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O roubo do século

Atenção pessoal, roubaram o futuro! É, não há mais amanhã. O presente termina hoje, não vai mais continuar nas horas subseqüentes ou nos próximos anos. Se vocês quiserem, a partir de agora, continuar qualquer coisa, só para trás, o passado ainda não foi levado. O que afinal é um grande alívio nesse momento de desânimo. É verdade, ainda podemos dizer: “como era bom viver naquele tempo”. Frases como: “amanhã tudo vai mudar” estão totalmente abolidas até que se esclareça o roubo. E é por isso que estou aqui, para averiguar; afinal, diacho, como é que alguém pode roubar o futuro e simplesmente sair por aí, impunemente?

Há algum tempo havia uma folhinha com os anos que se seguiam ao que estávamos. Hoje li no jornal que as de agora só andam para trás ou até, nem andam. A Editora Alfa-Zero fez um contrato milionário com algumas gráficas para produzir uma folhinha que repete hoje, com dia, mês e ano, infinitamente. Que loucura está esse mundo. Há algum tempo as pessoas falavam do que iam fazer no próximo mês, ou mesmo algo tão estarrecedor como o que iam fazer nos próximos anos. Agora ninguém mais fala nem do dia de amanhã! Será brincadeira? Tomara que não, sou um homem sério pra perder meu tempo assim.

É claro que para os lamentadores este roubo veio a calhar. Pela primeira vez suas desculpas esfarrapadas vão colar. Eu mesmo andei fazendo um pequeno glossário com as frases mais comuns e a explicação exata do porquê elas são agora verdadeiras. Vocês querem ver alguns exemplos? “O tempo está curto.” Óbvio, hoje é o último dia, não dá tempo para fazer mais nada. “As pessoas não conseguem se relacionar.” Esta então dava até sono. Agora não. Sem futuro as coisas todas acabam, ou seja, se um relacionamento é legal termina agora mesmo, se é ruim, tanto faz, acaba também. E a tal de “não há nada de novo no mundo”, típica dos deprimidos e reacionários. Essa agora tem nexo. Se o futuro foi surrupiado não há nada vindo de lá, conseqüentemente, nada de novo.

Ando pesquisando incansavelmente este roubo, busco pistas e tento chegar ao criminoso. Mas já vou avisando, não sou da polícia, só quero continuar, e se não esclarecer o que ocorreu, esta história aqui logo vai terminar. Este é meu problema insolúvel, começo a investigar o roubo hoje, mas as investigações não prosseguem, justamente porque não há amanhã. Assim nunca vou apurar coisa alguma. Vocês me entendem, a coisa é como os escândalos financeiros e os crimes do esquadrão da morte. E o pior, se amanhã não existe, logo concluo: esta minha preocupação com o roubo do futuro deve terminar hoje.

Álvaro Andrade Garcia

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Propaganda Política: os Roxos

(Reprodução de uma fita de vídeo enviada ao Tribunal Superior Eleitoral, para propaganda política, e que não foi veiculada pela tv)

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ELA (sorridente, com ar ligeiramente vago):

– Mas afinal, para que serviria minha adesão a vocês? Estou doida para saber quem são os membros do partido. Eu, sabe, realmente estou interessada em ser filiada.

ELE (palitando os dentes, com cara de sono, com cara de quem já falou a mesma coisa centenas de vezes):

– De nada adiantará você se associar. Esta é a norma do partido: a ausência de movimento ou razão para existir. Aceitamos novos militantes por curtição. Nossa meta é “fazer coisa alguma”. Juntos faremos nada. Compreende? Amamos uma bandeira e uma causa, roxa. A gente ama pelo “por que não?”, entende? Conosco você não vai a parte alguma. O partido roxo não tem metas ou desejos, por isso sempre cumprimos o que prometemos. Pode até ser que você um dia encontre um de nós dizendo coisas interessantes sobre isto ou aquilo. Mas pode ter certeza, não se tratará de convicção e sim de comodismo. Às vezes é mais fácil fingir que se está lutando.

ELA (interrogativa, com um certo ar de ingenuidade):

– Mas… como poderei identificar meus companheiros?

ELE: (bocejando):

– Não vai interessar! Para que saber quem é ou não do partido? Identificados, seremos um grupo, e nós não somos um grupo, nossos objetivos são individuais. Para que nos unir, se não lutamos por nada? A causa roxa é abstrata e inútil, quem pensa em trabalho e ideologias não venha nos procurar, pelo amor de deus. Nosso partido é o partido do tanto faz. Não pedimos nem cobramos nada. O que importa é não acreditar. Jamais a humanidade presenciou um movimento tão coerente, que representasse os anseios do homem moderno. Somos a nova política. Por essa razão o futuro é nosso.

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Álvaro Andrade Garcia

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Os olhos

– A data correta: 23 de novembro de 1989.

– A hora precisa: 16:42.

– O local exato: rua Antônio de Albuquerque, numa sacada do prédio de número 1338, no segundo andar.

– A pessoa certa: uma mulher que usava uma blusa verde e vasculhava com os olhos o que se passava na rua. Alguém que não conheço, que me disse chamar-se Márcia.

