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Eu e meu corpo

No princípio era apavorante conviver com aquela sensação de que não existiria mais. Pensava que jamais retornaria e logo era dominado por um pânico horroroso. Custei a me acostumar com tal condição. Explico: é que costumo sair do meu corpo. Como? Vocês dificilmente vão entender, mas é isso. Saio do meu corpo, e com uma freqüência cada dia maior. É algo que me ocorre desde março passado. Não sei o que é, já procurei até psiquiatra, mas quando estava na sua sala desapareci, deixando apenas meu corpo. Vocês podem não acreditar, mas o psiquiatra passou horas conversando com ele. Quando retornei, só tive tempo de me despedir e ir embora. Nunca mais voltei ao seu consultório, tenho vergonha dele, não sei o que ele teria me dito naquele dia.

Mas como dizia… começou aos poucos, uma hora estava na varanda descansando e depois, quando percebia, não estava mais; outra, eu largava o carro num engarrafamento e custava a voltar. Nestas, digo de passagem, rebocavam meu carro e meu corpo, que sempre ia junto. É, não ando mais de carro, ficava caro pagar as multas; além do que devo confessar, agora encaro o problema de outra maneira. Quando saio de mim posso ir para onde quiser. Para que então um carro, avião, ou qualquer outro meio de transporte?

Quando deixava meu corpo, morria de medo que alguém descobrisse o segredo. Eu poderia até ser objeto de estudo da ciência! Também tinha medo de sair e não voltar, ficar por aí, vagando eternamente. Aos poucos, contudo, tenho deixado de lado este medo, porque sei que acabo voltando.

Fico vagando pelo ar, percorro cidades, a intimidade dos outros. Para dizer a verdade, sou bisbilhoteiro. Mas… tenho problemas horríveis, e preciso resolvê-los. De alguns já dei conta, e como! Por exemplo, como alimentar meu corpo quando saio por um período mais prolongado? Isso é sério. Certa vez quase morri quando voltei ao meu corpo em inanição, após um jejum prolongado. Agora sempre levo comida comigo, pois, quando pressinto que vou sumir, instruo meu corpo para comer de oito em oito horas. Esta é uma particularidade interessante que pude descobrir. Posso pedir a ele para realizar, na minha ausência, aqueles atos mecânicos, essenciais à sua sobrevivência. Como sou um cara metódico, dou a ele umas poucas ordens e o danado se sai muito bem. Penso: “obedeça aos outros, copie os que estão em volta, sorria”, coisas desse tipo.

Agora mesmo sinto que vou deixá-los, é que… fica para depois… atrapalha um pouco… mas vou deixar meu corpo escrevendo para vocês.

Nesta hora o detetive Flink se aproximou e disse:

– Você é a pessoa mais formidável que conheci. Gostaria muito que aceitasse um convite para saírmos esta noite. Seria ótimo se fôssemos jantar no Baloon’s.

Ele olhava para ela com ar de cansaço. Os últimos dias tinham sido agitados, o esclarecimento do crime na mansão dos Christies havia exaurido suas forças. Porém, ali, estava com ela, a formosura em pessoa. Catherine sorria e seu sorriso era mágico e sensual. Sua boca entreaberta parecia um morango silvestre, tal a vermelhidão de seus lábios.

– Você pode me pegar às dez? – Disse ela.

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Álvaro Andrade Garcia

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