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O Melhor de Marion Zimmer Bradley

Fantasias científico-feministas

Um apanhado de velhos contos da autora das Brumas de Avalon não convence o leitor

O Melhor de Marion Zimmer Bradley, 346 p.
Imago Editora – Rio de Janeiro
O que tenho nas mãos hoje é uma coletânea de contos de ficção científica, trabalhos mais antigos de Marion Zimmer Bradley, que agora vêm a tona, depois do sucesso de As Brumas de Avalon. Na sua maioria, os contos versam sobre os habitantes de Darkover, um universo imaginário criado para o futuro pela autora. Em A Feiticeira Contra-ataca — publicado nesse caderno, na edição de 02 de dezembro de 1989 — já tive oportunidade de colocar algumas das minhas opiniðes sobre seu imaginário futurista, manifesto em A Chegada em Darkover.

Não posso deixar de desanimar o leitor exigente quanto a esses contos. Não dá para acreditar na fúria da ficção científica de Marion Bradley. Seu fascínio pela ciência e tecnologia se esvai ao longo dos textos, sendo transformado em pura magia, projetividade pessoal e revivals do passado. Se a ficção cientifica não se sustenta hoje, num mundo em que a técnica e seu avanço paulatino se encontra em xeque, num mundo inseguro, que prova da incapacidade das soluçðes racionais, como pedir ao leitor ou ao autor que se projete rumo ao futuro? Essa é a grande fratura dessa coletânea de contos: Marion os escreveu entre os anos cinqüenta e os setenta, tornando-se ambígua, oscilando entre o entusiasmo e o desprezo pela técnica. Uma frase dela mesma sintetiza bem essa dualidade: “Escrevo num processador de textos, mas prefiro minha máquina de escrever.”

Para entender um pouco mais das motivaçðes que a levaram a nos contar histórias de outros mundos, eras e galáxias, a autora nos oferece um pouco dela, numa pequena prosa íntima. Marion se abre, numa espécie de prefácio, e nos coloca os infortúnios de sua vida pessoal. Da infância, quando teve o primeiro contato com a revista Weird Tales, à vida em Berkley com um segundo marido, ela nos revela a base de suas crenças sobre a literatura e o mundo. Para Mrs. Bradley, a literatura foi uma forma de sair do isolamento da vida doméstica. “A maioria dessas primeiras histórias texanas refletia uma incípida vida cotidiana a cozinhar, lavar fraldas e arrumar nossas pequenas casas alugadas; e uma vida interior extremamente animada, baseada nos livros que lia e nas pessoas que só conhecia através das revistas.” Sua carreira de escritora é avaliada à luz de seus casamentos: “Não tenho nada de ruim a dizer contra meu primeiro casamento: a solidão compulsória deixou-me entregue a meus próprios recursos e proporcionou-me o lazer para escrever.” “Quando tornei a casar… descobri outra vez que escrever era uma maneira de ficar em casa com as crianças enquanto trabalhava… enquanto as crianças eram pequenas escrevi alguns livros por ano”.

É importante também saber que na sua profissão de fé, ela coloca a base de seus entusiasmos atuais nos direitos guys e da mulher e está convencida que a libertação feminina é o grande acontecimento do século vinte. Por essa razão seus livros e contos enfocam mulheres em primeiro plano e trazem para a narrativa seu mundo pessoal: a meninada não parando de nascer, as dúvidas em relação à anticoncepção, os poderes intuitivos e telepáticos do sexto sentido.

A meu ver o problema principal da autora é que ela não percebe que suas histórias são, na verdade, um maravilhoso pastiche de um certo imaginário aprisionado, contemporâneo e comum: alienofobia, mulheres que deixam de tomar anticoncepcional para ter filhos, querelas familiares, jantares formais, machismo infantil, atividades manuais recreativas como tapeçaria e pintura, ainda que tridimensionais. Nesse universo, a autora soluciona os conflitos excluindo os homens. Seu desejo de exclusão masculina chega ao ponto de num determinado texto, nascerem crianças por partenogênese de mulheres telepatas. Noutro, reaparecem as Amazonas, lá em Darkover. A certa altura, a idolatria da mulher atinge seu apogeu, quando uma personagem deixa claro que existe a semelhança entre as mulheres de todas as galáxias. Ao contrário dos homens, que só podem criar problemas, por sua diversidade, as mulheres são todas iguais pois possuem uma área básica comum: “uma criança é o passaporte para a grande fraternidade feminina do universo”.

A dezenas de séculos adiante, no seu futuro remoto, o meio oeste dos EUA ainda é o melhor lugar para se descer de espaçonave. Será que o mundo não vai mudar? Seria como eleger o Egito de hoje como o lugar mais adequado para reabastecer o Challenger. O que se constata é que Marion sai do presente para viajar num universo previsível. Seu grande barato é esse: os livros são alguma coisa para se viajar sem sair do lugar. Tudo em Darkover é espelhado e previsível. Dai não ser estranho o sucesso de Marion entre um certo público. O poder mental dos seus livros é a ressonância instantânea e total com o universo de muitas das suas leitoras.

Se tem alguma coisa que gosto nessa turma que vive num universo em que “as pessoas não mudam” mas “…as civilizaçðes mudam” é uma certa busca que foi muito comum na década de setenta. Os personagens querem um pouco de um mundo mais natural e feliz. Diversos dos contos criam situaçðes conflitantes para viajantes espaciais, que tem seus valores tecnológicos questionados por vidas mais rústicas com a promessa de oferecerem uma qualidade melhor. Nada além do que acontecia na época, é certo, mas não posso só viver de ressentimento por ser homem. Por vezes a leitura de seus textos chega a ser agradável. Em alguns trechos ela consegue ser muito imaginosa. Pela data da maioria dos contos – entre 1950 e 1970 -, ela tinha boas antecipaçðes em relação aos desenvolvimentos científicos de agora, como bebes de proveta e outros. Mas o seu forte são as situaçðes imaginárias que cria, revertendo expectativas. Bons exemplos disso se encontram em As Crianças de Centaurus, A Máquina, Espaço Amplo e O Sangue Fala Mais Alto.

Eu, cá com meus botões, estou torcendo para a isca pegar. Infelizmente não posso entrar no clube de mães e tenho que me contentar em ficar de fora. Apesar disso, o livro é uma tentativa válida de bolinar o mercado para ver se ele fisga o reino de Darkover como fez com o de Avalon. Afinal, os editores e muitas moçoilas e senhoras, ainda prisioneiras das novelas de cavalaria e do mundo masculino, vão poder ter mais um passaporte para penetrar no futuro de Darkover. A coleção completa chega mesmo a competir com Avalon em número de páginas e peripécias. Vamos aguardar, vamos ver no que vai dar tudo isso.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
23/3/1991

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Assassinato no Museu Smithsonian,
de Margaret Truman

Crime Moderno
A justiça abandona o centro da trama na nova literatura policial da filha do ex-presidente americano Truman

Assassinato no Museu Smithsonian, de Margaret Truman
Rio Fundo Editora, 214 p.

Um Museu é um local público que serve como centro de referência cultural, atração obrigatória em passeios turísticos e passatempo para quem não tem o que fazer numa tarde qualquer. Há museus de várias tipos e finalidades: os de cera, de horrores, de história, de som e imagem, de obras de arte e até mesmo de armas de guerra. Agora, segundo a inspiração de Margaret Truman, é a vez de fazer um dos mais importantes deles cenário de crime e mistério, colocando sob suspeita seus habituais frequentadores até que sejam punidos os responsáveis por um assassinato.

A fórmula da autora para homenagear os dedicados ao Smithsonian Institute de Washington foi presenteá-las com a epígrafe do livro e um crime que provoca grande estardalhaço. A vítima é Lewis Tunney, conhecido estudioso da revolução americana, que recebe informaçðes sobre um escândalo prestes a levar o museu dos cadernos de cultura às páginas policiais. Em noite de gala, o pesquisador é assassinado no Smithsonian de forma espetacular, despencando nas imediaçðes do pêndulo de Foucault com uma espada de Thomas Jefferson fincada às costas. No rastro da queda de Tunney, Mrs. Truman deixa ainda uma valiosa medalha desaparecida, um Vice-Presidente de caráter ambíguo, alguns trambiques em alto estilo e um elenco de dezenas de suspeitos ilustres. O leitor de romances policiais vai se sentir à vontade atrás de pistas que expliquem o Assassinato no Museu Smithsonian. A trama envolve especialistas em objetos valiosos e os bastidores da política, com ênfase na atmosfera que encharca o universo dos museus. Como pano de fundo para a intriga, surgem detalhes pitorescos dos primórdios da história americana.