– O acontecimento: eu, parado no carro, esperava um amigo que havia entrado numa loja. Esperava irritado, quando me encontrei com os olhos que percorriam a rua. Acabei escrevendo alguma bobagem sobre a pessoa que vi na sacada. Como estava muito atarefado, acabei assentando somente hoje, 6 de dezembro, para passar a limpo as coisas que escrevi naquela hora.

– O esclarecimento: é apenas um diálogo impossível entre olhos, dirigido a uma pessoa imaginária e desconhecida.

 

– O que buscam seus olhos?

– Aquilo que está na rua.

– Só?

– O que mais poderiam desejar eles?

– Alguma coisa…

– Esperava alguém.

– Seus braços já haviam dito.

– Braços? Braços falam?

– Olhos vêem?

– Você caçoa.

– Eu apenas vejo você em paz.

– Você não me conhece para saber…

– Nem devo.

– Ora por que?

– Corro riscos.

– Conhecer alguém?

– Não sei quem é.

– Conversa fiada, você fala demais.

– Eu? Não disse nada. Apenas fiquei olhando.

– Eu também.

– Então quem fala?

– Os olhos não falam.

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Álvaro Andrade Garcia

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Nos apresentamos

Prepare-se, os anos noventa estão chegando! E nós estaremos aqui falando da vida hoje, do mundo explorado através de um delicioso caleidoscópio que possibilita a criação de variações e novas imagens ao bel-prazer do observador. Estórias sem ligação aparente entre si surgirão de arranjos novos. Um tecido frouxo e descontraído de flashes, descrições e intervenções, muitas vezes parecendo desconexo, irá aos poucos delimitando um mundo, que manteremos repleto de surpresas e omissões. Conversaremos sobre temas variados: vocês conhecerão personagens banais ou exóticos, acompanharão seus passos, passarão por situações no mínimo inusitadas. Estaremos próximos do cotidiano moderno. Construiremos juntos uma visão de mundo a partir dos fragmentos de uma percepção oblíqua, que se apresenta onde não é chamada.

Álvaro Andrade Garcia

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Sob o Céu de Novgorod,
de Règine Deforges

Sob o céu de novgorod

De Régine deforges, Trad. A. B. Pinheiro de Lemos Editora Nova Fronteira, 296 p

Existe um tipo de livro que o leitor abre sabendo que vai encontrar pela frente uma carpintaria literária medíocre e uma história fácil , montada sobre um esquema que ele reconhece, e é exatamente isso que ele está procurando. Quem, na beira da praia, numa rede no sítio, sob uma coberta na cama, abrir um livro e viajar numa história bem light e previsível?

Sob o céu de Novgorod é um livro que se satisfaz os quesitos para ser indicado para essas ocasiões e leitores. Mais uma vez, Régine Deforges, a celebrada autora de A Bicicleta Azul, vem estimular o desejo de leitura vulgar. Realiza a ousada de remar a favor da maré e de fazer algo que outros já fizeram. Estabelece um pacto de complicidade com o leitor preguiçoso, para conduzi-lo por um romance de cavalaria em pleno século XX . Alguém que consegue escrever nos dias de hoje “… era uma linda tarde de verão…” merece minhas palmas.

Sob o céu de Novgorod pretende ser um romance biográfico. Conta a história de Ana de Kievi, uma princesa russa, que deixa uma requentada corte, com influência de Bizâncio, e viaja à França semibárbara, para se casar com Henrique I, um governante que não se interessa por mulheres. A necessidade de gerar um novo rei para a França e as alianças políticas exigem a consumação do casamento. A personagem sem jamais questionar a propriedade de seus atos, vive infeliz com seu amaneirado rei. Para escapar à melancolia, ela se entrega a devaneios em que relembra o amor impossível por Felipe, um jovem de sua guarda pessoal na Rússia, e se dedica a obras assistênciais de caridade.

A narradora descreve com minúcias os cardápios, roupas, decorações dos salões, bastidores da aristocracia. Entremeadas com casamentos e banquetas infindáveis, a história da princesa segue um curso linear. Entre guerras de senhores feudais, torneios de cavaleiros e a picante história sexual da corte, a rainha da França vai parindo seus filhos. Enquanto isso, sofrendo a mais terrível das dores de amor, coma face destruída por um acidente, Felipe volta à cena. Amargurado, se desloca até a França, onde se tornará o Cavaleiro Mascarado. No reino de Henrique I, ele lutará com todas as suas forças para estar ao lado da rainha, sem jamais poder revelar a ela quem realmente é.

Alguém contratado pela editora contas nas orelhas do livro que Régine consultou especialista, e partiu dos poucos registros sobre a vida de Ana e Henrique, para construir sua narrativa. Afinal, isso é bom para o Marketing. Mas na leitura se percebe que não é só o interesse histórico que move a autora, e sim a sintonia com o leitor acomodado e o conforto que isso acaba trazendo ao bolso. Para a simpática dama francesa, a Idade Média não é um período histórico e real, mas um ideário sobre aquela época que circula por ai e já foi explorado exaustivamente por vários autores. Não lhe importa como era Ana e seus castelos, mas assim como as pessoas imaginam que seria uma certa Ana kiev e seus castelos. Régine reescreve a Lenda, finge desnudar a realidade que está por trás dela, dando a aparência de real ao que não passa de mais uma sobreposição de mito. Esse é seu único mérito e já é demais.

