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Pequeno Solo para uma Saudade

Qual seria melhor que a sensação do vento varrendo a rua? Uma observação rastejante, onde a brisa alisa e recolhe restos. Uma minuciosa escatologia, revirando tampas de guaraná, folhas de jornal. Uma pirueta com o folheto do candidato a prefeito.

A alma vazia é como um pote sem lastro, uma canção de notas únicas e distintas. Uma espécie de canto chão. A melancolia noturna lhe atrai, é melhor sofrer quando as cores estão menos decididas.

Viro o quebra-vento e deixo bater direto no rosto a sensação, sempre ela, vagarosa e morna, quase fria. A alma vazia é um poço de águas quietas. Um pasto bem sem limites. Onde a cerca existe não é.

Passam lascas e fios. Letreiros, fachos azulados e vermelhos, umas vozes. Tremenda solidão essa, entre as outras. O coração é um vaso de barro vermelho. A alma está encolhida. E a saudade agora é uma ausência inteira.

Quando se move, sussuram vozes. Nunca se escuta, nem se entende, apenas uma mão que transtorna os órgãos, e que esteja dentro. O coração sufocado, as vísceras torcidas, o fígado abalroado. Pulmões cheios de sangue. Uma bolha de ar presa entre ossos, prestes a sair pela boca ou num estouro dos olhos. A pele reveste uma paisagem pálida, cheia de gases sem perfume.

Álvaro Andrade Garcia

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A Laranja

Ela estava ali, circular e plena, encerrando todos os lados. Cintilava. Um contorno de sol. Uma laranja, quase vermelha. Se me apresentou inteira: resultado e projeto. Olhei seus lados e pensei no que faltava por conhecer. Interior e fora, antes e depois, meu sentido iria por todos os caminhos. E cada, sei, abre portas para outro. O sumo, o perfume, os nacos. O líquido escorria entre os dedos, e ainda assim me restavam facetas. Segura, estava a semente. Não que me escondesse algo. Não mesmo, é que nela há tanto que nunca. Por isso laranja vai sempre estar incompleta, apesar de inteira.

Assim a conheci hoje. Havia e faltava em tudo que via. E isso fez meu coração bater.

Álvaro Andrade Garcia

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O Último a Sair Apague a Luz

publicada em www.paralelos.org.br

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– Sou o segundo da fila e estou vendendo o meu lugar.

Foi a primeira coisa que ouvi. Já estava há algum tempo na fila. Escolhendo entre o frio da madrugada e as coceiras na bunda, assentada sobre uma calçada em destroços. A fila já estava dobrando o quarteirão quando cheguei.

Mal o dia raiava e o cheiro de café passado, o bafo de Derby no rosto. Os murmúrios de meus confilanos. Acostumado à argúcia do ouvido, logo apanhei café no sul de minas. Era fácil ser lavrador, porteiro, um estudante que não passa em nenhum vestibular. Com bebê de colo, homem mulher e jovem e velho. Todos na fila pra deixar o Brasil. Tinha gente de toda parte. Querendo sair daqui pra trabalhar.

Nos Estados Unidos dá dinheiro enfeitar defunto, e o melhor é que não precisa falar a língua. Alguém tem um esquema em Berlim, estão precisando de eletricistas no Iraque, se é dentista vai pra Portugal, agora é que tá bom no Canadá, em Londres é mais fácil ficar. Ou era, até esses atentados.

– Cheguei às duas da madrugada, e por 30 reais eu vendo o meu lugar na fila, voltou a gritar o vendedor de lugares na fila, olhando para os lados e esperando as reações, que foram as mais diversas. O confila logo adiante se entusiasmou, deu uma baforada no cigarro e disse à mulher:

– Pegar essa fila e ganhar 30 paus no final? Eu topava até levar cacete todo dia se conseguisse esse dinheiro.

A maioria discordava da atitude do espertalhão, mas ninguém faria nada se ele não ‘atrapalhasse’.

– Desde que não venda o lugar pra mais de um, não tenho nada com isso.

Sei que ele acabou conseguindo vender dois lugares, ao que parece duas mulheres apressadas. A gente nunca sabe, nem vê. Foi só um zumzumzum que percorreu a fila, àquela altura já tendendo para um certo caos. Missão cumprida, pegou sua cadeirinha, sombrinha, colchonete e se dirigiu para o ponto de ônibus. Voltava pra casa com 60 paus no bolso.

Do outro lado da rua, o sorridente despachante neném tinha investido pesado no visual do seu negócio. O muro do lote vago havia sido recentemente pintado. Era ao mesmo tempo muro, outdoor, placa e portaria de estabelecimento comercial. Só não dava pra acusar de pichação, isso não, tava muito bem organizado. Apertando os olhos pra fugir do branco de cal, dava pra ver que saltavam as letras:

NENÉM DESPACHANTE

Afobado e solícito, ele apertava passos de um lado a outro da sua ‘banca’. Percorria a fila de cabo a rabo exibindo seus conhecimentos profissionais, tem que preencher tudo com letra de forma senão eles não aceitam, tem que ter o documento de reservista, você não tem ou não cumpriu serviço militar?, tem que pagar a guia antes de chegar lá, vai lá na loteca que eles imprimem a guia por três reais e recebem o pagamento, abre às seis e meia da manhã.

Organizado por Neném, sai um grupo rumo à loteca, que deve boa parte de seus rendimentos ao fato de ser vizinha da Polícia Federal. E assim transcorria a madrugada, com Neném passando em revista seus confilas, orientando os desorientados, prestando mesmo um serviço público. Os mais encrencados viravam clientes e eram encaminhados para a mesinha, onde poderiam preencher seus formulários com todo conforto.

