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A Chegada em Darkover,
de Marion Zimmer Bradley

A Feiticeira contra-ataca

Marion Zimmer Bradley ensaia a vitória da magia sobre técnica

A chegada em Darkover, de Marion Zimmer Bradley Tradução de Alfredo Barcelos Pinheiro de Lemos Imago , 172p.

Basta a cada dia o seu mal. Zimmer Bradley é hoje reconhecida como autora de história atraentes para qualquer clube de leitores interessados em consumir o chavão do feminismo. Passados vinte anos de sua primeira edição, o exercício de Mrs. Bradley na série Darkover pouco acrescentou ao território da ficção científica esse gênero prolixo e tanto mais chato quando não é tratado com mestria. Não é nada não é nada são onze volumes para preencher o tempo de quem sente um leve cansaço das séries televisivas e do cotidiano morno e sem sal. O primeiro livro tem lá sua inventiva. No século XXI uma supernave estelar se desvia de sua rota e cai em um planeta selvagem. Os sobreviventes precisam lutar com o ambiente hostil e estranhas forças psíquicas até construir seu novo lar. É o conhecido mito da origem, são contado e recontado à exaustão nos últimos séculos por todo autor de renome que se preze.

Quando a série Darkover começou a ser escrita, a moda era o amor livre, as comunidades de seus sentidos e sentimentos.

Como nas antigas lendas da Terra (leia-se nos mitos anglo-saxões), o futuro está completamente voltado para o passado. Apesar de anticoncepcionais à base de hormônio injetáveis e propulsores MAM que levam a Alfa Centauri, não faltam ressonâncias do tipo Eram os Deuses Astronautas e memórias de canções que falam do amor de um peregrino por uma fada. Sem perda de tempo , a compreensiva Marion estende a seus leitores os princípios de sua antropologia. O homem primitivo deve ter reunido poderes psíquicos que permitiram a sobrevivência e o desenvolvimento antes da civilização e da tecnologia. Reinava a percepção extra-sensorial, não havia entrado em cena a madrasta civilização e o cortejo de suas desditas. Alucinações, intuições e viagens astrais parecem fazer parte, aos olhos da ficcionista, do mapa do tesouro que a humanidade guarda sem saber.

Ao se aproximar do fim do primeiro volume da seria Darkover, o leitor vai encontrar seres alienígenas que fecundam mulheres da Terra e os modos de Camilla soa mais contemporâneos, como no caso dos vários filhos que possui com pais diferentes. O amor, desejo sexual e a vontade de ser feliz repetem sem muito colorido um hino aos fundamentos de uma civilização que não alternativas, o movimento hippie e seus congênitos. A cabeça das pessoas se ligava em tudo que tivesse a aparência de novo e do fascinante. Como é usual na ficção científica, o romance de Marion se prende mais uma vez aos traumas do tempo presente. O futuro não passa de uma projeção tosca de anseios e inquietações corriqueiras, cabendo à narrativa abrir o espaço de imaginação para o que se lia diariamente nos jornais. Eis a terra do próximo século na ótica da ficcionista de plantão: um planeta superpovoado, poluído, com a saúde pública controlada pelos avanços técnicos. Seus acham antiquadas atitudes como a do herói Rafael MacAran, que prefere escalar uma montanha em vez de usar o teleférico. Ele fatalmente forma um par com a altiva e obstinada Camilla Del Rey, cujo o nome de cantora de bolero esconde de fato uma personagem feminina vencedora como outras que são mostradas na saga de Avalon. Entre o afeto de Rafael e o amor do comandante Leichester, ela prefere se impor e ficar com os dois.

A autora sabe jogar com a descrição das paisagens extra-terrestre em que sobressaem os extremos do calor ao meio-dia e da nevasca à meia-noite, o ataque das formigas-escorpiões, flores e frutos que crescem rapidamente sob climas violentos. Chamam a atenção quatro luas multicolorida se um incrível vento que traz um pólen ou vírus capaz de levar as pessoas à satisfação imediata de seus desejos passionais. Na verdade, Vento Fantasma – como é chamado personagem – faz também com que os terrestres adquiram poderes extra-sensoriais ao gosto de narrativas em que a magia e a realidade têm que andar de mãos dadas. Mrs. Bradley não dispensa imagens levemente ridículas narrando o delírio psicodélico dos personagens, como um homem com a perna quebrada que sai correndo até cair rindo para uma das luas, enquanto um tigre lambe seu rosto carinhosamente.

Assim como não se vê à vontade com os efeitos do inusitado vento alucinógeno, Marion escorrega na sua visão da técnica e suas aplicações. Ela ridiculariza os homens que não conseguem dar um passo sem o apoio da boa e segura tecnologia. A nave interestelar resume o avanço e a competência alcanças do pelo homem no século XXI. A queda no planeta desconhecido faz dela uma fuselagem pesada e sem função. A máquina contamina a imagem de MacAran faz de si mesmo. Ser civilizado é o pecado original dos heróis em Darkover. Não há caminho de volta ou ponte com a história que ficou para trás, só é possível olhar para frente. Esse insensato futuro preconizado por Marion Zimmer Bradley não deixa de ser engraçado e soar hoje ligeiramente anacrônico. A nave precisa ser destruída. O computador, que levara o comandante a devanear sobre a própria semelhança com deus, deve ficar reduzido à condição de biblioteca até o dia em que os homens consigam retirar de si mesmos (de suas almas?) o conhecimento já armazenado na máquina. Nada como um ficção cientifica depois da outra para repetir que o destino da técnica e, por tabela, do homem é insano.

Marion Zimmer Bradley encontra espaço em sua narrativa para descrições líricas sob um novo céu e uma nova Terra. Em seus bons momentos. A ficcionistas nos mostra o êxtase de Camilla, embriagada com a natureza. Em Darkover, os personagens encontram sua juventude restaurada. Há mulheres feitas de flores, o sol da infância bate nas pálpebras de homens adultos e, nas palavras da autora, paira uma euforia gloriosa sempre que os terrestres são acometidos dessa estranha visão que modifica a lógica das coisas. Ao embalo das descrições fortemente marcadas de erotismo e sensoridade, Camilla e seus companheiros de aventura passam a desenvolver a percepção Sensorial. È comum na narrativa que alguém esteja ouvindo o que os outros pensam e tendo pressentimento de que algo está para acontecer. Enfim é a maneira que Marion encontrou para liberar seus personagens da opressão que ela prevê como a moeda corrente do futuro. Através de suas pulsões, todos se tormam humanos, estranhamentes humanos, com a expansão se cansa de cantar a si mesma. A cada sociedade, o autor que ela sustenta e merece. A chegada em Darkover não leva o leitor que esteve com Marion na Atlântida, em Tróia e na Távola Redonda, a correr riscos algum de ir além do que preza a nossa boa e segura indústria editorial.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
2/12/1989

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O Negociador,
de Frederick Forsyth

‘glasnost’ por um fio

Frederick Forsyth confirma seu talento para tramas em que realidade e ficção podem ocupar territórios contígos

O Negociador, de Frederick Forsyth Tradução de Aulyde Soares Rodrigues. Record, 396 p.