No livro, a Idade Média é revisada apenas para fazer emoções fortes. Régine tem essa mania que o cinema explorou até cansar: desloca expectativas, hábitos e costumes atuai para história passada. Na sua França de 1050, o provençal é o rock’n roll a juventude ‘hippe’ se banha nua e transa sem cerimonias nas margem de Sena. É o manjado recurso de nos transportar a lugar ou tempo exóticos para injetar fantasia à narrativa. Quem não deseja acompanhar de perto as intrigas e o sexo da corte, ver monges pegos em flagrantes se masturbando, passar por um ritual de feitiçaria demoníaca, apreciar um torneio de cavaleiros, e a seguir presenciar um rei transando com seu amante?

Com sinceridade, tem gosto para tudo nesse mundo. Na minha opinião, trata-se de um livro maçante. A história mal se sustenta como trama e se assemelha, por fim, à mera fofoca. A perpectiva feminina ultilizada por Régine na narrativa é elogiável, está na moda também . Mas não basta retirar o foco da visão masculina, é preciso também contar uma história que interesse a mais gente. O mundo das mulheres explorado exaustivamente talvez restrinja o público leitor às cumplicidades de Régine. Os valores culturais do livro não são dos que mais me agradam. A princesa heroína se destaca por sua beleza, frivolidade, sensibilidade e caridade com os pobres. Jamais questiona as guerras feudais, se acomoda dócil aos seus ‘deveres de mulher’. Além do mais, é chegada à bruxaria – que mania tem as mulheres de compensar fraquezas com feitiço! Como se não bastasse, ela se sente atraída por um conde cruel e másculo e consegue conciliar a coisa com o romântico desejo de ser amada. Assim não dá: essa rainha é muito mal resolvida.

Ao terminar as páginas de Sob o céu Novgorod, não pude deixar de recordar o comentário de uma amiga, flagrada lendo A Bicicleta Azul. Ela me disse que os livros eram uma bobagem, mas que estava adorando aquela bobagem. Que bom, a literatura de massa continua a mesma. Ainda existe um Cavaleiro Mascarado, que ama profundamente sua Rainha, e o seu amor continua impossível. Só se realiza na morte e no desejo do leitor.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.

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O Triângulo do Dragão,
de Charles Berlitz

Triângulo do Dragão, de Charles Berlitz
Editora Best Seller, 189 p

“Que mistério se esconde no Triângulo do Dragão? Que forças são responsáveis pelo número surpreendente de navios, aviões e tripulações que desaparecem em seus limites?” A princípio pensei que Charles Berlitz, o manjado escritor que lançou em outros carnavais a onda do Triângulo das Bermudas, estivesse fazendo hora com a minha cara. “Outro triângulo?”, me perguntei. Fiquei sem saber por onde começar. Voltei à capa: “mais um enigma desafia a compreensão”. Um navio tragado por um rodamoinho de grandes proporções completa a cena.

Confesso: de imediato fiquei sem saber o que fazer diante do livro. Não tinha a menor idéia do que seria. Deixei de lado a sensação de angústia e resolvi ler. Comecei gostando. No início, o autor não dá uma de dr. sabe tudo, nem devaneia em demasia, apenas nos envolve em seu jogo. Em poucas páginas nos empolga com a força atávica de uma região agitada dos mares, nas proximidades do Japão. Maremotos, vulcões, distúrbios eletromagnéticos, enigmas. Uma viagem e tanto para quem está saturado da mesmice.

Muita gente deve apreciar essa literatura moldada pelo mistério. As livrarias estão cheias de exemplos, a vida está cheia de lacunas. Faz bem ouvir toda essa história de forças naturais e sobrenaturais, sobrehumanas, desafiando a compreensão e a ciência. É bem catártico, funciona como uma espécie de vingança contra a modernidade. O problema do livro em questão, contudo, é que com o passo das páginas o autor começa repetir afirmações e extrapolar qualquer devaneio razoável. Ele não chega a tecer considerações metafísicas para fugir da ciência, nem apresenta nenhuma conclusão científica, mas se move para uma área ainda mais movediça. Escapole, preferindo ser uma espécie de almoxarife, relacionando exaustivamente datas e fatos.

A única maneira de continuar a ler, sem perder a motivação, foi imaginar uma equipe de TV interessada em fazer imagens sobre os capítulos do livro. Imaginei um repórter esbaforido e seus auxiliares, alucinados voando de lá pra cá, atrás dos devaneios do autor. Depois de apresentar seu novo triângulo, do outro lado do mundo, Berlitz lista uma infinidade de desaparecimentos aqui e ali, chegando ao cúmulo de apresentar uma lista de páginas e páginas de embarcações perdidas. No próximo capítulo é a vez das aeronaves, com transcrições de diálogos entre pilotos e torres. Outro capítulo, agora é a vez dos submarinos. Relaxamento: lendas japonesas e a seguir chinesas, sobre dragões, Kamikazes, fossas abissais. Peixes pré-históricos encontrados no mundo ao longo dos últimos anos, plesiossauros, celacantos, o monstro do lago Ness, na Escócia. Mais ação: o livro segue falando dos navios fantasmas, do Holandês Voador, OVNIs na Austrália, Nova Zelândia, Teerã. Uma relação dos grandes terremotos no Japão, piratas, vulcões, ilhas que se movem no oceano pacífico, civilizações submersas, ilha da Páscoa, catástrofes pré-históricas e testes nucleares.

