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Os inimigos ocultos

– Amor, estou apavorado, que inferno, estão em toda parte!

– De que você está falando, querido? Por Deus, são quase quatro horas da manhã, vamos dormir, pegamos serviço cedo.

– De que adianta trabalhar, se eles estão atrás de nós, e aos pouquinhos vão nos destruir.

– Eles quem? Querido, o que foi que deu em você? Vem, deixa eu fazer um pouco de carinho… Calma lá! Não precisa ficar agressivo. Eu só quis ajudar. Agora, se você não quer ajuda que se dane, fique aí resmungando sozinho, e apague a luz!

– Tá vendo? Os miseráveis já começaram a atrapalhar meu casamento, estes invisíveis solapam tudo… Querida, não há como nos proteger deles.

– Amor… se você não me diz quem são, como posso ajudá-lo? Além do mais, você não acha que podia esperar até amanhã, para ficar pensando nisso?

– Podia, mas nessa hora eles já vão estar com força total…

– Então deixa para pensar neles na hora do almoço. Que tal? Podemos ir a um restaurante chinês, e lá você me conta tudo. Combinado? Faz tanto tempo que não saímos juntos …Ahh, que sono. Boa noite.

– Como você pode dormir e me deixar aqui desprotegido, exposto a eles? Eu sei que não fazem bem a ninguém, nem a você, tá? Pode ficar aí, fingindo não saber, mas você também está sendo afetada. Eu não vou conseguir dormir essa noite, nem noite alguma.

– Ah, Deus! Amor, você está estafado… Afinal de contas seu serviço no laboratório é exaustivo. O que vocês estão estudando agora lá na Física?

– As emanações espectrais da luz de estrelas… Mas, querida, você não está me levando a sério…

– E poderia? Poderia? Você acorda às quatro horas da manhã, começa a falar parecendo um maluco, dispensa minha ajuda e, ainda, me impede de dormir. O que você quer, você não fala coisa com coisa, e quer que eu te leve a sério?!

– E por que não? Você nunca me levou a sério. Desde que nos casamos você me considera um lunático, e acha meu serviço inútil e desnecessário. Você ri do que faço.

– Mas não é engraçado? Estudar o campo eletromagnético da estrela b546, da constelação ng57457, situada a 234 bilhões de anos luz da terra?

– Não sei qual a diferença entre isso e seu emprego de vendedora. “Madame, que tal esta saia, é a última moda”…,”… esta estampa veio de Paris”… Eu ao menos contribuo para o desenvolvimento da ciência, agora, você…

– De fato, você é o grande cientista que contribui para o crescimento da ciência. Muito bem, e por que você não resolve contribuir para o crescimento da população? Estamos casados há três anos e não tivemos filhos ainda.

– De novo, querida? O médico já disse que o problema é insolúvel. Não entende? Insolúvel. É como a ação nefasta deles, a ciência ainda não tem recursos para resolvê-los.

– Desculpe… é que ando me sentindo muito solitária. Você não me deseja mais… fica enfiado naquele laboratório. Querido, vamos dar um jeito na nossa vida? Vem, me dá um beijo agora.

– É impossível pensar na nossa vida, antes de resolver meu problema com eles.

– Eles, eles, vá pro inferno com eles e tudo mais, você está estragando minha noite, perdi o sono e não consigo dormir mais.

– O quê você disse? Eu ouvi bem? O inferno, o inferno, talvez lá eu esteja protegido. Devido a sua profundidade, pode haver… querida, a quantos metros da superfície você imagina que esteja o inferno?

– Querido, você está ficando louco.

– Não, vamos lá, suponhamos que ele fique a mais de dez mil metros de profundidade. Isabel, me faz um favor?

– Qual?!

– Pegue minha calculadora e a tabela de Reverson-Frier, estão sobre a minha escrivaninha. Preciso resolver esse problema agora.

– Deus meu, endoidou… Querido, se eu trouxer a calculadora, você jura que depois de fazer as contas vai dormir?

– Juro. Anda,traz, por favor. Bem, vejamos o ângulo de inclinação das coordenadas, a provável temperatura e o insulamento… bastará calcular o coeficiente de refração dispárica e o grau estereostático das moléculas, e…

– Eis a calculadora.