Neném era um negro alto e forte, olhos vivos, vozeirão de pagodeiro, touca de croché enfiada na cabeça. Com todos os sentidos em estado de alarme constante, percorria a fila e seus arredores, voltava-se para a banca, observava oportunidades e acontecimentos, conferia tudo. Na verdade, aquela fila era dele, tava em casa. Por isso, tinha que botar moral de vez em quando, fazer o quê.

E de tempos em tempos vinham os simpáticos ‘posso deixar com você’: eram as ‘agências’ oferecendo palestras sobre Portugal, Inglaterra, como obter vistos para os Estados Unidos, pechinchas e esquemas de toda sorte. Outros davam consultoria grátis, como a empregada doméstica que contava com orgulho e riqueza de detalhes a sua deportação.

– A gente sofre muito, mas vale a pena. Ficar aqui é que não dá, já não agüento mais patroa com pinta de madame, que na hora de pagar só libera ninharia.

O vendedor de lugares na fila já havia recolhido suas coisas e estava chegando à esquina. Seu carrinho de mercearia deslizava suave sobre o asfalto, carregando seus instrumentos de trabalho – cadeira de praia, guarda-sol, cobertor, garrafinha d’água e garrafa de café–, enquanto os murmúrios da fila davam conta do sucesso da operação.

O sucesso foi tanto que logo chegou aos ouvidos de Neném.

Os gestos rápidos e seus passos de um lado a outro prenunciavam o barraco. Porque Neném de alguma maneira é o dono daquela rua. E ali ele não quer esse tipo de negócio. O dele ia bem, assim como o dos parentes. Dois sobrinhos se revezam na tomada de conta dos carros, os filhos preenchem guias, a cunhada e seus filhos vendem água e café. Ele até tolerava as ‘agências’, mas espaço pra vendedores de lugar, isso ele não admitia na sua fila. Ainda mais como estava acontecendo, era um 171 dos mais abomináveis. O cara fez uma venda ‘dois em um’ e nada aconteceu.

A fila ficou de lado por alguns minutos. Neném correu até a esquina e parou logo na frente do franzino vendedor de lugares. Neném estendeu os braços para frente, eram do tamanho das minhas pernas, e travou o cidadão. Foi logo esculhambando:

Hoje tinha deixado, mas amanhã quebrava tudo. O homem assustado ainda esboçou reação. Começou a falar, mas Neném não se intimidou. Apontou o dedo exaltado, repetiu o que havia dito e começou a chutar a cadeira do vendedor de lugares. Depois de chutar o conjunto umas cinco vezes, Neném empurrou o estranho rua abaixo, enquanto vociferava: é pra não voltar, sumir, foi só hoje, amanhã o papo é outro.

A platéia reagiu estranhamente. Foi paradoxal. Muita gente ficou com pena do vendedor de lugares. Que desceu a rua e dobrou a esquina recurvando-se, apesar de esguio. Com semblante amargurado, ele sabia que amanhã enfrentaria outra fila…

O dia amanheceu e ainda faltavam duas horas pra começar o expediente. Foi quando um sorridente vigia de uniforme engomado nos disse:

– Maiores de 60 pra frente, vocês não precisam enfrentar a fila. Os primeiros 200 serão atendidos. Se alguém estiver furando ou guardando fila, vocês tem que resolver isso entre vocês mesmos, entenderam? O importante é que enquanto esperam, não saiam da fila nem causem tumulto. Lembrem-se: estamos na Polícia Federal.

E por acaso, naquele dia estava ocorrendo a posse dos novos cadetes da força. Aqueles que suaram nos concursos e conseguiram um bom emprego. O hino nacional tocava, enquanto um a um subiam no parlatório e prometiam dar a própria vida para manter a lei e a ordem na pátria. O dia estava ensolarado e os raybans estavam perfilados, refletindo distintivos.

Vez ou outra, agentes à paisana passavam entre nós com pistolas nove mms enfiadas na calça. Nos olhavam atentamente, enquanto vigiavam toda a cena. É óbvio que devia ter muita gente a fim de matar alguém ali. Mas eu sempre pensei em armas mais recatadas com tiras federais. Podiam ser como seus colegas do FBI, uma elegante capanga de couro acessada apenas na hora H.

Os caras estavam tensos porque era também o dia marcado para o depoimento da secretária famosa, aquela que estava revelando os segredos do homem da mala. E isso explicava o outro lado da rua: a fila estava andando, e já bem próximo do portão de acesso ao prédio, uma multidão de fotógrafos e cinegrafistas montava guarda na contra-calçada. Aquele exército de teleobjetivas, jaquetas e repórteres se retocando. As câmeras apontavam para a fila, mas eles não nos viam, perdiam a pauta ‘off’ do dia. Muitos mal tinham acordado e a manchete de amanhã poderia aparecer a qualquer momento.

Não cheguei a vê-la. A fila se desenrolou e atravessamos o pátio interno lentamente, contemplando a carreta do assalto ao Banco Central, entre os mais recentes ônibus apreendidos com sacoleiros que vinham do Paraguai.

Faltava pouco para o passaporte. Mas os últimos momentos não deixariam de ser eletrizantes.

Atrás da porta de vidro, junto a um longo aviso que listava todos os indispensáveis documentos da via sacra do passaporte, estava ela, o último obstáculo a ser vencido na conquista da cobiçada senha. Ela, a funcionária da polícia federal: honrando a linhagem das mulheres valentonas, ela também tinha quilos de maquiagem e jóias e se equilibrava em saltos estratosféricos, meia-idade estilo pantera, silicone sem miséria, cabelo visual muro-de-arrimo, muito perfume francês pra enfrentar o nível de tensão da fila.

Depois de esgotar o assunto de meus confilanos, ficava pensando na vida dela, todo dia ali de cara com a diáspora brasileira, aquela ralé que lhe dava irc. Só sei que já estava bem diante dela quando os dizeres do cartaz elevaram o meu nível de tensão:

Em todos os guichês, ao lado de cada funcionário, um aviso em letras garrafais: “DESACATO A FUNCIONÁRIO PÚBLICO É CRIME PREVISTO EM LEI, SUJEITO A DOIS ANOS DE DETENÇÃO”.