Quando terminei com o livro, constatei que aprendi um pouco de meteorologia, da formação de maremotos e terremotos e fiquei na mesma. Um fim melancólico, essa é toda a verdade. Recentemente o JB anunciou a descoberta no fundo do mar, por uma equipe de pesquisas oceânicas, da famosa esquadrilha de aviões que sumiu inteira no Triângulo das Bermudas. Os aviões estavam em perfeitas condições. Talvez, ao serem içados, possam trazer alguma explicação definitiva sobre seu e outros desaparecimentos. Talvez nada de novo aconteça. O fato é que me cansei dessa enumeração infinda de fatos e fatos, sem conexões entre si. A idéia-base do livro é: tudo aquilo que é enigma pode estar envolvido com os desaparecimentos enigmáticos no Triângulo do Dragão. Tautologia? Acho que não. Essa volta em torno do próprio umbigo deve estar rendendo uns bons milhares de dólares ao Dr. Berlitz.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.

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A Convidada de Honra,
de Irving Wallace

Ligações Fabulosas

Em seu romance de despedida, Irving Wallace insinua que a política é a arte do ridículo

A Convidada de Honra, de Irving Wallace
Editora Record, 336 p.

O leitor contemporâneo tem acesso aos mais diversos comentários e interpretações sobre o cotidiano das relações internacionais. Chefes de estado e personagens dos escalões imediatos desfilam no noticiário com charme e naturalidade. Além do status que lhes confere o própio cargo, povoam o imaginário da época com as nuances da ficção. O mais recente livro de Irving Wallace replica a aura dos olimpianos. A Convidada de Honra narra o caso amoroso do presidente americano com uma misteriosa e fatal primeira dama do Extremo Oriente. Enquanto as manchetes nos mostram George Bush com o rosto contraído e a boca torta diante dos últimos percalços, tudo rola mais fácil nas páginas de A Convidada de Honra para Matt Underwood, o irreal ocupante da Casa Branca.

É divertido ler como quem finge acreditar no que lê. O impagável contador de histórias Irving Wallace reaparece nas livrarias para comprovar o que frisam os releases das editoras. Ele convence seus aficionados de que os bastidores da cena americana funcionam mais ou menos como aparentam ser. Apesar de o mundo já não ser pautado pelo Muro de Berlim e pela Guerra Fria, uma pitada aqui, outra ali e se arrumam as coisas para não dar muito trabalho ao caríssimo leitor. É como se as relações internacionais tivessem mudado após a perestroika, mas não ameaçassem tanto o conformismo feliz. Matt Underwood não precisa se preocupar com os incômodos recentes da invasão do Kwait e da crise do orçamento, afinal A Convidada de Honra foi escrito bem antes desses abalos. Wallace se farta em pincelar a trama amorosa e a expressão dos humores de seus personagens em cenários burocráticos ou exóticos, distante de dramas menos sofisticados como o dos nossos marines no deserto dos árabes. Sobra para Matt Underwood a chance de viver por conta própria suas trapalhadas e indecisões, pois escapa até mesmo do foco da mídia.

Na ótica do nosso contador de histórias, um presidente ligeiramente entediado acaba se envolvendo com viúva presidenta da longínqua ilha de Lampang. Quase tudo nessa trama dá a impressão de acontecer um pouco ao acaso. Deve ser para aliviar o leitor das grandes cidades com um certo frescor da trivialidade cotidiana. Lá está Matt Underwood, ex-âncora do jornal da noite, alçado ao posto de presidente da maior potência internacional. Desencontrado das ambições que alimenta sua mulher Alice, a ex-Miss América que também fez carreira na TV, ele procura alguma motivação para continuar no cargo. E não é que a encontra na solitária Noy Sang, chefe de estado espremido no mapa da eterna luta entre comunistas e democratas!? Ela vai a Washington para negociar alguns milhões de dólares de empréstimo, mas ele precisa convencê-la a autorizar a instalação da maior base aérea americana no Sudeste Asiático. Desde que se conhecem, Matt e Noy Sang trocam confidências políticas e pessoais de arrepiar. Ele revela sua intenção de cara: pretende largar a Casa Branca e pregar o seu Plano Popular de Paz Não-Nuclear. Ela confessa sua admiração pelos filmes e a Constituição americanos, além de algum problema que lhe traz o embate entre comunistas e ultra-direita em seu país. Depois de uma empatia fulminante e de passeios clandestinos, os dois voltam a se encontrar graças à fértil imaginação do autor. O presidente americano vai ao obscuro Lampang só para dar apoio à moça, durante o velório da irmã. Para seu transtorno, um repórter da mesma rede de TV em que fizera carreira consegue imagens inéditas do casal enamorado em afrodisíaca praia. É o bastante para o esperado ciúme de Alice e suas artimanhas de mostrar seios e pernas ao chefe do Gabinete Civil a fim de obter informações sobre o caso. Se você começa a desconfiar que já conhece esse filme, espere porque ainda não viu nada. O intrépido presidente cinquentão retorna a Lampang para enfrentar, de Smith & Wesson em punho, os sequestradores de sua namorada.