– Haa! Fácil, muito fácil, multiplico tudo pela constante de Alexander e …ok! O inferno hipoteticamente seria a nossa solução, estaríamos protegidos, contudo a vida lá… nós derreteríamos naquela temperatura. Ficamos sem solução para o problema. Eles continuarão nos atingindo. Não ria!

– Querido, deixe-os em paz, vamos tentar dormir, são cinco e dez da manhã.

– Tá bom, faz o seguinte, me passa as pílulas para dormir.

– Meu bem, já é a quarta vez nessa semana que você toma delas.

– Me dá dois comprimidos de uma só vez, só assim consigo ter sono.

– O quê? Toma lá então, você que se dane.

– …já estou tendo sono…

– Querido, não dorme não, eu perdi o sono, o dia vai amanhecer, estou com medo de você… você enlouqueceu? Ei? Acorda! Que porcaria, você me paga. Se eu tomar comprimidos perco a hora, tenho que sair às sete. Você vai matar serviço, não vai? Ei! Seu desgraçado, eu não sei pra que a gente foi se casar! Fala comigo… você não está sob efeito do remédio coisa nenhuma, não faz dois minutos que você tomou os comprimidos, seu sono é psicológico, por favor, o aluguel do apartamento vence amanhã, nós não temos como pagar… ei, fala comigo. Diabo!

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Álvaro Andrade Garcia

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Manual de instruções para um encontro perfeito neste fim de semana

ELE: telefone cedo, antes que ela marque encontro com outro. Não tão cedo, pois ela pode estar dormindo, e acordar mal humorada.

ELA: ouça tudo com atenção. Disfarce seu interesse, diga que talvez tenha que fazer algo bem importante, justo na hora que ele deseja sair com você – não cite nada, porque não há nada de tão importante para fazer, você sabe bem disso. Convença-o a receber um telefonema seu mais tarde. Quanto ao convite propriamente dito, não diga que sim, nem que não. Com isto você ganha tempo, pode ser que outro mais interessante telefone, e ele fica na sua mão, esperando a resposta, sem poder convidar outra.

ELE: desligue o telefone feliz, você sabe das intenções dela. Logo, relaxe e vá assistir ao vt da corrida de Fórmula-1 no programa de esportes. Antes, telefone para outras e diga que está louco de saudades, que quer vê-las, embora já tenha um compromisso. Diga sempre que, se possível, trocará o compromisso de horário só para poder vê-las – não diga nunca que o compromisso é com uma mulher, pois se ofenderão e se recusarão a sair com você.

ELA: não se pode demorar tanto fazendo-o ficar ansioso, senão ele acaba telefonando para outra pessoa. Depois de algum tempo, telefone e diga emocionada que trocou dois compromissos só para sair com ele. A seguir volte a ficar desinteressada. Converse em tom cordial, levemente sedutor. Marque o encontro para as dez.

ELE: diga que ficou muito feliz, desligue o telefone com calma. Depois pode sair pulando pela casa. Mais calmo um pouco, não se esqueça de comprar flores ou chocolates, no fim de semana as lojas fecham mais cedo. Para passar o resto do dia, invente um punhado de besteiras para fazer. Evite atividades que exijam concentração, pois você vai estar pensando nela o tempo todo.

ELA: relaxe um pouco, está indo tudo muito bem, você telefonou a tempo, ele quer sair com você. Agora escolha uma roupa linda, um bom perfume e resolva: ou lê para se distrair, ou inventa uma ida ao salão, para fazer a tarde passar mais rápido. Jante moderadamente, pode ser que ele esteja a fim de te convidar para ir a um restaurante.

ELE: passe na casa dela na hora certa. Ela não vai estar pronta, mas isto faz parte do jogo. Um dos dois tem que ser impontual e o outro tem que esperar. Vá logo, você precisa matar seu desejo, chega lá e espera sossegado.

ELA: a campainha tocou. Abra a porta com cuidado, a maçaneta está estragada.

ELE: calma lá, não vá logo pulando em cima dela, ainda é cedo. Puxa, ela está realmente bonita.