– Só por isso me segurei pra não dar um soco na cara dela!, bradou a estudante que atravessava pela terceira vez o calvário da fila do passaporte brasileiro.

– Sem o comprovante da última votação, você não pode fazer o passaporte. Volte outro dia.

Respirei fundo. Olhei pra ela, tentando ser simpático e impessoal. Minha hora havia chegado. Me concentrei no que fazia.

– Bom dia, aqui estão os meus documentos.

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Álvaro Andrade Garcia

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A Utopia da Modernidade Capitalista

Este ensaio foi publicado no caderno Idéias do Jornal do Brasil em abril de 1990, antes de tudo isso que andou acontecendo no mundo. É interessante agora, confrontarmos o que imaginávamos que aconteceria e o que de fato ocorreu.
Em toda parte os governos socialistas caem, derrubados pela vontade de mudanças de seus povos. Passados anos em estagnação, o modelo socialista estatal de economia planificada rui como uma seqüência de placas de dominó. Comprovada sua ineficiência, sua opressão sobre os povos e sua inadequação, é substituído por outros regimes políticos e econômicos. De cá e de lá da antiga cortina de ferro, sopra uma cortina de fumaça. Os ufanistas da economia de mercado e da eficiência capitalista ocupam a mídia e, com alarde e insistência, anunciam a morte do modelo socialista. Não se satisfazem em enterrá-lo, aproveitam para glorificar as qualidades do capitalismo ocidental. A opulência dos EUA, a saúde economica do MCE, o milagre japonês e a emergência dos tigres asiáticos. Entre nós, o discurso do choque capitalista, da sua modernidade, resultou no Brasil Novo de Collor. Pensadores e homens públicos se associam na elaboração da nova cartilha do senso comum, aí embutida a promessa de que tempos de abundância virão, se trilharmos o caminho da eficiência capitalista. O principal argumento é o de que o mundo está para se integrar num grande mercado, onde a tecnologia é a pedra de toque da nova organização da produção e da sociedade. Quem estiver fora desse mercado, quem não se mobilizar para ter a tecnologia vai se dar mal: estará para sempre condenado à pobreza.

Os antigos regimes comunistas eram ineficientes e ruíram. Contra os fatos não há argumentos. Essas idéias, na medida em que se confundem com os acontecimentos, são claras e irrefutáveis. Entretanto, gostaria de colocar algumas questões relevantes que estão ficando fora da discussão desse importante fenômeno social. É preciso ousar destoar do coro. As avaliações atuais sobre o que acontece são precoces e não levam em conta possíveis desdobramentos do processo social em curso, que poderão resultar num final infeliz para os novos adeptos da cartilha do livre mercado e da eficiência tecnológica. Estamos ao que tudo indica, substuindo a utopia socialista pela capitalista.

Há indícios de que os países do leste europeu, atualmente tão celebrados, correm o risco de desagregação e de retorno a métodos sociais arcaicos, ao invés de progredirem na direção do eldorado neo capitalista. Neles, o processo de ruína do sistema socialista estatal ocorreu de forma súbita e imprevisível, e já há sinais da instauração de uma nova ordem conservadora, nacionalista, com intolerância racial.

Há uma hierarquia fortemente estabelecida entre os paises capitalistas no plano mundial que não será facilmente quebrada pelos novos postulantes. Polônia, Hungria, Romênia tem chances de não conseguir alcançar a opuléncia das potências ocidentais. Todos não podem de uma só vez exportar como o Japão, não haveria quem comprar. Todos não podem consumir como os EUA, (que esbanja várias vezes mais energia per capita que a Suécia, muito mais fria, e tão rica quanto) o planeta aqueceria! Não será em dez, vinte anos que a alta tecnologia deixará de ser controlada pelos paises mais ricos em seu benefício. Não se faz um MIT, uma Harvard da noite para o dia.

A disseminação da riqueza e da tecnologia para todos os povos de maneira homegênea é uma questão problemática, para não dizer inviável, aos níveis anunciados pela profecia. Por essa razão chamo a atenção para o risco que corremos. Não há pensamentos vigorosos circulando. Há um grande vazio no ideário contemporâneo. Ainda são tímidas as idéias que se desenvolvem em torno de uma nova racionalidade que dê conta da situação humana na diversidade com que se apresenta tanto culturalmente, como economicamente e politicamente nos dias atuais e que tenha capacidade de permitir a estruturação da vida em sociedade de maneira mais competente e digna. Na verdade, a morte do modelo socialista estatal levou à agonia a utopia socialista e seu belo sonho de uma sociedade fraterna, justa e livre. Em seu lugar a realização capitalista aparece como o novo sonho, transformando-se na utopia da riqueza para todos. A seu lado, poucas outras ideologias permanecem, desarticuladas e sob fogo cerrado de sua convincente e crescente hegemonia. A igreja dos pobres, o chamado comunismo cristão é asfixiado pela alta hierarquia da igreja, os movimentos ecologistas perdem seu ímpeto na medida em que a ecologia se transforma num instrumento de propaganda, produção e consumo capitalista. O cidadão desaprendeu a acreditar na sua própria capacidade de imaginar e discernir formas de viver e conviver em harmonia. Isso é terrível pois pode levá-lo a aceitar e a crer em forças antigas e no statu quo, levando-nos a rumos inesperados.