Irving Wallace é um renomado escritor que publicou cerca de quinhentas histórias curtas e artigos e vendeu mais de duzentos milhóes de exemplares de seus trinta e três best-sellers. A carpintaria de Wallace reúne a leitura fácil, a trama evidente com muito diálogo, muita ação e personagens que lembram a velha seção Meu Tipo Inesquecível do Reader’s Digest. Matt e Alice Underwood, ao lado da deliciosa Noy Sang, são gente como a gente vivendo aqueles valores imutáveis que fazem o status quo. A maior diversão da narrativa corre por conta dos vazios no dia a dia do primeiro mandatário. O ex-âncora que chega a presidente precisa mostrar uma certa imagem, as assessorias que façam o resto. Talvez a contragosto do próprio Wallace, A Convidada de Honra acaba por criar a imagem do rabaixamento a que chegou a atividade política. Underwood, investido no papel de líder do Mundo Livre, não gosta de acordar todos os dias e ter que tomar decisões. O seu Plano de Paz Não-Nuclear pretende convencer nove líderes de nações que não possuem armas nucleares a desistir delas. Em meio a essa lógica ingênua, os dias do presidente são salpicados por fofocas nos altos escalões, articulações políticas à sua revelia e um inopinado sequestro da chefe de estado asiático. Destaque à parte, merece o sincero espião da CIA em Lampang: Sierbert não tem a mínima idéia de quem possa estar por trás das dificuldades sofridas por Noy Sang. As surpreendentes trinta páginas finais transformam o mandatário e o repórter americanos numa risível dupla dinâmica que assume papéis inviáveis em terra estranha.

Quem gosta de vernizes literários a respeito das esferas do poder, vai se divertir à solta em A Convidada de Honra. Da capa ao miolo do texto, o veterano Irving Wallace está inteiro e senhor absoluto de seus recursos estilísticos. Por artifício do marketing editorial, o Matt Underwood da capa nos remete a George Bush. A mesma testa larga, as entradas da calva, o queixo quadrado e o nariz proeminente como é comum em retratos falados. Na narrativa, as hesitações de Underwood sobre o que deve e não deve fazer rebatem nos titubeios de Bush e embaralham, a nível precário e distraído, a atenção do leitor. Se a crise do orçamento continua e os recrutas inativos não sabem o que fazer nas areias do deserto, a culpa não será de Irving Wallace. Apesar das hesitações de seu fictício presidente, ao final, Underwood consegue manter o controle sobre si e sobre o resto do mundo, no mais alto estilo dos livros de consumo.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.

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A Chegada em Darkover, de Marion Zimmer Bradley

Darkover, a ficção-fantasia antes de Avalon

Marion Zimmer Bradley ensaia a vitória da magia sobre a técnica em busca do graal do sucesso

A Chegada em Darkover, de Marion Zimmer Bradley
Editora Imago, 172 p.

Basta a cada dia o seu mal. Marion Zimmer Bradley é hoje reconhecida como autora de histórias atraentes para qualquer clube de leitoras interessadas em consumir o chavão do feminino. Passados vinte anos da sua primeira edição, o exercício de Mrs. Bradley na série Darkover pouco acrescentou ao território da ficção científica, esse gênero prolixo e tanto mais chato quando não é tratado com mestria. Não é nada, não é nada, são onze volumes para preencher o tempo vazio de quem sente um leve cansaço das séries televisivas e do cotidiano morno e sem sal. O primeiro livro tem lá sua inventiva. No século XXI, uma supernave estelar se desvia de sua rota e cai em um planeta selvagem. Os sobreviventes precisam lutar contra o ambiente hostil e estranhas forças psíquicas até construir seu novo lar. É o conhecido mito da origem, contado e recontado à exaustão nos últimos séculos por todo autor de renome que se preze.

Quando a série Darkover começou a ser escrita, a moda era o amor livre, as comunidades alternativas, o movimento hippie e seus congêneres. A cabeça das pessoas se ligava em tudo que tivesse a aparência do novo e do fascinante. Como é usual na ficção científica, o romance de Marion se prende mais uma vez aos traumas do tempo presente. O futuro não passa de uma projeção tosca de anseios e inquietações corriqueiras, cabendo à narrativa abrir o espaço da imaginação para o que se lia diariamente nos jornais. Eis a Terra do próximo século na ótica da ficcionista de plantão: um planeta superpovoado, poluído, com a saúde pública controlada pelos avanços técnicos. Seus habitantes acham antiquadas atitudes como a do herói Rafael MacAran, que prefere escalar uma montanha em vez de usar o teleférico. Ele fatalmente forma um par com a altiva e obstinada Camilla Del Rey, cujo nome de cantora de bolero esconde de fato uma personagem feminina vencedora como outras que são mostradas na saga de Avalon. Entre o afeto de Rafael e o amor do Comandante Leicester, ela prefere se impor e ficar com os dois.

A autora sabe jogar com a descrição das paisagens extra-terrestres em que sobressaem os extremos do calor ao meio-dia e da nevasca à meia-noite, o ataque de formigas-escorpiões, flores e frutos que crescem rapidamente sob climas violentos. Chamam a atenção quatro luas multicoloridas e um incrível vento que traz um pólen ou vírus capaz de levar as pessoas à satisfação imediata de seus desejos passionais. Na verdade, o Vento Fantasma — como é chamado pelos personagens — faz também com que os terrestres adquiram poderes extra-sensoriais ao gosto de narrativas em que magia e realidade têm que andar de mãos dadas. Mrs. Bradley não dispensa imagens levemente ridículas narrando o delírio psicodélico dos personagens, como a de um homem com a perna quebrada que sai correndo até cair rindo para uma das luas, enquanto um tigre lambe seu rosto carinhosamente.