Forsyth volta a atacar. E com artilharia pesada, a mesma que usou para conceber seu melhor romance, uma das mais bem arquitetadas e mais populares história de ação da moderna literatura do Ocidente: O dia do Chacal, que narra as tentativas de crime organizado em escala internacional para liquidar o ex-presidente francês Charles De Gaule. O livro é tão bom e fez tanto sucesso que o editor nunca hesitou em utilizá-lo como uma espécie de luminoso na capa dos romances de Forsyth escrevia mais tarde, como alias acontece com este O negociador. Aqui a história começa no futuro e vai penetrando. Mas um futuro bem próximo, o que amedronta o leitor de hoje e o faz pensar que tudo esteja prestes a acontecer. Como se uma agulha lhe rondasse a veia de um dos antebraço ou um cego penetrasse numa casa desconhecida e atulhada de finíssimos cristais.

Desta vez Forsyth inventou uma bossa que, infalível no mundo do cinema e da tevê, na literatura é pelo menos usual. Não me lembro de ter visto elenco de personagens nos livros de ficção que já passaram sob meus olhos. Aqui ele aparece reunidos por nacionalidade – americanas, russos, europeus… – e apresentam nomes extraordinários: Mikhail Gorbachov, secretário-geral do PCUS e Margareth Thatcher, primeira ministra da Inglaterra, para dar só dois exemplos. Apesar da força de sua imaginação, Forsyth não pode introduzir o republicano George Bush nessa invulgar galeria de personalidades. Afinal o presidente norte-americano nem de longe sustenta o perfil político que o nosso mestre idealizou para John cormack, democrata convicto, ultraprogressista e decidido a assinar com a refrigerada União Soviética de Gorbachov um tratado de desarmamento de longo alcance. Como Gorbachov, Cormack vislumbra com esse gesto – levado a cabo em Nantucket, pequena ilha do litoral da Nova Inglaterra – garantir um futuro de paz para a humanidade e desviar para o campo das pesquisas energéticas as gordas somas que se queimam na fabricação de sofisticadas armas de guerra.

Mas é evidente que um gesto tão largo jamais deixaria de produzir uma contrapartida igualmente grandiloqüente. O embrião do contragolpe pôs-se a crescer tão logo a ideologia da não-beligrância começou a ganhar corpo.

Enquanto Cormack e Gorbachov se abraçavam na bucólica Nantucket e produziam uma imagem que as câmaras de tevê revelariam a milhões de emocionados telespectadores, o ultraconservador texano e magnata do petróleo Cyrus Miller esboçava um riso cínico em seu escritório, no último andar de um suntuoso edifício no centro de Houston. Disposto a ir às últimas conseqüências para enterrar os sonhos de Comarck e expandir seu império para muito além das fronteiras dos EUA, Miller associa-se a políticos reacionários, capitalistas, sem nenhum escrúpulos e mercenários de baixíssimo calão, para arquitetar o diabólico plano Álamo. O armador Melville Scalon é seu braço direito e o renegado Irving Moss o seu melhor marionete. A trama é mirabolante e inclui fantasias com que muitos devem sonhar mas que só poucos se atreveriam a levar adiante: a supressão da dinastia real saudita e o controle de Riyad e dos campos de petróleo de Hasa. Estaria decretado assim o fim monopólio petrolífero! Tão incrível projeto saiu da cabeça do consultor de segurança Robert Easterhouse, especialista em Arábia Saudita, e se daria a partir da ação do grupo do Santo Terror liderado por um imã que devota ao rei e sua família o mais patológico dos ódios. A casa de Saud dominada pelo poder xiita seria um feito inaceitável, e de Omã, passando pelos Emirados, até o Kuwait, Síria, Iraque, Jordânia, Líbano, Egito e Israel, se ouviriam pedidos de intervenção americana para salva-los do Santo Terror.

E mais ainda: para desestabilizar Comarck, criando-lhe estorvos os mais cruéis, o Álamo articula o seqüestro do único filho do presidente, o jovem Simon Comarck, durante sua viagem de estudos ao Balliol College, em Oxford, Inglaterra, desencadeando a mais espetacular mobilização da comunidade de informação ocidental: Scotland Yard, Cia, FBI. Mas a manobra foi excessivamente bem trabalhada para ser resolvida por seres humanos normais. Era preciso que Ele chegasse para decidir. Quinn, o negociador – veterano do Vietnã, várias vezes bem-humorado mediador na libertação de reféns em poder de organizações extremistas – que deixa suas plantações de uva no interior da Espanha para descer aos infernos e punir rufiões.

Do outro lado da cortina, membros do PC soviético descontentes com os ventos democráticos do governo Gorbachov preparavam uma bomba para torpedear os planos de seu nem tão gentil camarada. As lideranças desapontadas com a retina da Cabul têm sede de expansão e para isso precisam de armas. O petróleo também é um problema (extrair óleo na Sibéria e no Ártico dá trabalho e requer somas enormes), e a conquista do fogoso Irã poderia ser uma belíssima solução.

Vejam em quanta enrascada meu velho amigo Frederick procura meter seus leitores, daqui, dali e de muito além, pois seus livros chegam até a Polinésia, passando pela África e a Ásia. Seus personagens falam centenas de línguas e obedecem a leis sintáticas que em alguns casos eu reputaria obscenas. Juntos, seus livros já venderam entre 40 e 50 milhões de exemplares.

Há pouco, em comentário sobre o último livro de Robert Ludlum, A agenda Icarus, disse que com a era Gorbachov a exploração do confronto Leste-Oeste havia perdido a graça nas narrativas de intriga internacional. Com sua habilidade, no entanto, Forsyth achou um jeito de reinjetar sal na já bem-lavada e combatida carne seca. A luta já não se trava entre as nações, inflamadas pelo binômio ideológico comunismo-capitalismo que antes as separava, mas no seu próprio interior. A roupa suja se lava na própria casa, em tanque de guerra , com água pesada.

Dizem que, talvez em conseqüência de seu sangue de repórter de guerra, Frederick Forsyth escreve sem lirismo, que suas histórias se ressentem da ausência de poesia. Acho absolutamente desprezíveis comentários desse jaez. Se as suas histórias faltam essas virtudes, elas sobram em sua personalidade de homem de letras. Quanto mais Frederick vende seus livros, tanto mais ele sua a camisa para superar-se, atribuindo grandeza a um gênero que nunca passou de primo pobre aos olhos dos que vêem literatura como algo que mora longe do prazer. Forsyth arma textos de ficção com a audácia dos mais audaciosos, e por isso também merece as alturas.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
28/10/1989

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A Agenda Icarus,
de Robert Ludlum

Perigo sob os turbantes

Nem russos, nem amarelos, em seu mais novo romance, Robert Ludlum exibe vilões do mundo árabe

A Agenda Icarus, de Robert Ludlum
Guanabara, 645 p.

Ao deparar-se com A Agenda Icarus, último sucesso de Robert Ludlum, a sensação que se tem é de pavor: afinal são 645 páginas que terão de ser enfrentadas. Mas a fama do autor anima; faz com que se queira abrir o tijolo para conferir se a habilidade do oleiro ainda continua afiada. Começada a história, tudo fica mais fácil. O livro consegue cativar, dispensando, para sua total deglutição, o consumo de colagogos ou anti-ácidos.