Na obra de Margaret Truman, estamos a anos-luz dos primórdios da literatura policial. O detetive já não conta com a cenografia de bairros pobres, uma ciência apta a colaborar com a máquina rigorosa de raciocínio que tudo esclarece no último capítulo. Se o crime estava em toda parte na novela policial típica do século passado, hoje a ambição ilícita e os negócios escusos se tornaram a própia identidade do real. A narrativa se transpðe aos ambientes de luxo e à cultura refinada em que o criminoso, como o leitor, não chega a se sentir desestimulado em sua arte já que a justiça vence apenas de modo restrito e eventual. Criada na órbita do poder, a filha do ex-Presidente Truman concentra a nossa atenção em personagens que passeiam com requintes psicológicos pelos doze quarteirðes de imponência dos museus do Smithsonian.

Seu personagem principal, o capitão Mac Hanharan, chamado para investigar a morte, tem à frente um quebra cabeças que aos poucos vai se delineando. O capitão é o tipo que se considera chato por ficar perguntando a torto e a direito. Isso abre uma infinidade de diálogos ao longo da narrativa. Além disso, o chefe dos detetives da Polícia Metropolitana mantém algumas características que se tornaram clichê no cinema. Como bom descendente de irlandeses, é teimoso e briguento, só não fazendo jus à fama de beberrão que costuma concluir a tríade de qualidades atribuídas ao sangue irlandês. As manias do personagem figuram entre os acertos do romance. O detetive é metódico, a cozinha sofisticada é seu hobby e via de regra vamos encontrá-lo com um comprimido de Pepsamar entre os dentes. Aliás, é impressionante como anda em moda entre os escritores afligir policiais honestos com úlceras e anti-ácidos.

A trama se torna mais atrativa com a chegada a Washington da ex-noiva do falecido Tunney, Heather Mc Bean. O interesse de Mac Hanrahan pela moça é reforçado pelo fato de que ela guarda a mesma teimosia e a mesma fibra moral como escocesa. A exemplo de heroínas míticas da velha grã bretanha, ela é dura na queda, idealista, casadoira e não se dá assim a qualquer um. Aliás, veio à capital americana para investigar quem de fato tinha interesse na morte do noivo. Como as regras não podem ser alteradas, apesar da atração mútua, a narrativa não é abalada pela efusão amorosa do casal. A trama criminal é portanto o que interessa ao leitor e Mrs. Truman, sua dama.

O livro tem uma narrativa enxuta, de boa qualidade, que por vezes se perde em excesso de conversa fiada. Nada que possa impedir o leitor de manter acesa sua curiosidade de chegar ao final do livro. Utilizando o recurso de omitir do leitor detalhes essenciais à compreensão das cenas que narra, ela faz com que o leitor participe parcialmente delas, desejando correr com as páginas para receber as informaçðes que lhe faltaram anteriormente. Numa trama bem armada ela cria uma infinita possibilidade de desdobramentos ao longo da história e joga elementos para tornar suspeitos praticamente todos os presentes na festa no Smitsonian. O Macguffin – como diria Hitchcock – é muito plausível e as razðes criminosas são bem elaboradas. Muita gente deveria ler o livro para aproveitar a deixa.

Não pude deixar de sentir falta de melhor depuramento na caracterização psicológica de muitos dos personagens considerados suspeitos. Num livro do tipo, ação e mistério é o que importa, mas existe um ingrediente que deve estar em dose certa: os motivos íntimos. Com eles o narrador costura para o leitor a alma dos seus semoventes, ajudando-o a permear a trama. Fui movido também por uma estranha compaixão por alguns vilðes de plantão. Mrs. Truman consegue a proeza de jogar na fogueira ao lado dos verdadeiros criminosos, como quem não quer nada, dois dos piores inimigos atuais da américa moderna: um hispânico e um árabe. Essa pincelada, pitoresca e desnecessária, para uma trama policial passada nos altos escalðes de Washington, apenas serve como um adereço, um aceno emocional, para alguns leitores mais patriotas. Não têm nada a ver com o cenário da capital federal. Nele, antigas máximas continuam valendo. Para a filha do ex-presidente Truman e para a maioria dos americanos, Washington e seus políticos foi e é o lugar da corrupção, sexualidade pervertida, chantagem e futilidade.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
16/3/1991

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Dissecando Stephen King,
de Tim Underwood e Chuck Miller

Segredos de um mestre
Em uma série de entrevistas, Stephen King fala de seu trabalho, suas ambições, seus leitores e de literatura

Dissecando Stephen King, de Tim Underwood e Chuck Miller
Franciso Alves Editora, 265 p.

De início não se deixe levar pelo marketing da capa. Ela apresenta uma cabeça dissecada, com músculos, artérias e ossos expostos, sugerindo uma nova trama de Stephen King, o senhor das histórias de terror. Não se trata disso, mas sim de uma compilação de entrevistas que ele deu à imprensa ao longo dos últimos anos. Assim, o melhor é relaxar em sua poltrona e se divertir. Dessa vez quem sofre são os entrevistadores de Stephen, que tentam se apropriar da alma do maior best-seller do planeta.

Não é tarefa fácil compreender como funciona a mente daquele que mais ganha dinheiro escrevendo livros hoje em dia. Stephen é cínico por natureza. Ele mesmo adverte sobre o circo que é ser entrevistado na era da mídia: “De fato, os programas de entrevistas, a televisão como o rádio … não querem realmente que os escritores debatam seja lá o que for, querem que você divirta o público.” Se essa é sua proposta, temos que reconhecer que ele a realiza plenamente. O livro pode ser apreciado não só pelo prazer de ver o viço de cinismo e deboche de Stephen para com o mundo cultural e para com a mídia, mas pela sua sensibilidade em tocar tabus em debate na literatura moderna. Stephen, que simula quase o tempo todo — e é explícito quanto a isto –, é capaz de apresentar nas entrelinhas um pouco de suas concepções sobre a excitante polêmica entre a grande literatura e a literatura de massa. A leitura e o debate em torno desse livro podem ser um prato e tanto para aqueles que se interessam por esse tipo de cardápio.

Dissecando Stephen King consegue cativar. Basta um pouco de paciência do leitor para pular as inevitáveis repetições de perguntas, mantidas por questões de direitos autorais — há uma advertência sobre isso logo no início. Por exemplo, abstrair o sem número de vezes que os entrevistadores perguntam a ele por que não gostou da versão de Kubrick para O Iluminado.

Para começo de conversa, Stephen surpreende o leitor e seus interlocutores com a lucidez e o grau de informação que tem sobre o que faz e o que fazem os escritores no universo da literatura americana. Ele quebra de saída o mito de que o escritor de literatura de massa seja um desinformado que não aprecia a grande literatura. Sem perder o humor, ele explica por que a leitura é importante para o escritor ao ensinar-lhe o que não deve fazer e a encarar a publicação — questão crucial da prática literária: “Parece-me que os jovens literatos conseguem alcançar um momento verdadeiramente decisivo em suas vidas como escritores quando podem dizer para si mesmos, com toda honestidade … o que faço é melhor que isto… um livro foi publicado alguém recebeu dinheiro por aquilo e você pode fazer melhor…”

Sem ficar por aí, ele cutuca com vara curta e acompanha tudo que se passa no mundo do cinema e da tevê. Stephen revela uma realidade pouco explorada no mundo da literatura. Ele escreve partindo da premissa de que as pessoas hoje não lêem Marcel Proust, mas assistem tevê e vão ao cinema. Ele escreve para esse público que desenvolveu seu gosto estético a partir do contato precoce com os meios audiovisuais. Talvez seja essa a explicação do por que de quase todos os seus livros terem se tornado filmes ou seriados de tevê. Daí também o possível fracasso de público que ronda muito escritor contemporâneo que ainda peleja em escrever em busca do tempo perdido. Sua aproximação com a mídia eletrônica poderia ser utilizada para se esquivar das críticas literárias. Mas o que ocorre é o contrário. Nosso terrorista das letras não se esquiva delas. Concorda com muitas delas e não perde a oportunidade de ridicularizar os criadores do cinema e tevê: “a maioria das pessoas ligadas ao cinema é pouco inteligente; não tem cérebro. O que elas têm, sobretudo, são olhos imensos que tendem a ver imagens sem sentido, sem motivação, ou seja lá o que for.”