A sereia cantou e atraiu para si centenas de povos que se desiludiram com seus sistemas. O capitalismo, o conservadorismo e o neo liberalismo econômico estão de volta em toda parte. Um efeito cascata imprevisível e incontrolável pode surgir, na medida em que a economia de mercado não consiga satisfazer as novas demandas de consumo elevado. O padrão capitalista de vida se difunde pela midia com imagens esplendorosas da vida nos EUA, Alemanha, França, etc., que, mesmo quando associadas a imagens de grande sofrimento psicológico e marginalidade social dos seres humanos que nelas se apresentam, guardam uma força de atração muito grande, pois o que interessa ao novo publico é a riqueza, o sonho capitalista confundido com a própria modernidade.

Por outro lado, o que se observa no mundo dos novos postulantes à realização capitalista? O que se vê na Polônia? Uma imensa dívida que medidas ortodoxas e capitalistas de ajustes não conseguem sanar. A economia não flui. O governo do Solidariedade mostra toda sua fragilidade, é um pedinte, um mendigo internacional, sujeito ao jogo de poder e de propaganda dos EUA e da URSS. O acirramento dos nacionalismos e da intolerância religiosa nesses paises é um problema para reflexão. A Alemanha, unificada sob a égide dos conservadores, ressucita antigas discussões de fronteira com a Polônia. Húngaros são espancados na Transilvânia, mulheres armênias são imoladas no Azerbaijão. Dificuldades econômicas eclodem em toda parte. Desemprego e inflação fazem seu aparecimento. Nenhum país se aproxima do capitalismo sem se chamuscar. Não se importa um modelo como esse impunemente, sem suas mazelas operacionais.

A riqueza material, mercados punjantes com tecnologias avançadas de fato são elementos que resultam em saúde física e espiritual de um povo? A Nova Zelândia, em 1915, antes da penilicina e dos antibióticos, de todo o avanço técnico de hoje, tinha uma sobrevida média melhor que a dos EUA atualmente. Cuba, com uma renda per capita baixa exibe taxas elevadas alfabetização e de longevidade. Isso serve para mostrar que tecnologia não significa necessariamente ter mais vida. Quanto à felicidade não temos meios para avaliar. Não se pode falar em felicidade per capita dos povos, mas não se pode afirmar categoricamente que o cidadão americano, alemão ou japonês seja mais feliz que outros.

A ruptura da linha de desenvolvimento socialista está repercutindo na América Latina. Governos da nova direita tomam medidas drásticas a favor do mercado e da livre iniciativa na busca do sucesso econômico. Não há tempo a perder. No continente temos ainda uma massa de população analfabeta, passando fome, sem um mínimo, nem mesmo a pobreza digna, que se vê na Europa do leste. Será que a modernização tecnológica e a economia de mercado vão dar um sentido novo à vida dessas pessoas? Tirá-las da miséria é ensiná-las a consumir mais? Que tipo de bem? Quase toda casa de favela tem uma televisão ou geladeira, a miséria acabou? O capitalismo é um sistema social neo darwinista, que prega a concorrência, e gera a seleção dos mais aptos. Como terão mais chances justamente os indivíduos e povos menos aptos? Essas e outras perguntas não estão sendo respondidas.

A eficiência capitalista se mede em fazer mais barato e mais rápido um produto, pela forma continuadamente mais acelerada com que os agentes econômicos promovem a obsoletização gerando e alimentando desejos através da mídia. Será que eficiência não poderia ser avaliada pela capacidade desses mesmos agentes em satisfazer as necessidades materiais essenciais das pessoas sem degradar o meio ambiente e de motivá-las para a felicidade? É importante fazer com que existam mecanismos de controle para evitar a proliferação de setores sociais que parasitem outros sem produzir, como o caso dos enormes exércitos e burocracias estatais e privadas. Não há a menor dúvida quanto a isso. Entretanto é preciso estar atento aos indícios. O culto da tecnologia e do mercado como caminho para a riqueza, bem supremo prometido pela utopia capitalista, associado à falta de idéias vigorosas que ofereçam novas opções ideológicas aos agentes do processo social, pode trazer efeitos inesperados e catastróficos para os povos.

Álvaro Andrade Garcia e Maria Lúcia Andrade Garcia.

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Videopoesia

versão 1: 1994

 

A utilização de monitores de vídeo para veicular mensagens poéticas é quase tão antiga quanto o surgimento do veículo. Com ênfase na dramaturgia, na interpretação visual de poemas ou mesmo na utilização de textos em movimento, videomakers sempre buscaram incorporar elementos poéticos na sua linguagem. Recentemente, uma nova possibilidade surgiu para a poesia visual com o uso de computadores dotados de recursos de processamento gráfico: a confecção de programações com poemas em movimento.

Esse tipo de videopoesia é a que tenho realizado com outros autores desde 1987. Tenho trabalhado em micros com seqüências animadas de texto que depois são exibidas na tela de videoprojetores – telões – em espaços públicos. Nada impede, no entanto, que essas programações sejam concebidas para a exibição em aparelhos de vídeo domésticos ou para exibição em salas de espetáculo.

Sete anos se vão desde as primeiras experiências com o Quarteto de Sopros. Depois realizei outras experiências como o Quadro Cinético, País e Novos Estudos. Nesse período a evolução das técnicas de desenho e animação em computador foi assustadora. Deixei para trás resoluções baixas de tela, quatro cores simultâneas e animações grosseiras em duas dimensões para hoje trabalhar com recursos que permitem altas resoluções, milhões de cores simultâneas e recursos sofisticados de animação em duas e três dimensões. Entretanto, o que mais evoluiu nesse período foi minha familiaridade com os elementos da nova linguagem poética que surge com o vídeo. À medida que fui experimentando e trocando idéias com outros poetas e videomakers, sofri transformações radicais na minha sintaxe poética.