O parágrafo de abertura do primeiro capítulo é barroco. Ludlum inicia a narrativa com aquela velha idéia de céu chumbo-escuro, prestes a desabar. O leitor pressente que há algo de sombrio e podre no ar. É transportado para Mascate, a capital do sultanato de Oman, na Ásia. Fanáticos árabes invadiram a embaixada americana e fizeram reféns. Não demora muito e o herói dá o ar de sua graça. Evan Kendrick é um obscuro deputado do Colorado, conhecedor profundo dos países do Golfo Pérsico. Sua missão? Lutar pela vida dos 236 inocentes presos no simulacro.

Na primeira parte do livro, o leitor encontra o Oriente Médio em chamas e é enredado em 218 páginas de muita ação. O pique é muito bom nessas páginas iniciais. Acho sinceramente que Ludlum poderia ter parado aí. Na segunda parte, o leitor é transportado para os Estados Unidos, onde grupos secretos de milionários, gente da CIA, do FBI, terroristas, mercadores de armas, deputados, se envolvem numa operação – cognominada Agenda Icarus – cuja meta é o controle político do país. A terceira parte é fininha (32 páginas) e, ao meu ver, absolutamente dispensável. O livro terminaria bem melhor sem ela.

A Agenda Icarus acaba sendo dois romances distintos. Com a astúcia que lhe é peculiar, o autor conseguiu costurar as tramas numa só, utilizando os mesmos personagens. Eu prefiro o primeiro. O segundo começa mal. Suas primeiras 150 páginas são de lascar, muito chatas. A narrativa abandona o Golfo, as prisões e becos, os terroristas árabes, para acompanhar a política norte-americana, que, cá entre nós, consegue ser mais cacete que as comédias protagonizadas por Dean Martin. Conversa fiada, a tevê e a imprensa escrita fazendo a cabeça de eleitores e discursos enfadonhos ocupam parágrafos e mais parágrafos. Quanta monotonia! Só mais tarde, quando a nova trama começa a se esboçar e os fatos passam a produzir ação, é que o livro recupera a empolgação do início.

A história é contada naquele clássico esquema da narrativa linear, com princípio, meio e fim. Um ou outro flash-back. O narrador tem um forte tropismo pelo herói e corre atrás dele o tempo todo com uma câmera fixa na mão, não deixando que qualquer de seus passos fique sem registro. Ação é o que não falta; os diálogos quase sempre vêm sob medida. Vez por outra entremeia falas sem identificação – em geral de vilões, acentuando o clima de suspense – ou se detém nalgum personagem que só mais tarde terá importância.

As descrições são exatas. Aliás Robert Ludlum sempre fez questão de falar através de um narrador altamente qualificado, que dá a impressão de saber de tudo. Nessa Agenda alcança as raias da minúcia ao explicar que um vôo de F-106 da Sicília, na Itália, a Oman pode ser feito em quatro ou cinco horas, a depender dos ventos mediterrâneos predominantes. Noutra passagem diz que o prefixo usual dos telefones de Mascate é 745. Isso me atrai. Uma coisa de que gosto no livro é a pesquisa que dá cor local à narrativa. Um livro de ação sem isso não se qualifica. O autor fez o melhor possível. O romance é recheado de informações sobre países árabes e expressões não traduzidas para o inglês. Robert Ludlum nos mostra seus hábitos, explora sua maneira de conceber e pensar o mundo. “Ajude-me com a thobe e o aba, por favor”. “É o seu Deus, ya Shaikh, não o meu”. Baklava bohrtooan, nos ensina, é “torta de limão”; e Shvartzeh Arviyah é algo como “negra árabe”.

Em alguns momentos há uma certa exorbitância nos diálogos e a coisa fica meio maçante. Homens adultos e importantes discutem obviedades e há redundância a mancheias. Conversa demais jogada fora. Mas alguns desses diálogos chegam a ser divertidos. Os americanos dizem `porra’, `merda’, `caramba’ o tempo todo. Nem o presidente foge a esse linguajar contundente, chulo. Essa é a ambientação, a cor local made in USA, que se completa com a visão que o narrador passa do político da terra. Deputado e senador que se prezem têm que ter o rabo preso. Seu passado está inapelavelmente associado a sujeira sexual, ligações com a máfia, tráfico e consumo de tóxicos. Lendo A Agenda Icarus, a gente começa a achar que Washington é o império da chantagem e da corrupção. Parece que ali ninguém está livre de canalhices. E como gostam disso os compatriotas!

Ludlum se cerca de todos os cuidados necessários à concepção de um herói sem defeitos, de caráter irrepreensível. Tudo em Evan Kendrick – todos os seus atos, até os mais bárbaros – se justifica. Não é à toa que o narrador ponha Kendrick a curtir reminiscências e inunde o leitor de flash-backs que trazem à tona as atrocidades cometidas pelos árabes no passado. Isso faz irromper em ambos o desejo de vingança, dá ânimo aos dois e faz o leitor se esquecer de que tudo é ficção.

“- O que estou fazendo? – gritou Kahleha para si mesma. Aquele não era o momento para pensar no passado, o presente era tudo.” Ação, essa é a matéria do autor. O presente é tudo, o passado só pode existir para dar justificativas ao leitor, mostrar-lhe que o personagem tem motivos de sobra para se meter em tanta enrascada e não raro ser impiedoso, vingativo. Uma vez conquistado, o leitor tem que invadir o mundo dos protagonistas. Uma narrativa presentificada puxa naturalmente o leitor até o fim do livro. Mas essa não é a única estratégia que o autor usa para manter o leitor ali, com a cabeça presa à ratoeira, até o ponto final. Ludlum não só é um escritor contemporâneo, como também tem consciência disso. Ele sabe perfeitamente o que as pessoas querem ler e abusa dos condimentos necessários à satisfação de seus desejos. Robert adora meter combustível no fogo. Afinal, para esse tipo de leitor, quanto mais quente melhor.

Robert Ludlum está absolutamente a par da última moda em matéria de vilania: árabes, mafiosos e latinos da droga assumem hoje o papel antes reservado a outras etnias. Os russos da glasnost não entram em cena. Com sua perestroika, Mikhail Gorbachev acabou por retirar quase todo o sal da carne seca. Perdeu a graça falar em ` perigo vermelho’. O `perigo amarelo’ também já era. Os maus agora usam turbantes. O maniqueísmo é salutar para uma boa trama de ação. Bons movidos a sede de vingança e senso de liberdade e maus impulsionados por dinheiro e fanatismo, como no caso dessa Agenda. Uma boa mistura. Isso também rende páginas que dão gosto de ler.

Na política, especialmente no Oriente Médio, sempre é bom ter alguém por trás de tudo. Um livro de intriga internacional pressupõe organizações subterrâneas agindo, manipulando a realidade ao redor, como se pessoas e fatos fossem marionetes. O herói é um candidato ao teatro de fios, mas se rebela. Ele é um índividuo especial, que descobre a engrenagem e tenta se livrar da manipulação. Evan Kendrick, o herói, faz isso muito bem. Conhece a verdade que os personagens só têm parcialmente e que o leitor, no mundo real, jamais alcança.

Kendrick é um personagem sem substância, mas determinado, como deveria ser. Vai desempenhar bem suas funções e merece ouvir belas palavras na página 313. É o nosso presidente quem o elogia: “Acabei de ler todo o material secreto sobre as coisas que você fez e devo lhe dizer que estou muito orgulhoso…” “Sua atitude, Evan, como indivíduo, será uma aula para gerações de jovens americanos.” Só o herói pode vencer as obscuras organizações associadas aos inimigos.