Um trecho saboroso de suas entrevistas é a discussão em torno de uma certa intelectualidade que reconhece a boa literatura como aquela que jamais satisfaz o gosto da massa. Stephen parte de outra premissa. Ele diz que a grande literatura sobrepõe uma preocupação estilística e lingüística às histórias e a literatura que as pessoas querem é a que conta uma história. A partir disso, ele explica que pode existir uma boa história aliada a uma boa maneira de contá-la. Mas, adverte: um bom best-seller deve evitar circunlóquios intelectuais que acabem por atrapalhar o andamento da história. É essa sua maneira de trabalhar. Ele relega o estilo e a exploração da língua como momentos secundários da sua produção literária. Na grande literatura qualquer história bem contada faz excelente literatura; na literatura de massa, jamais.

Para quem tem curiosidade sobre a mente satânica que escreve livros como Carrie, a Estranha ou O Iluminado, Stephen oferece tiradas de arrepiar. Ele simplifica o que faz, dizendo que manipula seu lado pervertido, diabólico e sádico numa espécie de exercício catártico quando escreve. É uma espécie de psicoterapia que lhe rende muito dinheiro. Ele acredita piamente que todas as pessoas têm um lado muito sujo em pensamento e vive da morbidez das pessoas. Sem papas na língua diz que o bom pai de família ou a dona de casa dedicada pagam alguns dólares para ver em folha impressa sua sordidez.

Talvez um dos grandes momentos das entrevistas seja quando ele explica a atração que as histórias de terror exercem sobre os adolescentes. Dando a volta sobre os clichês, ele afirma categórico que o adolescente é o maior conservador que conhece. Espremido entre a infância e a vida adulta que não viveu, ele se torna o ser mais reacionário que conhece. Quando foi acusado por um jornalista do Village Voice, de Nova Yorque, de ser um conservador, respondeu que tinha consciência de que as histórias que escreve são muito importantes na conservação da estrutura social. É o terror que mantém a coesão social e serve de escape para a canalização dos medos coletivos. Da analogia entre o medo da invasão dos russos projetada nos filmes de invasões de marcianos ao medo atômico projetado em formigas e insetos gigantes, que polvoa o cinema e a literatura, Stephen traça elegantes paralelos entre a realidade e as formas imaginárias do medo na cultura dos EUA.

Para aqueles que acham que sua vida é assentar diante do micro, escrever quatro páginas por dia e receber 5 milhões de dólares de adiantamentos, Stephen tem uma empolgante história pessoal, que envolve livros recusados, falta de grana, um princípio de alcoolismo e uso de drogas. Não é a toa que ele demonstrou tanta firmeza ao longo da sua carreira: “Os escritores possuem um ego imenso. Esta é a única maneira de obter condições para continuar a enfrentar todos aqueles bilhetes de rejeição.” O livro termina deixando clara a idéia de que ele não é um ingênuo, sentado sobre o travesseiro da fama, falando as bobagens de plantão ou atirando para todos os lados. Stephen sabe que seus dias no Olimpo estão contados. Ele mesmo adverte: a mídia é mestre em fazer trocas periódicas de mitos. E volta a avisar que sabe e gosta de jogar; é esperto e não pretende ser engolido pela máquina. Resta saber se conseguirá.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
9/2/1991

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O Milagre de Lázaro,
de Morris West

A última tentação de Morris West
Um Papa em conflito quer abrir as portas do Vaticano para os pobres

O milagre de Lázaro, de Morris West; Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos Record, 332p

Padres conservadores diplomatas da Santa Sé religiosos dissidentes, jornalistas especializados, terroristas Árabes, o serviço de inteligência israelense e um Papa em profunda crise de identidade estão reunidos no mais recente livro do notório romancista Morris West. O cenário é velho conhecido de seus leitores habituais; flanamos pelos corredores, quartos e ante-salas do Vaticano que dão materialidades às disputas políticas e ideológicas do catolicismo real. Um pouco à antiga voga da má consciência, o católico West purga seus fantasmas pessoais e religiosos nesses ajustes de contas com a sua Igreja e seus mandatários. Como em outros livros assinados pelo mesmo autor, os bastidores do pontificado romano servem de arena para enfrentmento dos entre os gaviões e os passarinhos do clero.

Em O Milagre de Lázaro, vamos acompanhar a via crucis Lodovico Gadda, que encarna o poderoso Papa Leão XIV, patriarca do ocidente, conhecido com o Martelo de Deus. Pontífice de corte conservador, beirando a matriz reacionário, Gadda terá um oportunidade de virada ao se encontrar as portas de um infarto. O livro é um bem urdido álibi para que se avalie a igreja romana no limiar do terceiro milênio. Ah, ia me esquecendo, serve também para Morris West exorcizar as emoções e os demônios que o acossaram ao se submeter a uma operação de ponte de safena, semelhante à sofrida pelo herói papal. Tocado pela condição de uma fragilidade tão humana, Ludovico irá vacilar entre o uso do Martelo de Deus sobre a cabeça dos católicos de esquerda e a abertura da burocracia da Igreja para ficar mais perto do coração do povo. O percurso do personagem em torno da dúvida sobre o poder da autoridade religiosa é o prato que O Milagre de Lázaro oferece ao depauperado leitor da última quadra do século.

A referência bíblica à ressurreição de Lázaro não está apenas no título. Toda a trama é pautada pela interrogação que persegue o Bispo de Roma: o que teria visto o homem que Cristo trouxe das trevas da morte e como viveu depois do grande acontecimento? Morris West aproveita para esmiuçar os poderes eclesiásticos em meio às penas de Ludovico para se reciclar e dar uma guinada ideológica que satisfaça leitores acossados pela bem aventureança. Algumas páginas chegam mesmo a ganhar o tom panfletário de uma opção pelos pobres que deve agradar as audiências mais ingênuas. É claro que, em se tratando de Mr West, esse proselitismo moral e teológico se faz com estilo. Como já se disse mais de uma vez, a obra de Morris West prima por ser de boa qualidade técnico-literária. Não é por ser comercial que uma certa literatura deva por obrigação limitar-se à etiqueta de mal acabada por deficiência de carpintaria. Nada disso, o livro é bem escrito, bem tramado e bem resolvido para os padrões do best seller.

Em sua trajetória ao longo da narrativa, o Papa atravessa maus pedaços ao enfrentar três antagonistas de escol: o médico sionista Sérgio Salviati, o reacionário cardeal Karl Clemens da Congregação para a Doutrina da Fé e a organização extremista A Espada do Islã. Imaginem que a vida de Sua Santidade, além da ameaça das coronárias, está sob a mira assassina de arábes fanáticos. Diga-se que nesse aspecto Morris West inova. É evidente que a imaginação dos grandes autores comerciais não consegue perceber nada no islamismo além da ignorância, fanatismo, violência e intolerância. E aos povos árabes não resta outro papel que o de bandidos de plantão. Voltando à narrativa, a dúvida hamletiana de Salviati entre ser judeu ou ser italiano não impede que opere com sucesso o Vigário de Cristo e abra as portas da sua clínica para as ações clandestinas da Mossad Israelense em defesa do Papa. O terceiro antagonista é Clemens que, de aliado no controle da cristandade pelo dogma, o conformismo e a obediência irrestrita, se vê desnudado como parte do coro de burocratas que não querem mudanças nas esferas de poder. Este preferiu não centrar a ação no conflito entre protagonistas e antagonistas, antes optou pelo diálogo entre o antigo ego do Pastor e seu duplo recém ativado pelas mãos do Dr. Salviati. O que falta em ação, sobra em caracterização psicológica e psicologismo ao gosto do leitor interessado em monólogo interior pronto para consumo. Esperava-se mais de Morris West, apesar de que em seu conjunto o livro não emocione nem decepcione.

O Milagre de Lázaro é apresentado como o romance que completa a trilogia iniciada com As Sandálias do Pescador e Os Fantoches e Deus. Nos dois livros anteriores, o autor acompanha as histórias de outros dois Papas fictícios, o ucraniano Kiril Lakota e o francês Jean Marie Barette. Ambos são contrastados em suas idéias pelo pesado esquema de poder que transformou o Vaticano no rico e forte Estado que é hoje. Os Papas confundem suas atribuições com as de Chefes de Estado e os cardeais com as de uma corporação de burocratas. Neste último volume da série, Leão XIV pretende virar pelo avesso a máquina estatal e as artimanhas que distanciam os fiéis da Igreja.Trata-se, segundo pensa o protagonista, de voltar à opção de Cristo que pretendia formar pescadores de homens. O grande problema é que os prelados parecem ter perdido a vara de pescar e não se acham hoje motivados a meter a canela na água fria para alcançar o pescado. Como nota amarga, o Papa vive cercado de celibarários entediados e padres sem vocação que decidem saltar do barco antes que afunde. As tintas fortes desse quadro dizem com ênfase que Morris West não vê com olhos otimistas os rumos e o destino de sua Santa Madre Igreja.