Assim como não se vê à vontade com os efeitos do inusitado vento alucinógeno, Marion escorrega na sua visão da técnica e suas aplicações. Ela ridiculariza os homens que não conseguem dar um passo sem o apoio da boa e segura tecnologia. A nave interestelar resume o avanço e a competência alcançados pelo homem no século XXI. A queda no planeta desconhecido faz dela uma fuselagem pesada e sem função. A máquina contamina a imagem que MacAran faz de si mesmo. Ser civilizado é o pecado original dos heróis em Darkover. Não há caminho de volta ou ponte com a história que ficou para trás, só é possível olhar para a frente. Esse insensato futuro preconizado por Marion Zimmer Bradley não deixa de ser engraçado e soar hoje ligeiramente anacrônico. A nave precisa ser destruída. O computador, que levara o comandante a devanear sobre a própria semelhança com deus, deve ficar reduzido à condição de biblioteca até o dia em que os homens consigam retirar de si mesmos (de suas almas?) o conhecimento já armazenado na máquina. Nada como uma ficção científica depois da outra para repetir que o destino da técnica e, por tabela, do homem é insano.

Marion Zimmer Bradley encontra espaço em sua narrativa para descrições líricas sob um novo céu e uma nova Terra. Em seus bons momentos, a ficcionista nos mostra o êxtase de Camilla, embriagada com a natureza. Em Darkover, os personagens encontram sua juventude restaurada. Há mulheres feitas de flores, o sol da infância bate nas pálpebras de homens adultos e, nas palavras da autora, paira uma euforia gloriosa sempre que os terrestres são acometidos dessa estranha visão que modifica a lógica das coisas. Ao embalo das descrições fortemente marcadas de erotismo e sensorialidade, Camilla e seus companheiros de aventura passam a desenvolver a percepão extra-sensorial. É comum na narrativa que alguém esteja ouvindo o que outros pensam e tendo pressentimentos de que algo está para acontecer. Enfim, é a maneira que Marion encontrou para liberar seus personagens da opressão que ela prevê como a moeda corrente no futuro. Através de suas pulsões, todos se tornam humanos, estranhamente humanos, com a expansão de seus sentidos e sentimentos.

Como nas antigas lendas da Terra (leia-se, nos mitos anglo-saxões), o futuro está completamente voltado para o passado. Apesar de anticoncepcionais à base de hormônios injetáveis e propulsores M-AM que levam a Alfa Centauri, não faltam ressonâncias do tipo Eram os Deuses Astronautas e memórias de velhas canções que falam do amor de um peregrino por uma fada. Sem perda de tempo, a compreensiva Marion estende aos leitores os princípios de sua antropologia. O homem primitivo deve ter reunido poderes psíquicos que permitiram a sobrevivência e o desenvolvimento antes da civilização e da tecnologia. Reinava a percepção extra-sensorial, não havia entrado em cena a madrasta civilização e o cortejo de suas desditas. Alucinações, intuições e viagens astrais parecem fazer parte, aos olhos da ficcionista, do mapa do tesouro que a humanidade guarda sem saber.

Ao se aproximar do fim do primeiro volume da serie Darkover, o leitor vai encontrar seres alienígenas que fecundam mulheres da Terra e os modos de Camilla soam mais contemporâneos, como no caso dos vários filhos que possui com pais diferentes. O amor, o desejo sexual e a vontade de ser feliz repetem sem muito colorido um hino aos fundamentos de uma civilização que não se cansa de cantar a si mesma. A cada sociedade, o autor que ela sustenta e merece. A Chegada em Darkover não leva o leitor que esteve com Marion na Atlântida, em Tróia e na Távola Redonda, a correr risco algum de ir além do que preza a nossa boa e segura indústria editorial.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.

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O Peregrino Secreto,
de John Le Carré

Nostalgias de um espião

O fim do comunismo não impediu John Le Carré de manter vivo o gênero que vingou com a guerra fria

O Peregrino Secreto, de John Le Carré
Editora Record, 351 p.

Se a guerra fria acabou, por que continuar a escrever livros de espiões? A última obra de Le Carré chega às livrarias num momento delicado de instabilidade e dúvida. Um golpe de estado depõe as mudanças na URSS e traz a linha dura de volta ao poder. Três dias depois, os acontecimentos se precipitam ainda mais numa espetacular reviravolta. O golpe é sufocado pela reação popular. Na esteira da revolta, a perestroika, a glasnost, o Partido Comunista se desintegram. Não há mais partido único na URSS, a KGB está sendo destroçada, o exército vermelho é obsoleto, a Europa Oriental tem governos próprios, muitos deles pró-ocidentais. O velho urso está combalido. Antigas referências explicam hoje pouca coisa.