Alguém poderia acusar o livro de americanófilo. Mas ele é isso mesmo, do princípio ao fim. Fala do fanatismo e ignorância dos inimigos, revela a força do índivíduo WASP (White Anglo Saxon Protestant), mostra o político corrupto e milionários com interesses escusos contra um empresário bem sucedido que quer ganhar seu dinheiro honestamente. Tinha que ser assim. Afinal não são os árabes nem os políticos que sustentam o mercado editorial. Robert, entretanto, se previne. No início, o narrador é meio anti-árabe, mas depois se redime, chegando até mesmo a dizer que há bons árabes. Os que dão cobertura aos EUA e ao Mossad, é óbvio. Cômico, não? Para os que se interessam por esses temas, na página 425 há uma fantástica discussão sobre a diferença entre `terroristas’ e `guerrilheiros da liberdade’.

Prefiro comentar a atuação de uma meia-árabe com pele cor de amêndoa, uma bela e sedutora mulher chamada Kahleha. Ela desempenha bem suas funções. É uma criatura inteligente, forte, decidida. Muito bem cunhada. Aproxima-se de Evan para cumprir tarefas profissionais, chega a receber ordens para executá-lo, mas depois teme por ele. Ela é fantástica, na rua e na cama. Durona e misteriosa, faz bem o tipo da heroína moderna. Eu gostaria de conhecê-la.

Se A Agenda Icarus é um livro bom ou ruim, não sou eu quem deve dizê-lo. Isso cabe às listas de vendas. A editora é de porte, o autor anda que nem pão na boca da massa e o esquema promocional foi muito bem montado. Particularmente, fiquei satisfeito com esse romance. Se expressei aqui uma ou outra restrição, não me recriminem. Apenas defendo o leite das crianças. E o Robert sabe disso. Minhas opiniões, como as dele, nunca correspondem à realidade.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
30/9/1989

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O Diário de Um Mago e o Alquimista,
de Paulo Coelho

O Viajante do novo astral

A magia de Paulo Coelho é mais corriqueira do que aparenta

O Diário de um Mago, de Paulo Coelho
Editora ECO, 246 p.

O Alquimista, de Paulo Coelho
Editora Rocco, 247 p.

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Certa vez estive com Jackie Collins em Londres. A debochada escritora de sucesso me confessou: “Tom, as pessoas realmente gostam de ler sobre três grandes temas: pobres que se tornam ricos, a empolgante trip do poder e a psicologia barata dos relacionamentos”. Para ela, essas eram as fórmulas certas para um livro ser best-seller. Não discuti, apreciei a colocação e guardei a frase no micro, para um dia voltar a pensar nela.

Acredito que a civilização está se cansando desses temas. Afinal, são anos e mais anos de publicações e autores bombardeando o leitor com variações sobre a mesma coisa. Ninguém aguenta mais ouvir falar de jogadas para subir na vida, poços de petróleo, governantes corruptos e trama de espiões, quanto mais de conselhos de psicólogos e empresários bem sucedidos. O best-seller tradicional está em xeque. De tanto copiar o mesmo modelo, parece que o filão está secando. Acho que o público quer novos assuntos, novas aventuras!

Cresce o interesse do público por castelos medievais e terras exóticas. O mercado se renova. É o que se vê nas listas dos mais vendidos. Boa parte dos assuntos em voga foge do padrão descrito por Jackie. Quem não quiser sair do negócio, é bom aprender com os pioneiros da onda ocultista.

Recebi recentemente dois livros de Paulo Coelho, um desses novos autores de sucesso. Ele não se encaixa em qualquer rótulo preconcebido. Mora no Rio de Janeiro, América do Sul, compõe músicas no gênero rock ‘nd roll, frequentou diversas seitas místicas e hoje viaja pelo mundo seguindo trilhas sagradas. É a saga do peregrino na busca de sua Lenda Pessoal.

Em O Diário de um Mago, narra suas aventuras percorrendo o estranho caminho de Santiago – uma rota de peregrinação muito famosa séculos atrás, que vai da França à Espanha. Movido pelo desejo de encontrar a Espada Mágica, que não conseguiu obter durante um ritual na serra do Mar, Paulo se envolve em aventuras e desventuras com seres de carne e osso e do além. A viagem a pé pelos 700 Kms que separam as duas cidades é pretexto para a descoberta do Verdadeiro Conhecimento. Para isso conta com a ajuda de Petrus, seu guia espiritual, designado para acompanhá-lo. Ao longo do caminho uma série de peripécias, como duelos com o Demônio e outras forças que procuram afastá-lo do objetivo, dá a oportunidade para que o Guia e o Aprendiz travem diálogos onde o autor revela sua Sabedoria Pessoal. Durante a história, o Guia vai ensinando alguns exercícios exóticos, como o ritual do mensageiro, o exercício do enterrado vivo e o da audição, entre outros. Essa culinária mística é oferecida à parte em páginas destacadas, onde o autor descreve seus passos para que o leitor possa participar.

O Alquimista conta a história de um jovem pastor espanhol que é acossado por um insistente sonho. Depois de decifrar revelações de uma cigana vidente e do Rei de Salém, vai ao norte da ãfrica e atravessa o deserto em busca do seu Tesouro. Nessa viagem ele conhece o Amor, a Linguagem do Mundo e um Alquimista que vai ajudá-lo. Novamente a peregrinação tem o objetivo de revelar segredos esotéricos ao alcance do homem comum. Ele é escolhido para sofrer provações de toda sorte, antes do desfecho final. O Aprendiz dialoga com o Mestre Alquimista e chega a conversar também com o deserto, o vento, o sol e outros companheiros de viagem.

Depois de passar pelos dois livros, também me vi como um místico e tive a ligeira sensação de dejá vu. As viagens de Paulo Coelho no caminho de Santiago, ele mesmo não nega, são uma espécie de Carlos Castañeda II – A Missão. Em O Alquimista, as descrições são mais líricas, e o livro deve lembrar ao leitor de um certo Malba Tahan aqueles chavões da sabedoria e crueldade dos árabes e do deserto. Ao longo dos dois livros, as etapas do Caminho do Conhecimento, descritas por Castañeda, são repetidas por Paulo Coelho. A diferença entre os dois autores se dá ao nível da linguagem e da cabeça dos personagens. Se o Aprendiz de Castañeda é o universitário conhecedor de ervas e segredos e o bruxo é um índio misterioso, os personagens de Paulo, especialmente em O Diário de um Mago, têm outro perfil. São mais tropicais. O autor é um deles, um carioca descontraído que se sente à vontade em usar uma camisa I Love NY, sob um traje medieval de peregrinos. Seu Guia é um designer italiano famoso, que vota no PCI. Daí o mix da sua narrativa oscilar entre modernidade e tradição, corriqueiro e sagrado. O mago pode ser qualquer um de nós. Você pode lutar com o demônio e tomar um bom vinho Riojas a seguir.

Nos dois livros Paulo Coelho refaz trajetórias históricas e religiosas. São interessantes as informações que traz sobre fatos e acontecimentos do passado. No plano das idéias são colocados no mesmo caldeirão padres, bruxos, malucos, pastores, santos, cavaleiros medievais e filósofos, entre outros! A linha central que une toda essa turma é o Eterno Retorno, explorada por Niezstche no século passado. É preciso cumprir a missão da travessia e chegar enfim ao início. Mais uma vez o dejá vu, parece que os anos setenta estão mesmo na moda. Voltar é o que há!