Com o lançamento deste romance no ano da graça de 1990, o autor diz ter encerrado sua trilogia vaticana. Estudioso do catolicismo, o ex-seminarista e ex-jornalista promete não voltar ao assunto por que teria escrito tudo sobre a Igreja a que pertence e sobre sua vida espiritual nesta mesma Igreja. Com o verve de seus livros anteriores, Morris West ainda poderia nos entreter com saborosas tramas de bastidor enquanto os frágeis seres humanos que são os prelados, inclusive o Papa, sobrem o abalo pela crise do fim dos tempos e do fim do Papado. Menos mal para o crítido que se aflige com a publicação de outro volume tão morno quanto este O Milagre de Lázaro. Quem sabe a aposentadoria estratégica de West não permita que algum autor comercial se aproprie do seu estilo para nos falar desses temas? Afinal, do mito do fim dos tempos à tese do fim da História estamos apenas a um passo de reconhecer o mal-estar que inspira o imaginário contemporâneo.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
19/1/91

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O Ônus da Prova,
de Scott Turow

Os culpados são inocentes
Scott Torow sofistica a ideologia do autor de sucesso e aposta em uma estética clean

O Ônus da Prova, de Scott Turow
Record, 481 p.

O advogado judeu Sandy Stern, imigrante argentino radicado nos Estados Unidos, procura entender os motivos que teriam levado sua mulher ao suicídio. Negociatas no mercado de commodities envolvem seu cunhado e cliente, o milionário Dixon Hartnell, agora sob a mira de tortuosa investigação federal que põe a prêmio sua cabeça. Enquanto prepara a defesa de Dixon, o advogado começa a reconstruir sua vida pessoal. Os dois processos se cruzam a certa altura da narrativa: Stern descobre pistas que preferia acreditar não existirem. Daí em diante, ele e sua família acabam envolvidos até o pescoço na trama, correndo o risco de irem para a cadeia. Ao final de muitas surpresas para Stern e para o leitor, Scott Turow remodela as expectativas e encerra de maneira brilhante mais este thriller jurídico.

É assim que o dublê de advogado e autor de sucesso volta às livrarias. A pleno vapor, com domínio total do gênero, ele nos convida para mais um embate nas barras dos tribunais! Ou mudaram os literatos, ou seus leitores. O fato é que a narrativa de O Ônus da Prova tem uma caracteristica que está em moda nos livros de hoje: descrições minuciosas e poucos cortes temporais. Logo no início do livro, entre a morte da mulher de Sandy e seu enterro no dia seguinte, lá se vão quarenta páginas. A leitura de O Ônus da Prova intriga pelo que desperta na multidão de seus leitores. Não era usual até recentemente que o consumidor da literatura de massa gastasse seu tempo longe da TV com calhamaços de quinhentas páginas. O novo frisson está presente até mesmo no último livro do aterrorizante Stephen King. A leitura ligeira de histórias com cenas rápidas passou a ser balanceada pelo exercício da pachorra que percorre ações escandidas com minúcia página por página, capítulo por capítulo. É o que vemos nesse O Ônus da Prova. O gosto pela lentidão é a nova marca da literatura acessível em qualquer aeroporto ou banca de jornal.

Antes prevalecia o bem-estar de saber quais as alternativas da trama. O olho indiscreto do freguês procurava na última folha impressa o desfecho para confirmar o happy end. Agora, essas manias convivem com as tiradas de Scott Turow. Em suas histórias, é costume o caçador virar objeto de caça. A tortura do personagem colocado diante de seus limites é vivenciada obsessivamente em O Ônus da Prova, como acontecia em seu livro anterior Acima de Qualquer Suspeita. As relações entre os dois livros não são apenas incidentais. Sandy Stern existia como personagem coadjuvante no primeiro sucesso. Agora, é promovido a personagem principal. O que mais chama a atenção nos livros é o aparecimento de circunstâncias que acabam jogando por inteiro o advogado num processo em que estava envolvido apenas profissionalmente. Muita gente anda falando que o primeiro livro é o melhor. Eu tenho minhas dúvidas. Pode ser que haja mais pique dramático em Acima de Qualquer Suspeita, mas O Ônus da Prova não deixa nada a desejar. No que interessa de modo direto a quem lê, ação e suspense dividem o espetáculo com o jogo de encenação jurídico.

A chave do sucesso na fórmula de Scott exige maior consumo de papel e mais tolerância do leitor. O curioso no caso é a sensação de densidade que marca a ação arrastada. Como se o livro quisesse incorporar o efeito da câmera lenta do cinema. Através disso, se consegue colar aquele que lê ao tempo psicológico do personagem e dar validade ao desenvolvimento do enredo. Tudo que se arrasta dá a impressão que não vai se dissolver sem mais. O livro, ao que parece, não deve ser como certos produtos alimentícios que chegam à mesa em flocos finíssimos e se desmancham num segundo.

Turow escreve muito bem, sabe nos manter presos ao percurso das páginas. É claro que, por mais que se esforce, a história por vezes se torna monótona, até que novos fatos tragam dinamismo à narrativa. De toda maneira não culpo o autor. Não há como fazer duas coisas ao mesmo tempo: rechear a trama de muita ação e esmiuçar a psicologia dos personagens. Turow opta por essa segunda via. Caracteriza minuciosamente cada nova personalidade que introduz. O autor não sente desconforto quando corta a narrativa para colocar na bandeja profundas revelações sobre os personagens, acompanhando mesmo as digressões psíquicas dessas almas. O Ônus da Prova se interessa pelo enfoque implacável e bem delineado do modo de vida das pessoas, suas reações, pensamentos e motivações. O autor se esmera na malha de situações que cria e disseca ao limite da exaustão o que se esconde em cada personagem.

Se pudesse resumir o thriller jurídico de Turow, colocaria num mesmo saco o maneirismo a Dostoievski com os batidos recursos da arte dos best-sellers. Articula-se o acesso aos dramas da alma humana, descrições empolgantes, pitadas de sexo, suspense, tudo reunido numa narrativa com sabor de atualidade. Turow não se esquece — e é até combatido por isso — de colocar seus leitores cara a cara com a burocracia do mundo da lei. Ele os informa sobre o funcionamento de instituições que estão presentes em sua vida cotidiana: as etapas de um processo da Receita Federal, o funcionamento de um Grande Júri, as artimanhas utilizadas por advogados e promotores, inclusos aí aqueles termos técnicos grifados em latim, como convém.

Turow trabalha como mestre no universo contido e refinado da advocacia, em que as pessoas se relacionam por meio de subterfúgios e jogos de retórica. Não importa o mal que uma pessoa faça a outra. Os personagens jamais saem do limite das regras. Um homem trai outro com a mulher, arruina sua vida, e ouve uma prolixa preleção moral sobre as conseqüências legais de seus atos. Nesse mundo jurídico, os acontecimentos, mesmo ilícitos, nunca se expandem numa ação pessoal que ignore a existência da lei.

Em tal ambiente contido e conjectural, se move com desenvoltura o protagonista Sandy Stern. No seu encalço vai o narrador, dissecando as intenções, analisando detalhadamente cada ação. Por toda parte, os personagens estão buscando prever os atos alheios, como se as atitudes humanas se adequassem a normas rígidas e pudessem, como a metereologia, ser anunciadas nos jornais. Nesse mundo, todos parecem embebidos dos vícios do tribunal. Tudo tem uma lógica, uma explicação e uma motivação palpável. A sintonia com as regras estabelecidas delineia a mentalidade das pessoas.

Que ninguém pense que se fica por aí. Turow oferece subsídios para discussões sobre a metafísica das leis, e ainda fala dos relacionamentos atuais e sobre o sexo na maturidade. Nas extensas páginas do livro, há espaço para todo tipo de colocação. O autor, sempre que pode, pinta a polícia com maledicência. Advogados realmente não gostam, nem confiam nela. E ele faz questão de mostrar que a recíproca é verdadeira. Explica como se faz um diagnóstico de doenças venéreas, e lança pitadas de pimenta sobre as motivações de muitas mulheres que fazem carreira jurídica, esmiuçando seus complexos em relação aos homens. Nada é poupado, nem mesmo o Texas que é apresentado como sendo um lugar calorento, desestimulante e indesejável.