O movimento incorporado ao texto é a principal contribuição que a linguagem do vídeo traz à poesia. Ele pode conduzir os sentidos das palavras, trazendo alterações sobre o resultado final de mensagens poéticas. Amplia a noção de tempo dos vocábulos e quebra a linearidade da leitura, revelando os textos segundo a programação do autor, com as palavras em movimentos distintos do tradicional de cima para baixo e da esquerda para a direita. Em meus trabalhos utilizei essa ferramenta para fazer com que os textos entrassem na tela – e estabelecessem contato com o leitor – de forma a privilegiar leituras inusitadas. Usei também alterações na velocidade dos movimentos. Por exigir reflexão junto com a leitura, fiz os videopoemas rodarem mais lentos que o usual para peças gráficas e assinaturas computadorizadas. Sempre que pude, introduzi a repetição na dinâmica das apresentações. O silêncio lingüístico traduzido em momentos sem texto e o retorno reiterado das palavras para novo exame, sistematiza a necessidade de se ler um bom poema mais de uma vez e de mais de uma maneira. O movimento repetitivo ressalta o caráter “mântrico” da poesia. Outro aspecto diferencial em relação à palavra impressa ou falada que a videopalavra oferece ao leitor é a possibilidade de metamorfoses: a mudança súbita de estado dos textos através de movimentos rápidos. Esse tipo de recurso faz da videopoesia uma linguagem potencialmente lúdica e surpreendente.

Texturas, cores e formas revestindo e fazendo fundos para as palavras permitem a superposição de elementos das artes plásticas no encadeamento sintático dos poemas. A videopoesia aproxima imensamente essas duas formas de expressão, tradicionalmente tão afins. A espacialidade dos poemas se torna premente nas programações. As palavras são objetos compostos e adornados segundo novas inspirações que se aglutinam ao sentido inicial do poema. Os textos têm que ser sucintos em função da legibilidade no monitor, sua maior espessura é horizontal, não mais vertical. Elementos gramaticais de ligação podem ser dispensados e substituídos por movimentos e posicionamento dos vocábulos na tela. Conceitos antigos na poesia como justaposição, analogia, áreas de irradiação semântica, podem ser utilizados/visualizados no espaço com facilidade. O uso de trilha sonora nas animações permite interseções com a música e mesmo com a poesia falada. Trilhas de suporte, interferências de ruídos, declamação sampleada, são possibilidades que o videopoeta tem para explorar.

Ao nível do impacto sobre o público potencialmente leitor, a videopoesia abre caminho entre pessoas sem hábito de leitura. A videopalavra alcança um público já estimulado visualmente, que reconhece com facilidade elementos da sua linguagem pelo hábito televisivo que tem. Além disso, os textos processados no computador abrem portas para a exploração de novos espaços de linguagem que surgem como desdobramentos tecnológicos da nova mídia: a criação de quadros cinéticos em paredes, a poesia multimídia em livros eletrônicos e a realidade virtual estão aí.

Dentro das balizas da nova mídia utilizada, trabalhei cada poema a partir de suas indicações para o translado à videopoesia. Fiz poemas pensando em videopoemas e adaptei poemas do papel para videopoemas. O importante foi conhecer a aptidão visual do texto. As programações que realizei se aproximaram e se afastaram das artes plásticas, numa espécie de namoro mal resolvido. Às vezes penso que o poema pode sucumbir às formas, texturas e cores, às vezes sinto que a palavra tem direito de se movimentar num espaço despojado de formas, quase zen. Usei pouco o áudio por privilegiar a inserção das programações em locais públicos, ruidosos por natureza, e por achar que devia ter mais dedos na exploração da nova mídia, expandindo aos poucos as novas interseções para avaliar melhor as implicações da linguagem. A única trilha sonora que fiz foi deliberadamente “incidental”, ela apenas marca climas dentro dos ritmos criados pelo movimento das palavras. A experiência que tenho diz que em locais públicos a falta de som não chega a incomodar, mas na telinha da televisão, em espaço privado ou de exibição incomoda profundamente.

Uma linha geral que tem me norteado acima da interpretação individual dos poemas, ou da exploração de novos elementos de linguagem nessa nova mídia é a exploração do anti-outdoor, que transmite emblemas poéticos camuflados na estrutura reconhecida como habitual pelo espectador da linguagem da propaganda visual. Esse embuste de linguagem, que a videopoesia permite, gera descompasso e estranhamento, quando da assimilação do texto. O objetivo é fazer com que a surpresa se transforme em desejo de assimilação mais profunda da mensagem.

Álvaro Andrade Garcia

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Poesia e Tecnologia

versão 1: 1994

Se dependesse do senso comum, poesia e tecnologia seriam palavras que jamais estariam próximas. A primeira, associada ao espaço da manipulação da linguagem, das formas de expressão do intelecto e dos afetos, estaria em contraposição à segunda, ligada à utilização de equipamentos e procedimentos produzidos a partir de referências científicas e de alto grau de acumulação de capital. Para muitos, a poesia deveria manter-se imaculada, confinada a um espaço de resistência face aos avanços tecnológicos. Entretanto, o que ocorre na prática é que a poesia não resiste a eles ou simplesmente os aceita. Ela os incorpora e gera novos sentidos.

Sempre houve interação entre a poesia e a tecnologia de um determinado tempo. Os poetas, quase sem exceção, produzem e reproduzem suas obras, valendo-se de opções que o desenvolvimento tecnológico lhes oferece. Aos que defendem o livro como a forma mais pura de veiculação literária, bastaria lembrar que a imprensa e as artes gráficas são tecnologias que surgiram e evoluíram recentemente. A máquina de escrever, por exemplo, causou polêmica no cenário da literatura; hoje, é considerada um instrumento natural para se escrever. A caneta, utilizada ainda pelos que resistem às máquinas, sofreu inúmeras modificações tecnológicas. A voz ou a declamação poética, que é talvez a manifestação primeira da literatura, também se aproximou da tecnologia pela apropriação de recursos a serviço das artes dramáticas, como microfones, amplificadores, equalizadores de som e equipamentos de iluminação.