ELA: dê um beijinho nele e espere chegar seu sorriso mais especial, convide-o para entrar, mas demonstre que prefere sair.

ELE: é a hora de dizer: vamos? Onde você quer ir?

ELA: agora atenção, este é um momento tenso. É preciso ter muito escrúpulo, ele pode estar pensando em levá-la a um lugar suspeito. Mas e daí, não é isto que você quer também? Sopre no ouvido dele, fazendo cócegas, o nome de um lugar bem gostoso, só para os dois, e caiam fora, sua mãe deve estar atrás da porta espionando.

ELE E ELA: É chegada a hora. Se virem, façam o que der vontade. É o que importa. Quanto a este manual vocês podem atirá-lo no lixo.

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Álvaro Andrade Garcia

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Snap!!… Foto

Subíamos a avenida Amazonas em direção à Afonso Pena, já próximos do cine Brasil. Estávamos de mãos dadas e apreciávamos os prédios ao redor. Interessante, precisei estar ao lado dela, uma estrangeira, para reconhecer a arquitetura dessa cidade. Ela apontava e dizia: este é art deco, aquele, neoclássico.

– Recomendo a você, que lê distraído: saia com os olhos atentos para a paisagem urbana e mantenha-os voltados para o alto; você vai se impressionar com os recortes do tempo espalhados por aí.

Num certo momento, olhamos para a frente, naquela de conferir o caminho, para não tropeçar. Flash! Um luminoso clarão e estrelas piscavam em nossos olhos. Quando a imagem começou a se formar e minha retina, uma mão entregou-me uma foto.

Olhei para ela. Estava tão perplexa quanto eu. Seu corpo, imóvel, e seus olhos, vidrados. Movi o braço e percebi que não estávamos mais lá. Pude apreciar nossos corpos fixados na foto em preto e branco. Ela ardia entre meus dedos e queimava os olhos de quem a visse. Certa vez, alguém me disse que os índios não gostam de fotografias, acreditam que lhes roubam suas almas.

Quando voltamos a caminhar, algo se esvaziava dentro de mim. Sentia-me personagem de algum romance não lido. Ela, atraída pelos cartazes de cinema, falava de uma cena qualquer entre Mickey Rourke e Faye Dunaway, afixada junto à bilheteria. Não dei atenção ao assunto. Joguei fora a foto amassada como uma bola de papel. Minha imagem naquela 6 x 9 já não me pertencia.

Nas redondezas, um falso índio falava sobre raízes miraculosas para cura de todos os males. Não entendi por que pensei na ingenuidade daquele homem, que tentava vender a idéia de um sonho de beleza e saúde. Para mim, tudo se assemelhava a uma sensação anestésica. Diante da minha imagem ao lado de uma estrangeira, numa foto largada para trás, senti-me engasgado com a impressão de que as palavras dizem quase nada.

Álvaro Andrade Garcia

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Helena

Estava tonto. Olhava ao redor. Não encontrava um ponto de referência. Por um momento me arrependi de ter ido àquela festa. Senti cansaço. Pensei nas tarefas de domingo. Ri. Não teria muita coisa a fazer. Achei mais fácil preocupar-me com o excesso de vodka. Certamente acordaria com ressaca. Ariel ainda estava a meu lado. Falava e gesticulava muito. Meus olhos não focavam. Eu apenas via manchas coloridas. Ariel voltou a insistir na conversa. Queria que concordasse com ele. Acenei com a cabeça. Certo, estou ouvindo. Falava do seu amor por uma mineira. Ri. Um argentino apaixonado ao meu lado.

No fundo eu sabia o que me incomodava naquele momento. Estava só. Levantei-me. Disse que ia ao banheiro. Não precisava de fato. Apenas queria tomar um pouco de ar. As luzes piscavam. Corri os olhos pelo salão. Vez ou outra conseguia focar alguém. Preferia vislumbrar o lugar, as pessoas, as coisas, sem me preocupar em encontrar algo.

Ela estava encostada na parede, bem na minha frente. Usava um conjunto de saia mini verde e um All Star preto. Não havia reparado. Sorriu para mim. Olhava para os lados, nervosa. Caminhei em sua direção.