Assim como no romance policial foram incorporados personagens históricos e a implicação política, a revalorização do cotidiano caracteriza uma parte das obras que chegam à lista de best-sellers. Nos padrões da vidinha de uma classe média planetária, Scott Turow dá exemplo de como a visão que se tenha da ordem social encontra balizas no modelo americano de justiça. O gosto pela encenação e artimanha do júri cria um clímax para a moral que orienta o cumprimento de todas as regras. A estética clean que se ampara na caracterização psicológica e nos parâmetros de uma certa jurisprudência se dá bem nos dias de hoje. As notícias do futuro não chegaram até nós, daí que o imaginário da época pode se nutrir do mundo de hierarquias em que se funda o estatuto jurídico. Cinicamente instalada entre o bem e o mal, a ideologia do autor de sucesso por fim é que vence. Tudo bem, estamos acostumados a conviver com inocentes culpados.

Paixão pela lei

Tão estimulante quanto a sensibilidade do leitor para histórias compridas como O Ônus da Prova, é a retomada do labirinto judiciário como pano de fundo da ação romanesca. Recurso de bilheteria garantida nas telas do cinema, a literatura se vale com menos voracidade dessa mesma ambientação. A grande arte literária nos dá exemplos de cenas intensas passadas em tribunais e bastidores jurídicos, como em O Processo, de Kafka, e Os Irmãos Karamázovi, de Dostoievski. Os exemplos eruditos são, no entanto, superados pelo interesse que a literatura ligeira dedica ao universo dos tribunais. Habitada por advogados, testemunhas, réus, jurados, promotores, juízes e jornalistas, a Corte de Justiça serve às inquietações que perpassam a rotina dos homens comuns. A atenção do público por O Ônus da Prova explora a antiga paixão pelo ritual dos julgamentos, o artifício dos argumentos e a atração pelas togas dos homens da lei.

No passado, grandes filósofos, poetas e escritores da Roma Antiga eram exímios oradores e advogados, que compareciam entusiasmados aos tribunais e aberturas de testamento. A multidão apreciava os lances jurídicos como agora a uma partida de baseball. Os cidadãos tinham aulas de retórica na escola. Exercícios jurídicos hipotéticos serviam de motivo para intermináveis discussões entre letrados do Império. Hoje, a cultura jurídica, feita para consumo, é o menu ofertado por Scott Turow. Ocorrem as maiores indignidades, seja na vida privada ou na vida pública, mas nada é tão forte a ponto de levar o protagonista a pular o muro e reagir de forma visceral. Para o autor, vale mais a satisfação da curiosidade pelo que é uma sala de júri e o processo dos promotores diante de fraudes que lesam o governo. Seus personagens são polidos e agem no espaço institucional previamente delimitado. Se o advogado se sente prejudicado por alguém, uma boa conversa é o caminho para acertar arestas e diferenças. O império da lei deve ordenar as relações, já que tudo é previamente definido e está prevista sua aplicação imediata. As patifarias que o protagonista vai aos poucos dissecando e articulando são prazer suficiente para quem ama descobrir e acomodar os atos e fatos no quadrado formalismo da legislação ou da motivação psicológica.

Seria proveitoso entender melhor essa atração por uma coisa tão desinteressante como a lei. O cenário jurídico é um dos casos típicos em livros, filmes e imprensa de uma ambientação de narrativa que permanece ao longo do tempo. Os processos também perduram anos, são teatrais em demasia, tiram o ânimo de qualquer um, mas ainda assim fazem platéia.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
10/11/90

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O Agente Imperial,
de T. N. Murari

Sujeito de outra história

Kim, arauto do imperialismo, volta à ação nas páginas de um pastiche da obra de Rudyard Kipling

O Agente Imperial, de T. N. Murari
Editora Record, 400 p.

Houve uma vez uma literatura que encantava ingleses e indianos, acima das distinçðes entre senhor e vassalo em pleno jugo britânico na India. Passam os anos, mudam as relaçðes políticas, ainda assim a literatura é formulada como objeto de distraçóo. Eis aqui O Agente Imperial, romance que se anuncia como a releitura de uma das obras de destaque do império de Sua Magestade. Kipling, o consagrado autor de Kim, publicou seu livro em 1901 quando se dizia que o sol jamais se punha nas terras imperiais. Oitenta anos depois, o indiano T. N. Murari ressuscita o personagem e a colorida ambientação oriental para um acerto de contas com suas preferências. Como tantos outros leitores adolescentes, Murari viveu as aventuras de Kim em sua peregrinação ao lado de um místico, enquanto dava uma mãozinha à contra-espionagem britânica. Agora, em O Agente Imperial, trata-se de mostrar o travesso Kim na idade adulta, dividido entre suas origens inglesas e sua criação como indiano nas ruas de Lahore.

Segundo o gosto da nossa época, a ideía de Murari é dar continuidade à história de Kipling e revirar o ponto de vista do narrador tradicional. O personagem-título é recriado em suas ambigüidades, desempenhando o estranho papel do ocidental com aparência de indiano. A narrativa se situa em período imediatamente anterior à libertação da India, o que serve de pano de fundo adequado à crise de consciência do amável Kim. Perseguimos assim as quatrocentas páginas de aventura linear em busca de algo que Murari, enquanto leitor de Kipling, insinua chamar de contentamento perdido. Não encontramos essa quintessência na trama e na revisão ideológica promovida por Murari. Por certo, isso não vai passar de detalhe à massa de seus leitores.

Em nota do autor, sabemos que as aventuras de Kim o fascinaram a ponto de querer ser o próprio personagem. Jornalista indiano com formação britânica, Murari é o oposto do herói que tanto amou. Kim não deixou de ser, nas páginas de Kipling, um saboroso agente do poder estrangeiro, que uma literatura de verve usou para consagrar o ponto de vista dos poderosos. Anos depois, o herói revisitado por Murari perdeu a graça e a convicção da época que representou como produto bem acabado. A sinceridade de Murari para com o herói de sua infância não salvou a empreitada a que se propôs. Kim não convence mais, como podia fazê-lo em Kipling.

A narrativa de O Agente Imperial nos mostra Kim a serviço do coronel britânico que o protegia. Adulto, ele deve atender às tarefas que lhe cabem como agente que se infiltra nas hostes dos inimigos nacionalistas. Sua alma indiana entra em dissonância com seu corpo inglês. O amor da exuberante e desejável Mohini e o interesse na defesa do injustiçado Anil Ray terminam por levá-lo a conhecer os segredos dos conspiradores. Kim deve decidir se entrega as informaçðes ao coronel ou se faz uma opção pelo sonho da libertação e se cala. A narrativa nos leva a essa espécie de conscientização que faz de Kim o sujeito de uma outra história.

Leitores desavisados não percebem que o dilema de Kim é uma coisa velha. Ficou para trás a moral da história, que pretendia virar o ideologia tradicional do romance com um pequeno ajuste operado pela crise de consciência e a opção pelo lado ideológico correto. Há quinze anos ou mais, esse tipo de livro teria um apelo irresistível. Acontece que não é possível falar de crise do personagem, resguardando intacto o aparato de narração. A virada ideológica do personagem Kim não é acompanhada de uma crítica do narrador convencional à la Kipling. O livro de Murari escapa do tom panfletário, seu herói não exagera nos tons nacionalistas e é só. O estilo de Kipling é reproduzido sem brilho, dando continuidade à falsa onisciência do narrador que se basta a si mesmo e mantém a narrativa sob controle.

A indústria que conta histórias não se cansa de importar novidades da última safra. Livros menores são levados ao mercado, com pompa e circunstância, em nome de um certo modelo de eficiência. A literatura fica de fora, mas a literatura é o que importa menos, não é mesmo? A intensa proliferação de histórias ocupa espaços em livrarias e estantes. Histórias cansam em sua monotonia do já lido. A arte do best-seller, sem arte da narração, parece ser o penúltimo degrau no delírio do mercado. A rotineira tarefa de alinhar palavras umas após outras alcança o refinamento de sua banalidade. Em O Agente Imperial, viramos cada página com a sensação de que o imaginário envelheceu e pede urgente que Deus o mate e o Diabo o carregue.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
15/9/1990

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acervo álvaro

O Jornal da Noite,
de Arthur Hailey

Satisfação garantida

Conferindo rara verossimilhança a um sequestro nos bastidores da notícia, Arthur Hailey se aproxima do bestseller perfeito

O Jornal da Noite, de Arthur Hailey
Editora Record, 607 páginas

Crawford Sloane é o âncora de uma das maiores redes de televisão dos EUA. Quando menos se espera, sua família é sequestrada por latino-americanos. O cartel de Medellin/Sendero Luminoso, numa arriscada operação, age em território norte-americano. Sua exigência para libertar as vítimas é impossível de ser cumprida. Os amigos de Crawford na tv desconfiam da eficiência do FBI e CIA, e montam uma operação paralela para localizar e recuperar sua família.