Não quero buscar aqui o início ou o fim desses processos. O interessante seria saber o que acontece hoje no cenário da poesia. É praticamente impossível querer definir um papel para ela ou mantê-la isolada do rumo dos acontecimentos. Uma das características mais marcantes de sua manifestação é seu caráter lúdico e experimental. A poesia é uma atividade gratuita. O poeta é um indivíduo curioso, que busca no mundo sua matéria e lança mão nos espaços da imaginação de conceitos e signos, da visualidade e da sonoridade das palavras. Nesse vasto e diverso campo de atuação, ele tem se valido de instrumentos que a técnica introduziu recentemente.

Desses, talvez o que tem causado maior repercussão seja o computador. A partir da tradução de signos para a linguagem digital e de sua manipulação, surgem novas possibilidades de criação e veiculação de obras poéticas. Hoje, um texto pode ter uma versão impressa a laser ou off-set, em disco magnético ou fita cassete ou de vídeo. Numa recriação visual, o texto pode ser trabalhado em computação gráfica ou holografia. Ou, ainda, reinterpretado de diversas maneiras: musicado, transcodificado e sintetizado, distribuído pela linha telefônica, pelo fax, ou pela televisão.

Além de abrir novas perspectivas e remodelar formas antigas de veiculação e criação poética, a informática tem permitido a integração cada vez maior das artes. A transformação dos signos em códigos binários passíveis de serem processados e transladados, aproxima ainda mais a poesia de outras manifestações artísticas, como as artes plásticas, o teatro e a música. A poesia é um gênero literário que tem predisposição e possibilidades estruturais para se integrar de maneira adequada a outros contextos.

Os equipamentos e softwares que podem ser utilizados por poetas –computadores, equipamentos eletrônicos de áudio, vídeo e editoração – têm seus preços cada vez mais baixos e os procedimentos ligados à sua utilização têm se difundido e banalizado. Os custos de produção e veiculação de objetos culturais têm caído com a incorporação da tecnologia. Tudo isso contribui para acelerar o processo de apropriação e redirecionamento da tecnologia. Surge o desvio poético no panorama da sociedade, ou como já salientou Delfim Afonso Jr.:”aparecem os atalhos para o imaginário”.

Álvaro Andrade Garcia

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A Liberdade das Coisas

versão 1: 1994

Uma visita à poesia a partir da obra de Manoel de Barros*.

* Quando não especificadas no texto, as citações foram retiradas de “Gramática Expositiva do Chão”, Civilização Brasileira, 1990.

“Os bens do poeta: um fazedor de inutensílios, um travador de amanhecer, uma teologia do traste, uma folha de assobiar, um alicate cremoso, uma escória de brilhantes, um parafuso de veludo, e um lado primaveril…”

O exercício poético é uma das mais desentendidas atividades humanas. Desde os tempos da poética de Aristóteles muitos buscaram compreender e açambarcar com uma teoria a extensão do seu movimento. Com a publicação da obra completa do poeta matogrossense Manoel de Barros – Gramática Expositiva do Chão, Civilização Brasileira, 1990 – surge uma oportunidade ímpar de se encontrar novas pistas desse ideário difuso e pouco esclarecido que permeia afazeres poéticos e sagrados. Se felizmente em Gramática Expositiva do Chão o tema não se esgota ou se elucida, há nela uma vigorosa metapoética, que oferece ao leitor valiosas chaves para a instalação da realidade poética.

Abandonar as premissas e o conhecimento convencional são algumas providências necessárias para o início da conversa, da aventura que surge com a realização da poesia.

“… escrevo com o corpo. Poesia não é para compreender, mas para incorporar. Entender é parede; procure ser uma árvore.”

“Ao poeta faz bem desexplicar. Tanto quando escurecer acende os vagalumes.”

A incorporação, no seu sentido mais amplo, como o usado acima, movimenta sentidos opostos: trazer as coisas, fazer parte delas e deixar de ser para ser com elas. É o começo da posse poética.

É preciso deixar claro o que é a posse poética. Possuir é um vocábulo e um ato retorcido há milênios. O que se ensina na civilização que farfalha ao redor é o exercício da posse centrípeta, que força as coisas – e pessoas também – a se deslocar de seus movimentos para se acoplarem aos desejos de quem possui. A posse coercitiva, que molda os entes, extraindo deles a sua propriedade para servir à nossa. Nada disso interessa à poesia.

“O fazendeiro do ar”. Carlos Drummond de Andrade.

A propriedade poética não tem arame farpado, ela é justamente o conjunto de características mais íntimas dos entes, seres ou não. As fazendas do ar são terras próprias ao cultivo de novos sentidos. A propriedade poética vem do próprio, da natureza última das coisas.

Faz muito tempo desde que o último resolveu possuir tão lúcido assim, como Millôr Fernandes:

“O pôr do sol é de quem olha.”

A posse poética estende o eu, incorporando o que se apercebe até se tornar. É gratuita, na sua essência transcendental – tem a graça. É desinteressada, desimportante e não pode ser comprada ou quantificada pela simples razão de não poder ser transferida como mercadoria. Os sentidos se despertam para o ato de deixar de trazer as coisas até nós. Os sentidos têm que abandonar a pessoa e ver os entres. Permear o universo. A posse poética acaba por ceder o homem ao universo. Ele se torna propriedade de seus domínios.

“Um homem que estudava formigas e tendia para pedras, me disse no ÚLTIMO DOMICÍLIO CONHECIDO: só me preocupo com as coisas inúteis. Sua língua era um depósito de sombras retorcidas, com versos cobertos de hera e sarjetas que abriam asas sobre nós. O homem está parado mil anos nesse lugar sem orelhas.”

A posse poética traz os acontecimentos a um reencontro. Os sentidos acercam-se das emanações que instituíram as correspondências, diluindo-se. A base da poesia é o gerúndio ao infinito. O exercício poético é aprender a disser.