No mais, penso que a verdadeira qualidade de Paulo Coelho é conseguir de fato entrar em sintonia com a expectativa do grande público. As pessoas andam interessadas no aprimoramento pessoal a partir da descoberta de suas energias interiores. Ele nos convoca: todos podemos ser magos. Essa é sua Verdade e Virtude. O leitor de Paulo Coelho se confunde com os personagens e o narrador, especialmente quando este se apresenta como um homem comum vivendo uma aventura extraordinária. O público reconhece o que lê como seu e muitas vezes se esquece que o texto não está bem alinhavado. Deixa de notar que o autor não teve muito cuidado com sua expressão, muito menos a segunda editora na revisão e preparação dos originais.

Os livros tem uma cara muito igual. Isso preocupa. Uma fórmula que deu certo não significa que vai continuar dando. As editoras seguem na esteira de um sucesso até esgotar o nome do autor. Paulo que abra seu olho. Ele tem que ser cuidadoso, deixar de fazer mais para fazer melhor. Dizem que já tem seus royalties adiantados, e que está envolvido em nova peregrinação. Antes do leitor embarcar na sua próxima viagem, será preciso saber se o mago continua atrás de sua Lenda Pessoal ou se foi engolido por compromissos editoriais.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
6/1/1989

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Maria do Socorro

Maria do Socorro

Assentadali, confundindo asfalto e esperança, viajante do seco sertão, resvolava e cintilava na multidão esquentada. Meu coração: pedaços retângulos menores até mesmo que um minúsculo rebento de dor. A atenção descida pela avenida encontrava-se com ela: Socorro e seus companheiros: puspulava e demarria pela sua sesmaria, lugar de espírito. Seu corpo arrasado, desdeitado: idéias achataradas, espingoladas, com vontade de correrporali e tramar entre as pessoas, esmolando oquepuder. Me aproximei. Seu-desejo- 2-bonecas. A caixa registrou 27,90, uma senhora protestou contra meu ato, um supérfluo carimbo na noite. Era noite fria de dezembro… Nada nada veio do céu, nem chuva nem vermelho, veio apenas mais noite.

Os transeuntes se foram. Meus olhos bolares irradiaram indignidade. Eles catavam as circulências e conglobavam tudo numa desoluta massamental de dor e clareza. Socorro, socorro, ia-se e perdia-se, uma viajante sem teto, miserável. Prosseguia apenas até o sonho mais proveitoso, entre perebas e cáriesdentais. Seus traços, oh, seus traços! Devolviam-me lembranças: eram víticos, congruentes, acertados. Entre aquele liso cabeloaovento e suas pernas tocando o chão, vinham as rosas, um bule quente de café, os sempremais que a situação. Prometi a ela um lugar na irrelevante pervida das palavras, e depois. Sofri mais um pouco.

 

Álvaro Andrade Garcia

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Monólogo de Merda

Eu estava assim meio aloprado com muito desejo de te falar, MERDA ao mesmo tempo expressar tudo e esquecer, eu pensava na sua silhueta a cada prazer que tinha, cada vista, e cada cama tinha que ser a nossa, e vi pasMERDAsarem cercas e pastagens, serras e cada bar tinhMERDAa uma cerveja que seria a nossa, pensei no que sentia e vi brotar o amor que ainda estava pleno e respirava contente MERDA MERDA MERDA. Queria você ali, eMERDA ficava feliz por que te sentia ali, e pensei nos meus grilos e fantasmas, e resolvi dar uma boa encarada neles, e por isso pensei MERDA outra vez na sua silhueta de luz. Senti corMERDAes passando, e fiquei cada vez mais apaixonado, e pensei mesmo em querer ir mais fundo com você, essa coisa de construir uma ligação mais duradoura, e MERDAdesejei que você tivesse me entendido aquele dia, o MERDAsentido do meu convite, meu arrebatamentMERDAo, as emoções exageradas… Não deu, eu sei, eu criei um desejo mesquinho que deixei crescendo em mim, uma fantasia que sempre tive, MERDA estou afundando à sua revelia, e consegui me afastar ainda mais de você, e hoje só esse sentimentoMERDA MERDA MERDA muito enfurecido. Eu te MERDA odeio te odeio, MERDAquem ama sabe dMERDAisso, e eu queria muito, tinha uma vonMERDAtade MERDAalucinada, queria te ver outra vez.

Álvaro Andrade Garcia

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Suspiro

Se a alma não é pequena e as falanges tremulam como varas prensando a folha, rasgando a folha, ignorando a folha. Se o ânimo é distante, o calor distante, o riso distante, e a falta faz mormaço e manto. Se o corpo ainda não aceita e verga e dobra e evita, se os olhos fazem quinas enquanto pulpita o coração. Se de fato houve o ocorrido, se se viveu o que de fato se viveu, não morre o que se instalou, nessa saudade.

Álvaro Andrade Garcia

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A Mente

Se nesse instante pudesse voltar os olhos para dentro, voltar o que se vê para daonde vem. Inverter a direção. Fosse possível iluminar e dar foco ao que se veria na penumbra do corpo. Agregados e pulsantes, os filetes de nervos e vasos, perfurando o crânio. Um caleidoscópio de luzes-sombra, túneis de estruturas macias. Dentro da caixa reluzente, através das frestas enfim, a visão estarrecedora da mente. Um amontoado de cores pálidas percorrendo um degradê entre o amarelado e o cinza. Uma verdadeira geléia de gordura e água, imersa em litros e litros de sangue e informação. Se fôssemos mais, na análise de cada pedaço, na busca do cheiro e gosto do cérebro. A sua consistência. Os sentidos exaustos não diriam nada. A metáfora estaria morta. O habitante ilustre não mostraria seus dentes. A verdade é uma só: estamos aparelhados para ver o que não está em nós. O pensamento fracassa, a introspeção, a hipnóse, os elementos todos que dispomos não alcançam essa força propulsora que move tudo para longe de si. A mente não esboça segredos, apenas é invisível, não ocupa lugar no espaço. É opaca a tudo isso por que não sabemos ver para daonde vemos.

Álvaro Andrade Garcia

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A Boca

A boca carnuda estava cerrada sem força. Um pequeno espaço entreaberto entre os lábios mostrava um pouco do branco dos dentes. Eu olhava atento. Ela sorriu. Um riso pacífico. Espichou-se ligeiramente e os dentes apareceram, atrás dos lábios brilhantes e tensos. O branco dos dentes tinha um tom ligeiramente gélido. Sem opacidade nem transparência, algo como a cor pura. Durou pouco a visão. Os lábios retornaram à antiga posição, deixando apenas uma pista, uma fresta.

Mais algum tempo, os lábios começaram a se mover: pareciam marolas de um lago, uma corda vibrando. Dali saíam sons e algumas palavras deveriam estar me dizendo… talvez, mas era muito perceber os sons que partiam dali. Não cheguei a eles, perdi-me na textura da língua, movendo-se e soprando o ar. Me aproximei. Senti as colunas de vento deixando os pulmões, vibrando entre o palato e os dentes. Senti aquele ar como se fosse meu, transformado em palavras.

