejo de suas desditas. Alucinações, intuições e viagens astrais parecem fazer parte, aos olhos da ficcionista, do mapa do tesouro que a humanidade guarda sem saber.

Ao se aproximar do fim do primeiro volume da serie Darkover, o leitor vai encontrar seres alienígenas que fecundam mulheres da Terra e os modos de Camilla soam mais contemporâneos, como no caso dos vários filhos que possui com pais diferentes. O amor, o desejo sexual e a vontade de ser feliz repetem sem muito colorido um hino aos fundamentos de uma civilização que não se cansa de cantar a si mesma. A cada sociedade, o autor que ela sustenta e merece. A Chegada em Darkover não leva o leitor que esteve com Marion na Atlântida, em Tróia e na Távola Redonda, a correr risco algum de ir além do que preza a nossa boa e segura indústria editorial.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.

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