Era alta, tinha os cabelos castanhos, uma boca carnuda e sensual. Olhei-a insistentemente. É curioso como as coisas são. Passei direto por ela. Tive vergonha, não há como negar. Fui até a mesa. Tentei conseguir um copo de vodka. Lamentei. Queria vê-la novamente. Conhecer alguém não é fácil, pensei.

Pedi a ela um quadrado do seu chicletes. Ela abru uma dessas caixinhas amarelas minúsculas. Bem, os gestos falaram mais. Dançamos um pouco. Um amigo dela chegou.

Foi logo embora, aborrecido. Quem era? Ninguém sabia. Não perguntei. Assentamos e conversamos sobre coisas banais. Ela talvez se lembre desse instante, em que eu apenas observava os movimentos de sua boca.

Desejei beijá-la. Senti que poderia amá-la pelo resto da vida. E fui vulgar. Ela reagiu. Um homem bêbado num final de festa certamente teria agido assim. Mas ela riu, distante da minha aflição. Os homens são todos iguais.

Era hora de ir. Pediu carona e veio conosco. Seguimos imóveis, um ao lado do outro. Pouco falamos. Alguém reclamou dos buracos no asfalto. Eu apenas desejei que ela sentisse que a amava. Nossos olharas traçaram um risco no espaço. O carro freou. Abri a porta e ela salgou. Na despedida, beijou meus lábios e sorriu estranhamente.

Acordei pensando nela. A cabeça doía. Olhei para a cabeceira. Eram menos que nove da manhã. Precisava vê-la. Vesti a roupa mais bonita que tinha. E fui. O coração ultrapassava meus passos. Havia festa e presságios em mim. Estremeci, quando a campainha soou. Estava diante da sua porta.

– Helena, por favor.

Uma velha me atendeu. Curvou-se um pouco. Empurrou sua franja com as mãos trêmulas. Sua atitude me emocionou. Por detrás do seu corpo, fino e enrugado, vi, numa poltrona, um tapete tecido pela metade e um par de óculos. Depois, no sofá ao lado, duas crianças e uma babá desconfiada.

– Sou eu – respondeu, com uma lágrima nos olhos.

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Álvaro Andrade Garcia

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Os bons alunos

Era considerado um radical chique pelos amigos. Ou seja, um indivíduo que aponta soluções exóticas para os mais diversos problemas contemporâneos, sempre com toques de sofisticação inimagináveis pelos comuns mortais. Contudo, ele jamais poderia imaginar, a surpresa que teria na quarta-feira.

Ele, um tipo magro e alto, com seus trinta e poucos anos muito bem vividos, agasalhado, e com os pensamentos longe das aflições do planeta, esperava o ônibus. Acostumado com o tradicional atraso da condução, esperava no ponto de sua pacata rua, quase esquina com a Conselheiro Penna.

Enquanto seu pensamento vagava na lonjura sideral, dois pivetes, sujos e quase sem roupa, se aproximaram. Assim que se deu conta das crianças, veio-lhe um sentimento imediato de compaixão. Fazia um frio lascado naquela noite. Didaticamente, evitou comover-se. A situação de miséria do país não lhe dizia respeito, mas, sim, ao governo, ao sistema e à sociedade.

Uma das crianças perguntou:

– O senhor não tem aí um trocado pra me arrumá? Preciso comprá pão pro meu irmãozinho.

– Eu? – exclamou em tom interrogativo, olhando para os lados, como se estivessem falando com outra pessoa.

– Só um trocadinho – disse o outro menino, fazendo a mesma cara triste.

– Claro que não tenho! Já disse. Vocês acreditam que alguns trocados vão resolver a situação de vocês?

Repentinamente, sem que nenhum dos pivetes compreendesse o que estava acontecendo, desandou a falar como se fosse um revolucionário discursando a seus companheiros. Falou dos problemas sociais do país e do horror que era pedir esmola e ser submisso. Inflamado elevou a voz e falou até enjoar. Concluiu:

– E acho isso, vocês não deviam ficar aí pedindo a nós o que roubamos e conquistamos durante séculos de dominação. O assalto é totalmente justificável do ponto de vista moral. Vocês deviam conseguir armas e nos assaltar de verdade. E mais, assaltem sem ter dó de ninguém, mesmo o mais bonzinho de nós burgueses, uma velhinha, por exemplo, na hora H, é contra vocês e sua classe.