Atônito diante de tantas mudanças inesperadas e desinformado sobre os possíveis rumos dos acontecimentos na política internacional, o leitor que tradicionalmente consome best-sellers de espionagem pode sentir hoje a necessidade de se assentar na sua poltrona predileta, e buscar refúgio no autor que reconhece como um dos melhores do gênero. Em plena vigência da glasnost, no seu penúltimo livro – A Casa da Rússia, Le Carré manteve acesa a chama da guerra fria, pelo menos para os profissionais da comunidade de informação.

Acontece que o homem que escreveu sucessos atrás de sucessos no gênero, desde O Espião que Saiu do Frio, está mudado também. A pista para entender o que se passa já havia sido dada em A Casa da Rússia. Os personagens de Le Carré estavam se tornando mais instáveis, volúveis. O mundo se tornava menos pesado ao redor das tensas tramas que moviam os espiões. Apesar de o autor ainda defender as posturas rígidas dos “homens cinzentos”, nos gabinetes dos governos; seus heróis fraquejavam, começavam a se mover por emoção.

Agora, em O Peregrino Secreto, Le Carré nos oferece uma das mais lúcidas obras do gênero de livros de ação. Um réquiem belíssimo dos tempos da guerra fria vai surgindo na memória de Ned, um espião à beira da aposentadoria, que dá aulas numa academia que forma novos espiões. O panteão de personagens que habitou suas obras ressurge das cinzas. Convidado por Ned para discursar aos noviços, o conhecido George Smiley permeia a narrativa, abrindo cada novo capítulo do livro com colocações éticas sobre os fatos marcantes das últimas décadas. Ao longo das outras tantas páginas, ressurgem Toby Esterhase, Bill Haydon, Scott Blair e vários outros, em narrativas nostálgicas de desses episódios marcantes da vida dos espiões.

Para não decepcionar absolutamente o leitor conservador, Le Carré preserva muitas das suas mais conhecidas virtudes. O texto é conciso, bem elaborado. Os temas das reminiscências, que formam diversas historietas, são pitorescos e repletos de bons momentos de ação. E acima de tudo, os diálogos mantém seus grandes momentos nos interrogatórios. Conhecido por essa característica, Le Carré exibe em O Peregrino Secreto o domínio completo da arte. Seu agente Smiley dá aulas estonteantes sobre o assunto.

Nem tudo está perdido. É preciso concordar com o autor, quando diz que a competição acirrada do mundo, agora em guerra econômica pela hegemonia de áreas de influência comercial, vai trazer nova força à espionagem, especialmente a industrial. Qualquer sujeito mais antenado nos bastidores do poder percebe que os “homens cinzentos” nunca vão deixar de existir. “A espionagem é eterna… Se chegar o dia em que não restar inimigos no mundo, os governos os inventariam para nós…Além do mais… quem disse que só espionamos os inimigos? Toda a história nos ensina que os aliados de hoje são os rivais de amanhã. A moda pode determinar prioridades, mas não a previdência. Pois enquanto patifes se tornarem líderes, estaremos espionando… enquanto as nações competirem, os políticos enganarem, … a profissão de vocês está absolutamente segura…”, ensina-nos um de seus heróis, George Smiley.

Se o incremento da atividade de espionagem motivado pela necessidade crescente de informação indica que a atividade das comunidades de informação está longe do seu ocaso, morre hoje com certeza o papel que representam os espiões no ideário do homem comum do ocidente. Estes homens imaculados que “lutaram” anos a fio pela liberdade na cortina de ferro, foram derrotados pelo povo dos países considerados antes como inimigos. “E a idéia parecia ainda mais desconcertante quando refleti que não éramos mais nos, Aliados ocidentais, mas sim a própria Alemanha Oriental, quem estava se empenhando para extinguir sua existência.”, constata Ned, o personagem principal, numa passagem do livro.

Nada melhor para espelhar esse fim que a aposentadoria dos agentes de Le Carré, ele mesmo um ex- do serviço de Sua Majestade. Privados da ação em campo, do risco da morte na luta pela “liberdade”, lhes resta embarcar numa viagem de volta, pelos caminhos melindrosos que as lembranças percorrem. Quando a memória é acionada e a ação cai para segundo plano, morre o espião enquanto ator de uma intriga novelesca, atrelada a uma determinada ideologia, e surge um romance denso e humano, expondo conflitos que não eram mostrados anteriormente. Os homens que se movem num mundo secreto não tem mais o caráter decidido do espião dos anos cinquenta. Eles mostram as máculas que uma vida em demasia na sombra lhes causou. Tem emoções, idéias e principalmente dúvidas. A memória mostra que seu comportamento nem sempre foi guiado por ideal, mas por dinheiro, sede de vingança ou pelo amor. É preciso aplaudir: a história de espiões agora é mais humana, mais poética.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
5/10/1991

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O Guardião,
de Dean R. Koontz

Emoções na máquina do tempo

Dean Koontz mistura em O guardião ficção científica, a intriga amorosa e a narrativa do terror

O guardião, de Deean R. Koontz Tradução de Aulydes Soares Rodrigues Record, 320 p.

Nos dias que correm não faltam mestres e literatos incensados a propósito de mais um lançamento comercial. Basta estender o braço à prateleira de qualquer shopping cultural, a oferta é vasta. Em meios as lambadas e capas com os nomes de West, Forsyth, LeCarré, Zimmer Bradley e outros nomes cotados, podemos encontrar o novo livro do único autor de estilo comparável a Stephan King. Em O Guardião, temos o sucesso de um produto que faz a mixagem da ficção científica com a intriga amorosa e a narrativa de terror.