Álvaro Andrade Garcia

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Belgrado Blues

Subject: Belgrade blues

Date: Wed, 21 Apr 1999 09:51:05 -0300
From: Santiago Arevalo
To: circular@encomix.com Belgrado Blues
Por: Jasmina Tesanovic
tradução: Álvaro Andrade Garcia
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26 de março

Eu espero que todos sobrevivamos a esta guerra, as bombas: os sérvios, os albaneses, os maus e os bons, aqueles que pegaram em armas, aqueles que desertaram, refugiados nas florestas de Kossovo e os refugiados de Belgrado, perambulando pelas ruas com suas crianças nos braços, procurando por abrigos inexistentes, quando o alarme das bombas toca.

Eu espero que os pilotos da OTAN não deixem para trás as esposas e crianças que eu vi chorando na CNN, quando partiam para seus alvos militares na Sérvia. Eu espero que todos nós sobrevivamos, mas não este mundo do jeito que está.

… Eu fui ao mercado na minha vizinhança, ele estava voltando a viver, adaptado às novas condições, novas necessidades: não há pão do estado, mas muito grão no mercado, não há informação na TV oficial, o que vale são as conversas entre a população assustada sobre quem está ganhando. Adolescentes apostam: foram nossos ou deles, os aviões que foram derrubados, nossos ou deles, quem mente melhor, quem melhor esconde as vítimas, quem expõe as melhores vitórias ou vítimas outra vez. Tudo como se fosse um jogo de futebol.

A cidade está silenciosa e paralisada. Mas ainda funciona. O lixo é levado, temos água, eletricidade. Mas onde estão as pessoas – nas casas, nas camas, nos abrigos. Eu escuto várias histórias pessoais de nervosismo. Estão todos nervosos, menos os que tiveram seu ataque de nervos no ano passado, quando a guerra no Kossovo começou. Estes são muito poucos, mas agora se sentem melhor: o perigo real é menos assustador que as fantasias de perigo. Eu não pude cope com a guerra invisível como cope com necessidades concretas: pão, água, remédios.

Eu penso nos albaneses do Kossovo, nos meus amigos e seus medos, eu penso que eles devem estar numa pior que a nossa: o medo aumenta só de pensar. Significa que não é o fim ainda.

28 de março

Toda noite eu vou com os amigos e família para a grande estação de metrô na vizinhança. Eu agora conheço as pessoas que já estão lá, de todas as idades e tipos. Eles chegam com bancos e conversa pequena. Nós pensamos em fazer um plano de emergência. Tentamos listar todos os possíveis desenvolvimentos da situação. Dificilmente alguém pode ser bom para nós, pessoas comuns que não podem acreditar em ninguém, que têm apenas alguns dólares nas bolsas e muita, muita experiência ruim. “Pelo menos não somos patéticos”, eu digo, “e nossas crianças não serão saqueadas”… Eu até digo: “minha filha será uma raridade, uma verdadeira beleza da Sérvia, pronta para morrer por nada!” Algumas culturas vão amar isso. Vai ser tão excitante para estes que temem as luzes e o trovão ver uma mirrada adolescente de jeans que não teme as bombas.

… Eu vejo o Jamie Shea na conferência de imprensa da Otan. Ele é terrivelmente preciso, você o ouve você ouve tudo isso, a realidade que ocorre para nós acaba sendo apenas um pequeno desvio do seu curso. Mas é claro que não é tão simples assim….

Eu luto por meu computador todos os dias, toda hora, todo mundo na minha família quer meu computador, o único em casa para estudar, jogar e comunicar.

Nós ouvimos nossos amigos do Kossovo, eles não querem falar no telefone, eles já estão vivendo o que provavelmente virá nos próximos dias: assassinatos, saque de apartamentos, casas, anarquia completa.

30 de março

Hoje não houve bombas. Dormi por 16 horas, sem alarme… Um jornalista da BBC disse que os sérvios são um povo com grande coração, eles não teriam assassinado o piloto do avião que caiu, eles teriam dado a ele pão caseiro e conhaque. Como podem então os generais da Otan acusar os sérvios de cometerem atrocidades contra os civis albaneses? Eu acredito em ambos…

Meu pai sonhava com bombardeios muitos anos depois que a guerra acabou, acordava durante a noite, me tirava da cama e levava ao porão: sonâmbulo. Eu me lembro dele fazendo isso, eu fiz isso noite passada, com a minha filha, algumas vezes. Eu sinto como se uma doença estivesse saindo do meu corpo, uma longa febre histórica, uma ansiedade enterrada que eu herdei por ser sérvia, de pai sérvio da Herzegovinia.

1 de abril

Passei a última noite no abrigo, três adultos, cinco crianças e dois cães. Este abrigo é uma casa com um bom porão próximo a uma estação de metrô bem profunda, a mesma onde passei a primeira noite de bombardeios sobre Belgrado, a mesma, anteriormente habitada por ciganos e mães com suas crianças. Nosso grupo era uma família psicológica, é interessante, fazemos grupos em bases psicológicas e não biológicas.

Nosso grupo estava unido no medo de ser acertado por uma bomba da Otan, ou por um guerreiro local. Ontem, um grupo de vândalos primitivos estava perambulando pela cidade, destruindo janelas e gritando contra tudo que sentissem diferente. Até que a polícia os assustou. Finalmente a polícia estava fazendo o que eu esperava que fizessem. Em 97, durante as demonstrações, eles estavam do outro lado…

… Nós estamos esperando bombas no centro de Belgrado, disse a CNN. Ao contrário, o que aconteceu foi a captura de três soldados americanos, assim disse outra vez a CNN. Esta é uma guerra suja, eu digo, pessoas no porão, soldados machucados na tv, refugiados albaneses chorando na tv, todo tempo dizendo aquelas coisas que as pessoas jamais deveriam ter que dizer, especialmente na tv. A dignidade humana aqui não vale nada. Primeiro de abril, dia dos tolos.

Meus pais estão sozinhos no seu apartamento, eles ouvem o alarme com dificuldade, eles assistem a tv oficial e a todo momento me ligam, dizendo “não se preocupe, vai tudo ficar Ok”. E eu me sinto melhor, a voz do meu pai me acalma, como quando eu era criança, ele me dá segurança. A segurança que eu não dou as minhas crianças. Ao contrário, este mundo não é mesmo um lugar seguro.

2 de abril

Hoje é Sexta feira santa… o filho de meu amigo ligou na última noite do campo de batalha. Ele quase não conseguia falar, ele dizia que estava em algum lugar sem dizer aonde, que estava Ok mas que alguns dos seus amigos não. A idade limite para voluntários que querem se alistar agora é 75 anos para homens. E para mulheres? Não há limites? Elas são frequentemente tão mais convictas do seu patriotismo.

Eu vejo um mar de refugiados orquestrados dos dois lados na fronteira da Iugoslávia, Macedônia e Albania. Isso tudo me lembra a cena que vi em 95, quando os sérvios de Krajina foram despejados na Sérvia por dias e dias, sem resistência, pensamentos, idéias de por quê e como aquilo estava acontecendo. Eu tinha uma idéia de que aquilo era orquestrado – tudo menos a dor e os atores eles mesmos, eles estavam sendo verdadeiros.