Ainda atordoados com o discurso, os pivetes entreolharam-se e, num rápido e ensaiado movimento, sacaram suas armas. Os revólveres reluziam. Demonstravam estar em mãos hábeis. Seus tambores estavam carregados. O menor e de cano curto apontava para sua cabeça, e o outro, com o gatilho armado, para a barriga.

– É isso aí, cara, passa a maleta e a grana. E tira a roupa, vamo levá tudo.

Ele refutou:

– Calma aí, pessoal! Vocês não perceberam que eu estou do lado de vocês?

– Rapidinho e sem papo, xará. Tamo fazendo o que você falô, vamo lá.

Ele esboçou um movimento brusco, um dos meninos precipitou-se e atirou. Levou três tiros no abdômen. Os meninos saíram em disparada, com a maleta e o blusão de frio. Ficou agonizando no chão.

Um deles ainda gritou:

– Aprendemo direitinho! Fizemo como o senhor mandou!

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Álvaro Andrade Garcia

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Sou do tempo em que menino não valia nada

Até os treze anos não tinha aprendido a ler. Na época, os adultos não se importavam tanto com o que seria uma criança. Dos onze que tive, restaram oito. Menino morre assim mesmo, não? Era comum ouvir minha mãe comentar entre um gole e outro de café com biscoito. Não existia tanto livro de psicologia, nem essa lenga lenga de trauma infantíl. Édipo, Freud e Os Direitos da Criança soavam como japonês. Ninguém entendia. Menino e cachorro eram a mesma coisa.

Havia um certo Deus dará, e, é claro, acabávamos em desvantagem. Menos acompanhamento nos deveres de casa, furúnculos que custavam a secar, lombrigas, cáries doloridas… Mas não posso negar que não havia vantagens. Aos treze anos já fumava escondido e fugia da escola. Com quinze, levei meu último bico na bunda: é hora de trabalhar – ouvi. Depois, nunca mais deixei de vender verduras na esquina, pra deixar um trocado em casa.

Sou da época em que havia um quintal e menino que se preze sumia ali. A gente se embrenhava naquela selva, cuidava do rebanho de palitinhos com rolha e sonhava com uma fazenda só nossa. Duas vezes por dia ouvia o tá na mesa. Noite nunca tive. Mal o dia acabava, vinha a janta. Menino rapava o prato e pedia a bênção depois. Não tinha birra, nem choro. Dente escovado, todo mundo debaixo das cobertas, um beijo na testa de cada um.

A luz era apagada e o dia acabava. Não me lembro de pensar no escuro. Quanto mais de ter medo da solidão no meio de tanta criança resfolegando ao mesmo tempo. Era um sono só e o desejo de chegar logo o amanhã. Havia muito o que fazer no quintal.

Vez ou outra a gente esbarrava num jarro ou escapulia um copo das mãos. Aí voltávamos a existir. Eles se davam conta de nós. O marmelo girava e se a coisa engrossasse vinha cinto com fivela. Mas quem desejava ser carne numa hora dessas?

Álvaro Andrade Garcia

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As mil e uma noites

Quando compro o jornal, descubro que levo uma vida bastante corriqueira enquanto escritor. O que leio ultrapassa qualquer idéia que tenho, por mais irreal que seja. Basta fazer um bom recorte dos jornais e reeditar As mil e uma noites. No Brasil, a realidade é cada vez mais pura fantasia. Acaba sendo desgastante suar a camisa e ver que a gente fica sempre para trás.

Recentemente me lembrei da eleição do presidente colorido. Após uma emocionante briga entre a foice e o martelo contra o príncipe, venceu o herdeiro do trono. O povo, com sua intuição verdadeira escolheu o mais preparado para governá-lo. Até aí tudo bem, só que depois as coisas se agravaram. Este não foi o happy end, mas o início de um conto de fadas infinitamente melhor que o meu, ou de qualquer outro escritor.