Até aqui nada demais. Para quem conhece o ramo, essa trama é figurinha repetida. Todo livro do gênero intriga internacional tem essa espinha dorsal. A ela, repleta de ação e aventura, acrescente grandes organizações massacrando os indivíduos, rixas pessoais, algumas pitadas de sexo, e seu livro está pronto. O problema do gênero é como desencadear e apresentar os acontecimentos. Hailey merece elogios. O Jornal da Noite é um grande livro. Traz com inteligência e bom texto tudo aquilo que o leitor poderia desejar de um bestseller. Se pudesse sintetizar: excelente trama, detalhamento e ambientação da história.

Hailey trabalha O Jornal da Noite costurando uma delicada rede de acontecimentos simultâneos, entrecortados por flash backs, que fornecem ao leitor uma massa de dados com a qual pode se antecipar aos acontecimentos no livro. Esses elementos não são apresentados de forma didática ou professoral. Os recortes e tramas paralelas vão trazendo, em momentos isolados, uma série de elementos que vão precisar da inteligência e perspicácia de quem lê para se tornarem úteis na comprrensão da trama e dos personagens. Em muitos instantes o leitor tem todas as pistas que estão ao alcance dos herois, para ser utilizadas na sua luta contra os bandidos, pois foi se inteirando dos acontecimentos, com dados aparentemente aleatorios que, articulados, trazem chaves de como a história pode se encaminhar. Para seu deleite, entretanto, apesar das pistas não sabe como a história prosseguirá. O leitor nesses instantes é colocado em pé de igualdade com os personagens, já que apenas algumas das pistas que conhece serão descobertas pelos heróis, determinando uma deflagração específica no encaminhamento da história.

Nos recortes do tempo, assinalados em itálico na narrativa, Hailey monta uma série tramas secundárias, de igual interesse, onde desncadeamentos de ações chegam até o ponto em que se encontram os personagens agindo. Nesses recortes, apresenta melhor determinadas caracteristicas psicológicas dos personagens, que terão importância na trama presente do livro, trazendo subsídios para o leitor participar daquele ou deste diálogo ou ação com um conjunto substancial de dados.

Hailey mantém o leitor extremamente bem informado. Essa é sua característica. Ela chega a ter requintes perfeição em determinadas passagens do livro. Nelas, existem descrições minuciosas de como se maquilar um carro, se conseguir uma chapa fria em Nova York, um passaporte falso na Inglaterra; noções de anestesiologia, com nomes de drogas, dosagens, efeitos colaterais; instruções sobre como transferir dinheiro em dólares do Peru a Nova York, sonegar impostos; informações sobre equipamentos de navegação de aeronaves. Qualquer elemento novo que é apresentado ao leitor na narrativa é dissecado e analizado com riqueza de detalhes e ar de veracidade muito grande.

Seu melhor trabalho de detalhamento no livro é sem dúvida a ambientação. O leitor gosta de sentir que o autor domina e sabe apresentar a ele um ambiente novo, onde vai se passar a história. No O Jornal da Noite, Hailey nos desvenda o telejornalismo. Recebemos informações sobre os bastidores de algo bem cotidiano: como é feito um jornal de tv. Ele informa com detalhes como é a operação de uma grande cadeira de televisão norte americana. Descreve o funcionamento do seu departamento de jornalismo. Nos apresenta o prédio, os equipamentos, as pessoas que trabalham ali com suas rotinas e ideologias. O livro é leitura obrigatória para um estudante de jornalismo. Hailey coloca em discussão temas e máximas que deve ter colhido em suas pesquisas. Pensamentos como este: “Insen tinha uma filosofia a respeito dos milhões lá fora que assistiam ao Jornal da Noite. Para ele, o que a maioria do público de telespectadores desejava eram respostas a estas três perguntas fundamentais: O mundo está em segurança? Minha casa e minha família estão em segurança? Aconteceu alguma coisa interessante hoje? Acima de tudo, Insen tentava fazer que as notícias, a cada noite, fornecessem essas respostas.” Constatações como essa: “… – para a televisão – as imagens dramáticas deveriam ter prioridade absoluta, ficando em plano secundário as análises ponderadas e, às vezes, a própria verdade.” Não é a toa que o livro se consome em mais de seiscentas páginas. Se passam cento e cinqüenta e o sequestro ainda está acontecendo, mas em compensação, quem não conhecia nada de telejornalismo, vai estar sabendo um pouco mais.

O Jornal da Noite é um livro de mestre no gênero. Bem dosadas estão todas as características que fazem um livro alcançar o sucesso no gênero intriga internacional: ação, informação detalhamento e pesquisa, heroi contra inimigos atuais (a moda agora é fritar os latinos) e insersão da ficção na realidade. O leitor se satisfaz em saber que a ação apresentada no livro é uma hipótese plausível no mundo real: “Puxa, isso poderia ter acontecido. Alguém poderia tramar alguma coisa assim.”

E Hailey consegue. E acerta na dose. Os elementos são misturados de forma precisa e acertada. Existe muito intelectual por aí que nunca leu um livro de ação como esse. Quem se acostumou a nivelar os best-selleres e dizer que todos tem má qualidade, que se cuide. Tem gente fazendo coisa muito boa no gênero. Hailey merece morar nas Bahamas com Sheila e fazer seus milhões de dólares.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
8/9/1990

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Entre Amigos,
de Gabriel Garcia Marquez

Um Nobel quando jovem cronista

Coletânea de crônicas e críticas de velhos filmes mostra o bom e o ruim do jornalismo de García Marquez

Entre Amigos, de Gabriel Garcia Marquez
Editora Record, 505 p.

O cenário internacional anda tão agitado que ler velhas crônicas não é nada mal. Acabo de ler Entre Amigos, uma coletânea de textos escritos pelo Nobel colombiano Gabriel Garcia Marquez. Para minha surpresa, os países tropicais também produzem autores que podem se dar ao luxo de ver sua obra menor em letra impressa. Num volume de 502 páginas, organizado e apresentado por Jacques Gilard, estão reunidos textos de 1954 e 1955 para colunas publicadas no El Espectador, um jornal de Bogotá. O livro começa com um extenso prólogo de 67 páginas, que acompanha em minúcias a trajetória do então jornalista em seus primeiros vôos profissionais. Naquele tempo, ele fazia de tudo um pouco: crônica, reportagem, até crítica de cinema.

A maior parte do volume é ocupada por artigos que escrevia para uma coluna de crítica cinematográfica (O Cinema em Bogotá). São comentários sobre filmes que estavam sendo exibidos na cidade, notas corriqueiras, nas quais o máximo que se pode extrair são opiniões do escritor-jornalista acerca dos filmes que via. O próprio organizador da coletânea chama a atenção para o aspecto efêmero e banal dessas críticas. Precisei ler o material com alguma impaciência, mas o leitor certamente vai pular muitas dessas páginas. Revisitar filmes antigos através de comentários de curto alcance não satisfaz a ninguém. Isso interessa apenas àqueles que desejam conhecer todas as facetas do escritor, quem sabe um estudioso da sua biografia ou um fã ardoroso. Se o assunto é a rememoração de filmes, melhor esquecer O Cinema em Bogotá e ler Manuel Puig, escritor portenho que trabalha de forma brilhante esse tema.

Os outros textos do volume são reportagens investigativas narradas em forma de crônicas, publicadas originalmente na seção Dia a dia. De maneira quase romanceada, Gabriel Garcia apresenta as situações cotidianas e explora as crenças e idiossincrasia dos seus compatriotas com maestria. Macondo, todos sabem, é uma metáfora literária de países abaixo do equador. O mais estimulante é a constatação de que lugares fictícios, como Macondo, existem em Bogotá e Barranquilla. Quem lê, consegue um flagrante do cotidiano de um país sobre o qual se tem pouca informação. Porque, entre nós, Colômbia virou apenas sinônimo de cocaína e guerra civil. Nos textos da coluna Dia a dia, é possível identificar os temas que tinham ressonância para o escritor: o imaginário do país, as lutas políticas entre liberais e conservadores, as cidadezinhas da costa do Caribe. Não passa desapercebida sua aversão pelos gringos. São aquelas posições comuns a tantos intelectuais sul americanos querendo provar que os Estados Unidos não passa de um tigre de papel.