3 de abril

É manhã, uma bela manhã de sol, eu estou chorando… na última noite o centro de Belgrado foi bombardeado com uma intimidadora precisão, sim os alvos militares, mas apenas a 20 metros de um estava a maior maternidade do país, onde eu nasci e anos atrás dei a luz. Eles destruiram o ministério do interior: alguns dos meus amigos se lembram de terem sido interrogados ali.

Eu estou aliviada, feliz com a precisão da Otan, estava até chovendo, mas eu me sinto visível, exposta àqueles jovens pilotos responsáveis por atingir um alvo sem destruir um recém-nascido. Eles foram todos para abrigos, os bebês e suas mães, e eu estou chorando, aliviada, atormentada por toda esta questão de vida e morte, me lembro da minha chegada, eu era uma brava e chorava ao mesmo tempo.

4 de abril

Mais uma noite no abrigo. Outras duas pontes detonadas, a ferrovia para Montenegro foi destruída no território bósnio. Estes fatos me fazem claustofóbica, a cerca finalmente se torna visível em torno da nossa jaula. Aqui estamos, selvagens e maus sérvios do século XIII, alguns em jeans, muitos falando a Língua (o inglês), mas ainda assim diferentes, alienígenas.

Esta estratégia está completamente de acordo com os nacionalistas locais que dizem “quando a maternidade foi atingida pelo tremor das bombas, nossos bebês nem mesmo choraram, por que eles são bebês sérvios…” Bem, eu não sou um bebê, mas chorei ontem como uma louca, escutando a canção Lá Longe é a Sérvia. Um bela e triste canção da primeira guerra mundial, quando soldados sérvios foram à Grécia, para lutar, e poucos voltaram.

Meu avô foi um deles… Quando eu era uma criança ele cantava para mim esta música, quando fiquei adulta, cantava esta música fora da Sérvia, quando me pediam uma música típica daqui. Esta é uma música que sei cantar e fazer as pessoas choraram. Ontem, milhares cantaram-na na praça da República, durante o concerto. Mas eu não podia cantá-la mais, ela não é mais minha canção, esta não é minha Sérvia mais, não aquela pela qual meu avô lutou. Longe, longe é a minha Sérvia. E eu estou agora presa e em exílio, no meu próprio país.

5 de abril

A pior coisa, num certo sentido, é que nada realmente acontece. Na manhã estamos vivos, nós temos comida, eletricidade, uísque. Mas por outro lado, nós estávamos aqui, onde tudo isso aconteceu, mais uma vez, não para nós, mas para alguém. Nestas falsas execuções, nós sobrevivemos à nossa própria morte toda noite.

Eu entrei numa farmácia. Ela estava mais cheia que antes, mas não era possível obter aspirina, tranquilizantes, e todos estavam pedido por isso. Outro detalhe, as lojas de doces estão lotadas, as pessoas compram doces como loucas – angústia emocional, falta de amor…

6 de abril

Hoje é o aniversário do bombardeio de Belgrado em 41 por Hitler. Entretanto, o maior dano a Belgrado foi feito no final da guerra por bombardeios dos aliados, a chamada libertação ou as Bombas Inglesas. Eu sei que todos aqui vão usar este paralelo para se sentir melhor ou pior…

Eu estava sentada no terraço esta manhã, o sol estava me banhando com grnde amor, eu sonhava com o mar e o céu claro do qual falamos na última noite, esperando pelos ataques aéreos noturnos, pelos aviões que sobrevoam nossas cabeças. E eles vieram outra vez. Mas não bombardearam Belgrado na última noite, outra vez outros lugares, outras vítimas. Eu me sinto tão culpada, mais que nunca, por este Outro. Meus amigos e inimigos de todo o mundo me perguntam: você é capaz de imaginar quão terrível é estar no Kossovo agora? Eu consigo, realmente consigo, e me culpo, por estar me sentindo mal aqui sem ter o horror que eles têm lá. Mas nossa guerra, pelos últimos 10-50 anos tem sido sempre este tipo de horror invisível, temos ainda um longo caminho até a catarse, para nos livrar da nossa má consciência, mitos equivocados, inércia…

Sinto-me desligada do resto do mundo, mais pontes abaixo, mais amigos e inimigos nos apontando os dedos para dizer quão maus somos, mais pessoas loucas fazendo carreira em insistir no fato de sermos pessoas divinas. E o povo? Nos porões esperando por nada.

Sonhei na última noite com bombas caindo no meu porão, na minha cama e eu depois me sentindo aliviada, livre. Eu deveria parar de escrever, detesto meus sonhos, pensamentos e idéias. Isto é um vício

7 de abril

Correndo para o abrigo com comida, saindo do abrigo para comprar comida. É primavera, quem se importa? Ligando para amigos e parentes, trocando necessidades, mercadorias, medos, informação: quem foi, quando foi atingido, quem é o próximo. Nunca um porquê. Não vejo as notícias mais, eu as detesto, todas, de todos os lados, todas as verdades. Elas parecem excessivamente verdadeiras, eu não tenho distância. A Iugoslávia está desabando, que dó… aquelas pontes. Pontes sempre mandam boas mensagens: pessoas construindo pontes, pessoas atravessando pontes… Vítimas? Eu não sei, que dó por aqueles que desperdiçam vidas inocentes por que apenas alguns não podem encontrar as palavras adequadas.

É este meu futuro, correndo para dentro e fora deste abrigo, como um rato? As escolas estão fechadas, as crianças tem olhos seriamente crescidos. Dentro e fora dos abrigos. É este nosso futuro?

8 de abril

Noite passada assentamos no terraço para esperar… Ouvimos algumas grandes detonações. Meu ouvido direito ficou surdo e dolorido, como se estivesse viajando num avião. Nós começamos a apostar, meu lance absoluto venceu-me a aposta, e é claro meu corpo feminino, como um mapa de dor deste mundo. Um prédio governamental foi atingido, a apenas um quilômetro de nós. Bem, nós estávamos esperando por isso faz dias, nós do centro de Belgrado. Nós começamos a rir com alívio, quando ouvimos que não houve Dano Colateral. É assim que a Otan chama a Morte. A Otan … os Agressores Assassinos da tv Sérvia.

A voz do meu pai estava estremecida, ele não escutava nada, ele não via nada, ele já está surdo e velho para mover. Mas continuava dizendo: “o que podemos fazer agora, nada, podemos? Eu pensei que era a frigideira caindo na cozinha, mas então eram as bombas, o que podemos fazer agora?”

Na última noite o concerto de rock moveu-se para a ponte. A ponte sobre o Danúbio, que une a nova e a velha Belgrado. Nós somos famílias partidas entre as duas Belgrados, mas não nos atrevemos mais a atravessar a ponte, para ficar com nossa parte da família, no caso de afundarem todas as pontes.

Ontem teve futebol. Um jogo entre Grécia e Iugoslávia. Foi um grande evento nacional, as pessoas estavam chorando, cantando, beijando, e os jogadores tiveram dificuldade para jogar. Eu sempre pensei que a energia destas platéias podia finalmente ter uma causa humana: parar a guerra.