Para descansar da fatigante maratona cívica que o levou ao poder, o futuro chefe de estado, sua esposa e um casal de amigos voaram a esmo pelo mundo. Embarcaram num jato transoceânico, vindo de Genebra, cujo aluguél custou a bagatela de trezentos mil dólares, e se dirigiram a um arquipélago afrodisíaco do oceano índico, na costa oriental da África. Que autor poderia imaginar uma cena tão romântica? Dois casais em uma praia paradisíaca, onde até o top less não chama a atenção. Eu consigo, no máximo, vê-los elevando taças de Moët, brindando o país que ganharam de natal, enquanto o Falcon sobrevoa o Índico. Depois pensaria na panorâmica da janela do eleito, dando para as tépidas águas das Seychelles: uma praia de mar verde e areia branca e fina, adornada com palmeiras e amendoeiras.

Ainda assim acho que estaria me equivocando. A coisa parece muito mais deslumbrante e irreal. Passados alguns dias, o jato decolou dali, para descer no Vale dos Faraós, no Egito, numa rápida escala, para que a nossa excelência e amigos pudessem dar um passeio de barco pelo Nilo. O final do programa todos nós conhecemos. Férias corriqueiras, freqüentes em qualquer best-seller de segunda: uma estadia em Roma e Paris, com direito a ópera, passeios a castelos antigos, jantares em lugares famosos como a Brasseria Lipp.

Bem, depois disso aí descrito, absolutamente real como a miséria que nos afronta diariamente, penso se conseguiria continuar imaginando contos… se sou tão facilmente derrotado pela realidade.

Álvaro Andrade Garcia

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Uma visita à repartição

A primeira impressão que tive foi de que visitava o aquário de Miami. Uma enorme baleia, desconfortavelmente alojada num limitado aquário de vidro, movia-se impaciente, esperando o fim do expediente. Repleta de pregas gordurosas, retorcendo-se e esguichando água pela abertura dorsal, ela parecia irritada. Abriu a imensa boca, que num só gesto me devoraria, e disse algo.

A figura dessa baleia se sobrepunha àquela funcionária quarentona, desproporcional e maquilada, que, por mais de uma vez, havia sido indelicada comigo.

Fazia três horas que eu esperava uma audiência com o juiz, e a baleia, distorcida pelo contato com o vidro, me horrorizava progressivamente. Custava a me conter ao ouvir suas estridentes explicações. Ela dizia que eu deveria ter sido mais precavido, que aquela não era hora de perturbar o juiz, que ficasse quieto no meu canto, …, na verdade ela não parava nunca.

Eu, distraído, imaginei-a nua nos braços do magistrado, amassando-o sobre o divã, sufocado e extasiado.

Ela cobrou minha atenção:

– O excelentíssimo te espera, queira retirar o boné ao entrar – borbulhou.

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Álvaro Andrade Garcia

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Eu e meu corpo

No princípio era apavorante conviver com aquela sensação de que não existiria mais. Pensava que jamais retornaria e logo era dominado por um pânico horroroso. Custei a me acostumar com tal condição. Explico: é que costumo sair do meu corpo. Como? Vocês dificilmente vão entender, mas é isso. Saio do meu corpo, e com uma freqüência cada dia maior. É algo que me ocorre desde março passado. Não sei o que é, já procurei até psiquiatra, mas quando estava na sua sala desapareci, deixando apenas meu corpo. Vocês podem não acreditar, mas o psiquiatra passou horas conversando com ele. Quando retornei, só tive tempo de me despedir e ir embora. Nunca mais voltei ao seu consultório, tenho vergonha dele, não sei o que ele teria me dito naquele dia.

Mas como dizia… começou aos poucos, uma hora estava na varanda descansando e depois, quando percebia, não estava mais; outra, eu largava o carro num engarrafamento e custava a voltar. Nestas, digo de passagem, rebocavam meu carro e meu corpo, que sempre ia junto. É, não ando mais de carro, ficava caro pagar as multas; além do que devo confessar, agora encaro o problema de outra maneira. Quando saio de mim posso ir para onde quiser. Para que então um carro, avião, ou qualquer outro meio de transporte?