“Já estão a relvar os trastes… Crescem por cima de um homem, de seu casaco, de seus óculos, de seus urinóis. E entopem seus vocábulos de luxúria e escória. O homem está coalescente às coisas como um osso de ave. Dão-lhe ênfase os destroços. É ente desmanchado a monge. Formigas o descobrem pela fé. Olhando para o chão convê os vermes sendo-o. O nada o aperfeiçoa. (Mas isso não tem metafísica – como fechar um rio com trinco.)”

“Esse homem, teria, sim, o que a um poeta falta para árvore.”

“Eu via a natureza como quem a veste.”

“O homem se arrasta de árvore, escorre de caracol nos vergéis do poema.” “Minha voz é úmida como restos de comida. A hera veste meus princípios e meus óculos. Só sei por emanações por aderência por incrustações. O que sou de parede os caramujos sagram.”

Esse homem repleto de humos, que sente em si a decomposição do universo, e a entende como limo, como matéria em estado de pré-coisas, exercita a poesia, respira a graça de seu ar. Ele encontra as coisas poéticas e vive com elas a sua liberdade. Um seixo, um pedregulho que rola num arroio. Uma folha que leve cai. A curva da fumaça. Dois dentes, um sentimento. O elegante barbeiro da esquina. No universo poético as categorias caem em desuso. Não se agrupam em pessoas, objetos, matérias. No universo poético tudo tende a coisa – no sentido mais íntimo. Tudo está disposto, se entregou, não resistiu à razão do universo. A ausência do desejo, como é visto pela nossa civilização, dá aos materiais da poesia a leveza e a liberdade. Não se aprisiona uma pedra. Pode-se confinar um homem, mas não se aprisiona a sua poesia, dizia Ho Chi Min, no seu diário de prisão.

“Coisa é uma pessoa que termina como sílaba.”

“As coisas que não pretendem, como por exemplo: pedras que cheiram água, homens que atravessam períodos de árvore, se prestam para poesia.”

“Pedras fazem versos? Pergunta de Fernando Pessoa.”

A coisa, a matéria poética, livre e espiritualizada, é elemento de construção de uma nova percepção e relacionamento cósmico. A emanação do universo faz Orfeu vibrar na garganta a sede das palavras. Elas mesmas deixando de ser uma categoria, mas existindo com a intensidade do que significam.

“As palavras invadem esse ermo como ervas… Escutam o luar comendo arvores.”

“Palavras… têm carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase.”

Brotam como mosquitos na pedra, se incorporando à matéria poética. Poemas rompem por toda parte. A gramática, como a conhecemos, se transforma. Não existe mais o sujeito agindo, através do verbo, nas coisas, agrupadas no predicado. Não existem adjetivos e advérbios moldando as palavras. Elas passam a vibrar significados, a criar áreas de influência, justaposições e interferências. Se agrupam como elementos de uma paisagem só. Elas mesmas entregues à sua natureza, livres para possuir seus significados. Passam a ser poesia. “No que o homem se torne coisal -, corrompem-se nele os veios comuns do entendimento. Um subtexto se aloja. Instala-se um agramaticalidade quase insana, que empoema o sentido das palavras. Aflora uma linguagem de defloramentos, um inauguramento de falas. Coisa tão velha como andar a pé. Esses vareios do dizer.”

“Um novo estágio seria que os entes já transformados falassem um dialeto coisal, larval, pedral etc. Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural – Que os poetas aprenderiam – desde que voltassem às crianças que foram, às rãs que foram, às pedras que foram.”

Um poema criado assim não serve para nada, numa visão instrumental do universo. Essa é sua virtude: não ter serventia. Seu vigor: estar arejado e pronto para desbravar novas rotas, ou até percorrer as mesmas, encontrando nelas outras razões. O poeta fundido à matéria da poesia ele mesmo, os poemas, todos em transformação:

“Poeta… sujeito inviável, aberto aos desentendimentos, como um rosto.”

“O poema é antes de tudo um inuntensílio.”

“Os nervos do entulho, como disse o poeta português José Gomes Ferreira.”

“Produto de uma pessoa inclinada a antro.”

A força inutilizante e inviável envolvida no processo rompe como o que faz broto, sexo, terremoto ou move o sol. Nessa atividade, o poeta nem sempre é considerado nesse seu estado de universo. Muitas pessoas ainda buscam entender o que lêem. Nessa hora quase sempre perguntam:

“E como é que o senhor escreve?”

E dele ouvem:

“Como se bronha. E agora peço desculpas. Estou arrumado para pedra.”

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Álvaro Andrade Garcia

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Multimídia, Imaginação & Poesia Zen

versão 1: 1996

A cibercultura chegou. A multimídia é a sua forma mais nova de comunicação. A utilização de programas de comunicação multisensorial em computador vai se tornar cada vez mais corriqueira, à medida que o milênio chega ao fim. Falamos de realidade virtual, ciberespaço, internet, data railway, enquanto as pessoas de carne e osso se dividem cada vez mais em duas grandes castas: os muito pobres e os muito ricos. Os pobres são empurrados para a ruas, tomando conta do espaço público. Perdem pequenas propriedades, sítios, saem das favelas e ocupam as praças, as vizinhanças, as ruas, num processo intenso de tribalização. Os ricos se enclausuram nos seus castelos tecnotrônicos. Se locomovem cada vez menos e trazem para si as informações que precisam para continuar a alimentar seu espírito materializado. As ruas se tornam perigosas, o trânsito infernal, as pessoas se deslocam de casa para o trabalho, do trabalho ao shopping e de volta ao trabalho. Em seus casulos, se conectam às redes de televisão interativa, ao telefone e se teletransportam para outras partes onde não onde estão.