Um comentarista militar da BBC descreveu os sérvios como pessoas horríveis e incrédulas, que não pensam em nada a não ser em suas próprias vidas. Eu fui seriamente atingida por seu comentário, eu não gosto de louvar ou degradar qualquer povo. Eu nunca havia imaginado que há algo como o Povo Britânico, mesmo depois de passar 12 anos numa escola inglesa. Mas depois do seu comentário eu percebi que existe. Eu fico pensando como o povo inglês reagiria nas condições dos albaneses e dos sérvios.

Muito vem de nós nestas situações limite, muitas descobertas: hoje sei que meu medo, meu enorme medo, com quem lido todas as noites, quando as sirenes soam, poderia apenas ser balançado por algum ato de heroísmo. Se eu soubesse como parar a guerra…

A mulher cigana que mora no porão ao meu lado, minha velha amiga, está calma desde que os bombardeios começaram. Sua única amolação é o fato de não poder mais comprar cigarros. Ela sempre me pede um quando passo por ela. As suas falas agora são balanceadas e sábias, não usa linguagem chula, não amaldiçoa, nem agride. Ao invés de ir a uma palestra “As razões da Agressão da Otan à Iugoslávia”, na Alternative Belgrade University, fiquei escutando esta mulher. Eu não gostei do título. A diferença entre sua filha cigana e a minha agora é mínima, ambas vivemos nos porões, com muitas emoções, poucos cigarros e muita cerveja…

Um menino cigano me pediu um centavo. Eu disse que eu havia dado à minha filha. Ele me perguntou quando pintamos nossos ovos de páscoa. Eu disse, “eu não sei, não acredito em deus”… mas vou pintar meu cabelo para a páscoa, ele branqueou demais estes dias.

9 de abril

Eu me lembro, antes da guerra, esta era uma data considerada boa para fazer seu bebe se você desejasse tê-lo no dia primeiro de janeiro de 2000. Eu me lembro, o tanto que isto era ridículo e idiota, eu lembro agora como era sugestivo também. Agora que estes dias vieram, ninguém nesta parte do mundo tem estes planos. Agora apenas os cochichos sobre o que faremos se tropas entrarem na Iugoslávia. As mulheres estão esperando não estar grávidas ou pensando no que fazer com seus filhos se eles tiverem que usar armas. Duas de minhas amigas, pacifistas, feministas, disseram-me já, se chegar a situação de tudo contra tudo na guerra terrestre, elas irão pegar em armas ao invés de ficar escondidas tomando tranquilizantes. Pensei em outra mulher que acabou de ter um filho. Ela está fechada num porão e sua criança está doente. Ela não melhora ou piora a situação por Ter um bebê na hora errada, no lugar errado, pelo contrário, ela faz se tornar visível o lugar errado e a hora errada, e as ações erradas.

A lógica militar está entrando na linguagem do dia a dia. Eu nunca gostei de jogos de computador, ou mesmo de jogos competitivos. Quando a competição entra na minha mente me sinto paralisada, eu sinto diferente de outras pessoas, nem pior nem melhor.

Falamos de nos adaptar às condições da guerra, encontrar outro trabalho, novas formas de relaxar e viver. Minha amiga, uma professora universitária, disse que vai limpar casas para velhos, outro está trabalhando com crianças ciganas. Estou pensando em fazer uma escola para as crianças que vivem soltas por ai, sem hábitos de trabalho, tarefas.

Mas o assunto do dia é As Tropas Terrestres. Virão ou não? Não nos preocupamos com nossa vida pessoal, a maioria de nós não vai aos abrigos, não pensa em deixar o país… Nós estamos apenas ficando aqui, quem se importa por quanto tempo, não temos uma saída decente, somos reféns de nossa própria vida, sem poderes.

10 de abril

Hoje decidi limpar a casa, a cabeleireira da vizinhança também abriu, e está trabalhando. Todos ignoram o alarme que não parou, mesmo durante o dia. Os pilotos devem estar frustados por não ter jogado todas as suas bombas na última noite, o briefing da Otan vai ser tenso, os comentaristas militares vão especular sobre a nova ordem mundial, mas tivemos uma noite pacífica. Sem boom booms, apenas os aviões locais, que tem agora um som bem mais humano.

Amanhã é a páscoa da igreja ortodoxa. Minha filha pintou ovos. Não somos religiosos, nunca fomos, ela disse que estou enfadonha, eu pensei que seria melhor deixá-la fazer algo construtivo. Ela é uma criança da guerra, e quem sabe, ela pode ser uma criança de Deus. Ela disse ontem: “tenho um sentimento que eu vou ser morta quando tiver dezesseis, por que você então me amola pedindo para ir à escola?” Eu apenas disse “você vai para a escola de toda maneira.

11 de abril

Apenas um pequeno pensamento de páscoa: se alguém está assassinando, estuprando, fazendo a faxina étnica nos albaneses, por que eu devo ser poupada disso? Meu amigo, uma pessoa muito decente, não pode acreditar que isto esteja acontecendo. Eu acredito muito, muito que isso está acontecendo.

Na última noite Belgrado estava de joelhos, sirenes acionadas, mas multidões de pessoas nas igrejas, em torno das igrejas, para o serviço da meia noite. Estive olhando as pessoas: velhos, simples e pobres, alguns snobs e aqueles que realmente acreditam. Todos com a mesma trágica expressão.

Ao mesmo tempo, por outro lado, na ponte sobre o Sava e Danúbio, o concerto estava enfurecido, as pessoas estavam furiosas, patrióticas, acreditando na sua força ao invés da de Deus. Eu não pude encontrar meu lugar em ambos os lados. Eu não acredito em Deus, mas eu não acredito em mim mesma contra o mundo. Eu fico apavorada quando o alarme soa, e eu não quero que minhas crianças se arrisquem por nada e nem por ninguém. Então fui ao videoclube pegar alguns filmes para ver. Peguei um com o Mickey Rourke, meu ator favorito até 18 dias atrás. Ele estava tão idiota, eu pensei, ele não sabe mais nada da minha vida, ele não me ama mais, então não posso mais adorá-lo. Não dividimos a experiência da minha vida. E então teremos que separar, depois de todos estes anos…

Fui para a cama cedo e dormi profundamente. Resolvi desligar minha geladeira, que faz um barulho pior que os ataques aéreos. Decidi também limpá-la hoje, apesar disto ser um mau presságio limpar na páscoa, minha avó costumava a dizer.

Quando tinha cinco anos, minha avó me levou secretamente para a igreja na páscoa. Meus pais eram comunistas e não podiam saber. Eu me lembro do medo e da excitação quando entrei no maior prédio que eu jamais vi na vida, sentindo estranhos perfumes e vislumbres das velas, da laje ao piso, tudo ao redor de mim. Depois de um primeiro momento de alegria, eu lembro até hoje, pois este sentimento não me abandonou, me veio um sentimento de nadeza, de despoder, a visibilidade da minha pequena pessoa. Eu comecei a chorar como uma louca, enquanto berrava para minha avó: … “serei queimada, vou ser punida…” Ela saiu comigo, muito arrasada por sua missão infrutífera. Ela me comprou um sorvete e um cão de brinquedo. Nunca mais falamos sobre a páscoa ou sobre a Igreja. Nunca mais, até alguns anos atrás, quando entrei numa igreja outra vez, o sentimento era o mesmo, mas eu era mais forte, minha crise mística estava no fim, não resolvida, mas acabada. E minha avó não estava viva mais, para me dar uma resposta ou conforto.

Álvaro Andrade Garcia