Laura Shane é uma jovem mãe atribulada por incidentes, traumas e lembranças ruins de passagens por reformatórios para crianças orfãs. Desde o nascimento, ela é acompanhada por um estranho que sempre aparece em meio a tempestades para salva-la da aflição. O destino da moça depende das viagens que esse seu anjo da guarda faz no tempo. A travessia de anjo pela Estrada do Relâmpago é o resultado de pesquisas desenvolvidas nos anos 40. Os primeiros crononautas haviam descoberto um meio de cruzar a Estrada do tempo, projetando-se nos futuros anos 80 e retornando a sua própria época. É, desse modo, até mesmo a história do século poderá ser reescrita se algo não for feito contra os inimigos de Laura Shane. Koontz trabalha com inteligência e sutileza a matéria-prima da literatura de terror: as emoções dos leitores. Na pauta do gênero, afirma-se que o aficionado ama cultivar ansiedades e tensões, sem esquecer da atração pelo insólito e pela aberração. Koontz e seus pares parecem acreditar que o leitor, sob a pressão do cotidiano, precisa sentir-se menos culpado e menos inseguro. Daí as revelações inspiradoras de transgressão e de medo. Neste romance, alguns temas básicos da literatura comercial são revestidos como a força do destino, a ameaça do nazismo, a recuperação do passado e a personagem feminina de forte personalidade. No transcorrer de mais de 300 páginas persegue-se com obsessão a essência do gênero: a presença da morte e as estratégias muito humanas para detê-las.

O olhar curioso pode se defrontar com a dedicatória bem humorada e epígrafes díspares que reúnem na mesma página o filosofo Lucrécio, o cineasta Woody Allen e o verbete sobre a montanha russa do Randon House Dictionary. Mas o leitor não precisa se deter nessas citações irônicas que dão passagem a outras de Lao Tsé e Sir Thomas Browne. Afinal, Koontz está pilotando uma literatura que cultiva as emoções de um certo público à espera de grandes revelações para o próximo fim de século. Enquanto a década se torna mais enigmática nas manchetes dos jornais, nada como o livro que nos revela aflições que duram apenas até se chegar à última página.

O apelo de O Guardião corre por conta da tentativa de casar os fãs do terror com os da ficção científica. A bem urdida trama em torno da máquina do tempo convive com os macetes do suspense. Stephan, o anjo que vem do passado interferir na vida de Laura, realiza cálculos bastantes complexos para vir dos anos 40 aos dias atuais e fazer o percurso inverso. Como é iniciante no uso da máquina, precisa descobrir o que se pode ou não se pode alterar no passado de cada um e da própria história política do mundo. Para agrado do leitor de Koontz, Stephan é perseguido nos dias de hoje por inimigos do passado que põem em risco a vida de Laura Shane. Os viajantes do tempo podem quase tudo; por exemplo, alterar o futuro que é plástico e mutável. Com base nesse paradoxo, a própria história da última grande guerra poderia ser reescrita. Koontz não perde a oportunidade de explorar as apreensões do consumidor.

Entre as cenas saborosas de O Guardião, duas personagens históricas participam como astros convidados: Winston Churchill e Adolf Hitler. Koontz mostra ai seu brilho de contador de história, imaginando atitudes e pensamentos de personagens que se encontram de súbito cara a cara com o trânsfuga dos anos 40. Simpático a Churchill, o bom Stephan leva de volta ao passado um exemplar de livro que o estadista inglês só escreverá anos depois. O primeiro- ministro sente a irresistível de ficar de posse do exemplar sobre a II Guerra Mundial. Era a possibilidade rara dada a raros mortais de poder plagiar a si mesmo e à própria vida. Humano e bonachão, Churchill quer saber o que acontecerá com os soviéticos depois da guerra. Koontz explica nas palavras do onisciente Stephan que os russos se tornarão mais poderosos que os britânicos, apesar de seu modelo socialista produzir a ruína econômica. Elementar meu caro Winston. A poucas páginas dali, o autor seu golpe de mestre ao mostrar como o desfaçatez de Stephan leva o inimigo Hitler a se preparar para a invasão dos aliados em outra região muito longe da Normandia.

Dean R. Koontz tem o hábito de publicar sob vários pseudônimos obras pertencentes a outros gêneros literários. Diante de processador de texto, trabalha com mais constância o tipo de história preferido de seu público: o terror. São 50 romances publicados, sucesso garantido de público e – vá lá – de crítica. Seu leitor se sente a vontade na recriação do mundo de vivências cotidianas. Assim se goza o conforto de revalorizar a ordem das coisas que entra em colapso nessas narrativas. É um modo de descarregar os maus sentimentos, diria Stephan King. O mal e a ruína podem estar em toda parte, mas nas páginas de O Guardião readquirimos a sensação de segurança imediata, cada coisa em eu lugar. Às vezes pensamos que os autores de best sellers estão entre os mais interessantes que conhecemos. A exemplo de Koontz, podemos tomar duas aspirinas e a sensação persiste. A banalização das obras ainda não retirou de vez a sedução que exerce sobre o leitor o mito da narrativa bem escrita.

Álvaro Andrade Garcia e Delfim Afonso Jr.
8/6/1991