Não dá para entender por que, do ponto de vista editorial, os textos de O Cinema em Bogotá e de Dia a dia estão reunidos no mesmo volume. Os estilos, os temas e a qualidade são diferentes. A única característica em comum é a sua data de feitura. Sem dúvida, o destaque do livro fica com as crônicas da seção Dia a dia. Um dos bons momentos do volume são os relatos que narram as desventuras do batalhão de colombianos que foi à Coréia lutar contra os comunistas. É incrível, apesar de verdadeira, a trajetória de camponeses do interior desse país caribenho no cenário da guerra asiática. O resultado soa em requintada prosa: “Apesar do perigo e da sensação de estarem pisando nos domínios da morte, havia nessa guerra algo insólito, ao qual não estavam acostumados os soldados da Colômbia. Depois da ação, como caída do céu, mas em realidade transportada em caminhões, chegava a comida. `Estava sempre fria’, diz um veterano, mas em compensação era abundante”.

Há humor e política em doses bem distribuidas ao longo de Dia a dia. Mesmo quando o assunto é local e limitado ao tempo dos acontecimentos, dá para sentir a presença de um autor de peso por trás do texto. Garcia Marquez é conhecido por sua contribuição à reportagem, que procura aliar o cuidado na apuração dos fatos ao artesanato na confecção do relato. Num desses painéis curiosos da vida em Bogotá, Garcia Marquez recria com minúcias a galeria de personagens políticos a partir de suas preferências na escolha de tipos de chapéu. Irônico, afirma que a história se escreve com o inseparável adorno, que acaba personificando a essência da vida política. Mais adiante, como esquecer a participação especial do gaiteiro Samuel Andrew, membro da guarda negra do exército britânico? Ele viaja para a Colômbia, ignorando a sua existência e localização geográfica. Acreditava, a princípio, que iria até a Colúmbia Britânica. Não era nada disso, o simpático gaiteiro passou alguns dias em Bogotá. Entusiasmado com o que via, tocava sua gaita de fole, curtia a noite e os boêmios, as mulheres e dispensou sem solenidade a tradicional visita ao Museu do Ouro. Na prosa de Garcia Marquez, “poucas horas antes de abandonar o nosso país, perguntaram-lhe o que mais o agradou na Colômbia. Samuel Andrew não vacilou um instante: disse que o que mais gostou na Colômbia foi do uísque”.

Na Dia a dia, o repórter Garcia Marquez não se preocupa apenas em apresentar os fatos. Nem se restringe a opinar sobre eles. Sem deixar de lado seu caráter verídico, lhes imprime tonalidade literária, transformando episódios banais em textos interessantes para o leitor. Eu apreciaria bem mais os jornais, se tivessem mais espaço para esse tipo de coluna. Agora, o questionável é a propriedade de se publicar, em forma de livro, todos os textos da época, especialmente em conjunto com comentários cinematográficos. A gente sabe muito bem da diferença entre aquele texto costurado ao longo do tempo e aquele feito numa sentada, depois da matinê, para estar no jornal, quando o dia amanhece.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
30/6/1990

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O Teatro do Carniceiro,
de Jonathan Kellerman

Arabescos Criminais

Requintes narrativos e sutilezas psicológicas Na descrição de uma caçada humana em Jerusalém

O Teatro de Carniceiro, de Jonathan Kellerman. Tradução de A. B. Pinheiro de Lemos. Record, 544p.

Histórias com as de O Teatro do Carniceiro fazem pensar nos rumos da narrativas contemporânea. As frases bem arrumadas da literatura comercial trazem um conforto e um fluxo de sensações caracteristicos. Pretendem grudar os olhos e a imaginação do leitor aos percalços da trama pronta para consumo. O trabalho do narrador se reduz a tornar atraentes e verossímeis os acontecimentos em relação à lógica dos personagens. Os leitores provavelmente não se propõem questões desse tipo. Mas afinal de contas, todas essas histórias não foram lidas antes? As grandes tiragens invadem as lojas e prateleiras de livros atrás de um tipo de consumidor apto a reconhecer certos autores, enredos e tonalidades morais. Em O Teatro do Carniceiro não ficamos fora do círculo impiedoso das histórias de sucesso. É prato cheio para os aficionados de emoções fortes, arabescos psicológicos e finais previstos.

Kellerman escolhe um daqueles dois e três lugares típicos no cenário internacional para ambientação de seu thriller. Em Jerusalém, um maníaco sexual inicia uma série de assassinatos de moças árabes. Os policiais israelenses, comandados por Daniel Sharavi, montam, uma investigação sigilosa e obsessiva para impedir que os crimes venham a tornar insuportável a tensão entre judeus e árabes. Jogando com o caleidoscópio das várias etnias, o autor nos leva a percorrer as vielas da cidade em que fantasmas de passado histórico assediam a cabeça dos personagens.

O cerco ao assassino faz o polícia desconfiar de muitos falsos culpados, mexe com a crise de consciência dos israelitas e palestinos, para chegar a um de alta intensidade dramática. Kellerman capricha na diversidade de estímulos que leva aos leitores de best sellers. O criminoso se esconde sob o ardil de falsas identidades, enquanto agentes terroristas da OLP preparam ações explosivas em Jerusalém. Não faltam o manto de neutralidade da ONU ao lado dos serviços de assistência social prestados por religiosos católicos. Para completar, umas pitadas de neonazismo e os desvios sexuais de um psicopata.

O imaginário do fim do século não ainda saturado apenas de preocupação delirantes com o futuro. Além da ligação com as sofisticadas técnicas de mídia, da vivência da simultaniedade dos acontecimentos internacionais, estamos sob o signo da violência.

Em meio aos objetos confortáveis de contemporaneidade, sobrevive a marca do horror. Pode-se perguntar: horror de que? Jonathan Kellerman dá um exemplo, à própria revelia, da sensibilidade com que sintonizamos o dia-a-dia na era da mídia. Daniel Sharavi é o homem de princípio que um belo dia se transforma de caçador em caça do assassina. Ele procura resolver o caso do homem cinzento, mas é apanhado na contra-mão de sua corrida ao enigma.

O maníaco sexual está mais próximo dele próprio, Sharavi, do que pensa, e ira ameaçar o circulo familiar do policial. O que ele descobre é mais bizarro e doentio do que supunha. Animais e seres vivos podem servir ao gozo de um tarado por facas e rituais de dissecação de vísceras. Kellerman dá algumas pistas, com que piscadelas de olho para o leitor, de canário neonazista em que mora o criminoso não passa de grosseiro efeito teatral. Algo que não é para se levar a sério. Resta o enigma que amarra o leitor às quinhetas e tantas páginas, cujo o conteúdo é a banalidade do consumo prazeiroso da maldade.

Em livros desse tipo, o drama social de povos que se autodestroem no oriente não vale quase nada. Tudo se reduz a curtição da violência ao som de cubos de gelo que tilintam no copo de uísque. O final feliz, como simulacro de qualquer coisa menos ruim, sempre chegam para personagens e leitores em busca de emoções esquisitas.

Num diário entre o encucado herói e seu pai, este lhe diz que sua atividade como investigador também é uma arte. E enfatiza: não se esqueça disso. Kellerman, o autor, soube acolher o recado de seu personagem. A estrutura narrativa de O Teatro do Carniceiro é mais sofisticada que a maioria do que se pública no mercado. Dividido em três partes, o livro não economiza a inserção de personagens e histórias paralelas. As nuanças biográficas dos homens da equipe de Daniel Sharavi também páginas e até capítulos do texto. O uso dos flashbacks dá consistência às interpolações que atravessam a linear caçada ao assassino. O inferno psicológico do criminoso é relatado com requinte e arte, como recomendava o pai de Sharavi

Se emagrecesse o texto de situação e personagens, o forte do livro continuaria a ser a trabalhada reconstituição do labirinto psicológico em que se debate o assassino. O problema é que essas filigranas apenas confirmam que a literatura de massa está em sintonia com o espirito do tempo. Como se não bastasse assistir aos telejornais, os leitores se dispõem a abrir o livro e imaginar em minúcias o reino da barbarie e dá perversidade. Isso pode virar moda, o que se confirma na ousadia das mil páginas (ainda sem tradução no Brasil) do último livro de Stephen King.