Quando deixava meu corpo, morria de medo que alguém descobrisse o segredo. Eu poderia até ser objeto de estudo da ciência! Também tinha medo de sair e não voltar, ficar por aí, vagando eternamente. Aos poucos, contudo, tenho deixado de lado este medo, porque sei que acabo voltando.

Fico vagando pelo ar, percorro cidades, a intimidade dos outros. Para dizer a verdade, sou bisbilhoteiro. Mas… tenho problemas horríveis, e preciso resolvê-los. De alguns já dei conta, e como! Por exemplo, como alimentar meu corpo quando saio por um período mais prolongado? Isso é sério. Certa vez quase morri quando voltei ao meu corpo em inanição, após um jejum prolongado. Agora sempre levo comida comigo, pois, quando pressinto que vou sumir, instruo meu corpo para comer de oito em oito horas. Esta é uma particularidade interessante que pude descobrir. Posso pedir a ele para realizar, na minha ausência, aqueles atos mecânicos, essenciais à sua sobrevivência. Como sou um cara metódico, dou a ele umas poucas ordens e o danado se sai muito bem. Penso: “obedeça aos outros, copie os que estão em volta, sorria”, coisas desse tipo.

Agora mesmo sinto que vou deixá-los, é que… fica para depois… atrapalha um pouco… mas vou deixar meu corpo escrevendo para vocês.

Nesta hora o detetive Flink se aproximou e disse:

– Você é a pessoa mais formidável que conheci. Gostaria muito que aceitasse um convite para saírmos esta noite. Seria ótimo se fôssemos jantar no Baloon’s.

Ele olhava para ela com ar de cansaço. Os últimos dias tinham sido agitados, o esclarecimento do crime na mansão dos Christies havia exaurido suas forças. Porém, ali, estava com ela, a formosura em pessoa. Catherine sorria e seu sorriso era mágico e sensual. Sua boca entreaberta parecia um morango silvestre, tal a vermelhidão de seus lábios.

– Você pode me pegar às dez? – Disse ela.

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Álvaro Andrade Garcia

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Ele era um homem comum só que…

Ele parecia um homem comum, nada de especial. Uma pessoa que sempre se deu bem, um pacato cidadão, com poucas ambições. A não ser as comuns a todos nós: ganhar na loteria, ter um caso com alguém importante, ser famoso. Mas ele tinha algo que o diferenciava de nós, e por isso subia tranqüilo a rua da Bahia, naquela manhã ensolarada. Sabem o quê? Controlava o tempo! Não a meteorologia, mas o tempo tempo. Ele era capaz de fazer com que as horas passassem mais rapidamente ou mesmo fazê-las parar. Podia fazê-las voar ou transformá-las em eternidade. Tanto é que ele passava pelas situações e locais sem afobação, pois podia, se quisesse, mandar o tempo dançar, tipo dois pra lá, dois pra cá. Ele voltava o tempo, passava para trás, pulava dias desagradáveis, ia ao futuro, voltava para ver a continuação do passado. E, imaginem, nunca usou desses poderes em proveito próprio. Divertia-se com pequenas alterações: manhãs chuvosas fazia passar em questão de segundos, e, tão logo aparecia o sol, saía para passear. Como naquela manhã. Situações de prova, de tristeza, passava em milissegundos, e um orgasmo que teve há mais de vinte anos, continuava tendo. Ele controlava o tempo. Outro dia mesmo queria ver a continuação de uma série de tv que terminou há dez anos, voltou e assistiu tudinho, embora em preto e branco.

Muitos perguntam por que ele não quis enriquecer com esse dom. Ele poderia, mas parece que é cauteloso, ou já sabe de algo que não sabemos, pois já viu seu futuro: já foi até lá e voltou. Inclusive é só vocês começarem a pensar no fato que lhes conto, para que comecem a suspeitar do seu futuro. Ele deve ter encontrado lá algo que não imaginamos, e que fará com que ele, nesta manhã de sol, atravesse a avenida Afonso Pena e esteja feliz com isto.

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Álvaro Andrade Garcia