A literatura comercial, como se vê, não vive maiores problemas. O mercado não se esgota nos países de língua culta e vai além das páginas de gossips intelectuais do New York review of books. Em O Teatro do Carniceiro continua em alta a velha regra da narrativa herdada do século passado. A trama deve ser clara, passar a impressão de que segue uma linha reta e naturalmente fluida. O autor deve Ter competência para recriar os ambientes e as circunstâncias. E mais: o leitor deve ser afagado em suas convicções de que toda causa correspondem a um leque de efeitos a serem desvendados. Nada mal para a faixa do público que prefere a verdade do contador de histórias à sua própria visão da trama. Joseph Kellerman traz como novidade o embaralhamento dos costumeiros maneirismo estilísticos do gênero best seller. Para quem gosta, há um glossário de palavras e expressões em hebraico e árabe. É a fase culta desse tipo de livro. A evocação dos cenários de Jerusalém e os capítulos psicologia do assassino forem o alibi de que ouve uma pesquisa para criar O Teatro do Carniceiro. Os clichês e a leitura pelo facilitário estão ao leitor. A gratuidade do ato de ler traduz o tédio a que chegou o maneirismo estilístico da literatura comercial. Nem o acabamento industrial do produto, nem o bata-palminha da crítica norte-americana validam qualquer baboseira. Afinal, qual é mesmo o lugar da literatura nos dias de hoje?

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
26/5/1990

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A Casa da Rússia,
de John Le Carré

Ainda no frio

Desconfiados da glasnost os espiões de Le Carré continuam seu jogo

A Casa da Rússia, de John Le Carré
Editora Record, 397 p.

Há algo de novo no front oriental. A perestroika não consegue resolver a obsolescência da indústria e o desabastecimento crônico na União Soviética. O Pacto de Varsóvia entra em colapso com a queda dos regimes comunistas. O pluripartidarismo ameaça a existência do Partido Único, ungido nos anos 20 e exportado na era stalinista. Para completar, crescem os movimentos nacionalistas e separatistas ao lado dos conflitos étnicos. A imprensa internacional não se cansa de anunciar: a Federação Soviética não é mais a mesma. A antiga Cortina de Ferro recebe a corte enamorada de leigos e doutos capitalistas a partir de Berlim Oeste. A imaginação ocidental sobre o Leste Europeu começa a dar sinais de que precisa fazer sua própria reforma dos símbolos e mitos que sustentaram a Guerra Fria.

O irresistível John Le Carré, com a recente publicação de A Casa da Rússia, deu a partida para um novo lance de dardos ideológicos. O cenário foi montado com grandiloqüência: depois do climatério dos dirigentes da velha guarda, Gorbachev traz as novas palavras de ordem da paz, da transparência e da reconstrução. Em meio à desconfiança de que na era Kruschev o entusiasmo era mais genuíno e espontâneo que o atual, Le Carré revisita locações e personagens que o consagraram como especialista em romances de espionagem. Em sua fábula dos azares contemporâneos, reúne o editor inglês Scott Blair à evasiva e fascinante russa Katya, nas peripécias para contatar Yakov, o cientista de renome que deseja passar informações estratégicas ao Ocidente. Segundo ele, o sistema de defesa soviético seria completamente defasado e inoperante. Apenas o editor tem as condições para obter a confirmação do maior segredo militar russo. Como em toda história do gênero, entram em cena os homens cinzentos do serviço secreto. É o bastante para o leitor decolar rumo aos intrigantes bastidores dos senhores da paz e da guerra.

A moral da espionagem é mostrada como a contraface da imagem pública que Bush e Gorbachev querem passar. Nas palavras de um dos homens do serviço secreto, o fato do império inimigo estar de joelhos já é motivo suficiente para não esmorecer e espioná-lo ainda mais. Sem esquecer que se deve chutar o saco de seus súditos cada vez que tentarem levantar do chão. É edificante. O problema se agrava com a paranóia instalada nos altos escalões dos governos e agências ocidentais, que nunca têm certeza se Yakov, codinome Pássaro Azul, fala a verdade ou se se trata de agente da contra-informação. A partir desses ingredientes, Le Carré cria uma das mais intrincadas e deliciosas tramas para os amantes do gênero. Seja qual for a preferência ideológica do leitor, ele terá em suas mãos uma literatura comercial bem acabada que também pode ser lida como saborosa ironia.

Quando leio histórias de Le Carré como A Casa da Rússia, não posso deixar de vê-lo hoje, afastado dos acontecimentos que narra, passeando com seu cão esguio pelos bosques da Cornualha. Também é impossível ignorar que o nosso ex-espião de Sua Majestade guarda a mesma boa vontade para com os soviéticos que um jesuita com a indisciplina de crianças no catecismo. Recentemente, neste caderno Idéias (edição de 3/12/89, n.22), o atilado John veio afirmar sua convicção de que a Guerra Fria terminou para todo mundo, menos para os profissionais. Afastado o perigo nuclear, mais do que nunca a luta pela hegemonia na Europa se acelera. Depostos os mísseis, novas armas são empunhadas. Um jogo mais sutil se instala, com o incremento da mídia e a conquista de novos espaços para a circulação de capitais. Nessa ordem de coisas, Le Carré acredita que o papel do escritor é entrar na batalha do front europeu, arquivada por Roosevelt e Stalin, e que está para começar de verdade.

Se esses são os costumes, nada estranho que os personagens sob o influxo da glasnost percam as características de épocas menos ambíguas. Ð exceção dos homens de cinza, sempre positivos e dispostos a agir com base em muitas certezas, o editor Blair e a doce Katya vivem o jogo da simulação e da identidade inapreensível. O leitor que gosta de caracteres nítidos e definitivos por certo irá praguejar mais uma vez contra Gorbachev e suas ações. Em A Casa da Rússia, não temos certeza de quem é quem e, o que é pior, o próprio narrador se contamina com a areia movediça que sustenta os dias atuais. Palfrey é narrador e personagem a um só tempo, sujeito obscuro que participa das iniciativas do serviço secreto inglês na operação Pássaro Azul. Esse homem de fundo de cena nos relata as inquietações e as dores do demasiado humano Scott Blair. O editor inglês se torna, aos olhos do narrador Palfrey, tão enigmático quanto saber se o atraso do sistema bélico soviético é um blefe ou não. Para quem está acostumado ao preto no branco da ficção digerível, Le Carré definitivamente não facilita as coisas.

O leitor atento vai perceber que o nosso impecável romancista contrapõe os homens azedos do serviço secreto às pessoas comuns como Katya e Scott Blair. Não é à toa que as opiniões destes sobre o desarmamento não coincidem com as da CIA. Para Katya, americanos e soviéticos desconfiam uns dos outros, mas quando unirem suas forças será possível a paz duradoura. Juntos poderão colocar a casa em ordem, intervindo em conflitos pelo mundo afora. Nada mais estimulante para Blair, que andava à deriva enquanto não tinha uma razão de viver. As dificuldades de Katya e sua família o levam a realizar um tour de force para dissimular os espiões e esconder-se dos próprios atos. Nunca antes da glasnost o imaginário da Guerra Fria foi sacudido por um personagem assim. Ele aceita trabalhar para os serviços secretos ocidentais e ao mesmo tempo tem idéias exóticas, como a de que a última esperança que resta é a Utopia.

Não será repetir o óbvio chamar a atenção dos leitores para o estilo de John Le Carré. Especialmente para a maestria como desenvolve os interrogatórios que se tornam o centro da narrativa. Seus personagens falam, conversam, confidenciam e são interrogados. Submetidos ao tratamento bruto dos homens de cinza, ressaltam seu humanismo e a crença em valores triviais, como a liberdade individual e o direito de fazer opções políticas.

Neste confuso fim de século, os anti-heróis Blair e Katya servem no mundo da ficção de contraponto ao casamento de Susan, neta de Eisenhower, com Roald Sagdeev, diretor do Instituto de Pesquisas Espaciais de Moscou. A ironia dos dias atuais reservou para o falecido general de direita e ex-presidente americano ter associada sua voz ao tom da concórdia nas relações internacionais. Le Carré escolheu para a abertura do livro, sabe-se lá onde, uma epígrafe de Ike. Ele diz acreditar que os povos querem tanto a paz que um dia os governos devem sair do caminho e deixar que eles a tenham. O leitor se prepare. O day after da Guerra Fria já começou.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
24/2/1990