Num cenário tridimensional que se constroe a partir da referência do sentido tectrônico, o rico vai se tornando um paraplégico que se interconecta e se perde no seu mundo fantasioso de opções. O mundo da realidade virtual surge com cada vez mais força no ambiente urbano. É o mundo de um estímulo pornográfico que bombardeia o espírito anulado. Que vive a experiência que se dá apenas através da imagem, sem a intermediação da realidade. O mundo onde uma maçã tem cheiro de shampoo de maça. Onde a vaca dá leite em pacotes quadrados, a galinha põe às dúzias no supermercado.

Hoje, a expansão da ideía de acumulação ganha novo fôlego na circulação de mercadorias informacionais. O limite ecológico para novas indústrias e para a circulação de pessoas em seus automóveis e aeroplanos já chegou. Mas a informação é “clean” e “reciclável”. Os gigantes japoneses compram os grandes estúdios, os americanos marcam presença com as grandes redes de tv a cabo que transmitem “ao vivo”, e vendem em massa a imagem de que as pessoas estão fazendo parte dos acontecimentos. O povo parabólico já está antenado a centenas de canais de informação e em breve vai fazer compras e escolher filmes sem sair de casa.

Mas as pessoas estão em casa assentadas, cada vez mais confinadas e hiperinformadas até se desinformarem numa grande massa de consumidores eletrônicos. A casa moderna, da tv interativa, do home theather, do shopping a domicilio é a prisão mais sofisticada que se moldou.

O homem que trançava pelo planeta na época das grandes navegações terminou por conquistá-lo quase que por inteiro e agora se aquieta no final do século, acuado pela miséria que criou ao seu redor. Ele deixa que os impulsos elétricos cheguem até ele, alimentando-se através de bytes tarifados e nutrindo os mesmos grupos industriais que levantaram indústrias gigantescas como a automobilistia e a do entertenimento.

A poesia não se isola de todas estas mudanças. Ela quer penetrar nas novas mídias, ela quer se permear nas novas redes, fazer-se presente. Mas, à luz desse contexto, fica uma pergunta no ar: será que nesse momento em que vivemos, não é muito mais importante transmitir acalmar que estimular os leitores? Desestimular, diminuir os estímulos, refinar a comunicação, aumentar o silêncio, revitalizar o espírito. Será que o momento não é para a poesia multimídia e sim para a poesia zen. Será que a utilização de formas de comunicação multisensoriais não acaba moldando o nosso imaginário às imagens possíveis da tecnologia de um determinado momento e estamos esquecendo de imaginar?

A imaginação é uma faculdade que tem o espírito de representar imagens, evocando objetos já percebidos ou não e de realizar novas combinações de imagens. Essa representação mental a partir do que é percebido ou recombinado possui características próprias. Entretanto, uma imagem visual, uma imagem sonora, uma imagem em forma de linguagem escrita ou falada, ou tátil tem uma determinada representação dominada pela cultura.É esta representação que permite a troca, ou o intercâmbio entre imaginações de seus membros.

A poesia é uma forma de linguagem extremamente sugestiva, inaugural que recombina códigos de linguagem com extrema facilidade. Essa facilidade de ruptura e desconformidade, essa força da palavra inicial, faz com que o texto poético atinja com grande intensidade a imaginação de quem tem acesso a ele, e fez com que o poema tivesse uso em quase todos os processos sagrados do passado e nos processos de rebelião e avanço social contemporâneos.

Não digo que a poesia não pode ser reprodutora e conformista, ela é também isso quando o autor ou o leitor assim desejam, mas digo, e isso é indiscutível, que ela tem uma potencialidade de renovação muito grande, embutida na suas características formais de construção. A facilidade que tem para incorporação de elementos visuais e sonoros de linguagem, a facilidade para recombinação, recodificação de linguagem e fusão de imagens de diversas origens está na base dessa característica.

Eu poderia arriscar e ir mais longe. A poesia, quando penetra, é uma das mais importantes formas de transmutação imaginística das pessoas. A poesia, enquanto forma de linguagem, tem muita facilidade para evocar imagens mentais dos seus leitores, sucitando rearranjos e recriações internas. Dando vida ao imaginário, trazendo a ele novos códigos e liberdade de composição. A abertura das combinações possíveis na linguagem, os silêncios entremeados entre palavras, a formação imaginística de conjuntos semânticos, contribui de forma decisiva para essa característica.

Por isso penso na poesia contaminada pelo zen. O zen fala que boa parte do que sentimos e pensamos é ilusão, O zen transmite a mensagem de que é necessária uma revelação que vai nos afastar definitivamente da teia de ilusões que permeiam o nosso espírito. O zen renega o consumo, a acumulação e a prosa. Ele se afasta de quase todas as formas de linguagem que bombardeiam o espírito. Mas sempre esteve próximo da poesia. Os coanas, os haicais, cumprem um importante papel no descodicionamento mental. É como se a imaginação estivesse poluída com formas que eram apenas códigos para comunicação e que foram confundidos com a verdade (ou com a imagem mental em si).

Os poemas induzem, sensibilizam, despertam, descortinam, tocam de leve e suscintam as mais remotas imagens, impenetráveis pela linguagem, incontíveis no que é possível registrar. A poesia zen, a poesia chinesa antiga, a poesia de diversos autores atuais consegue quebrar a sintaxe, descondicionar e aproximar a linguagem da imaginação mais profunda e dessocializada. Talvez o paradoxo esteja diante de nós. Na era da multimídia, a poesia deve entrar nos computadores e se ligar na rede, mas é preciso ter em mente que o poema não está ali para hiperestimular moribundos. O poema deve imaginar como fazer as pessoas mais vitais. O poema deve saber dar uma banana tudo e instituir o silêncio que todos precisamos ouvir.

Álvaro Andrade Garcia

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O Computador Agora Quer a Sala de Visitas

Publicado no caderno Magazine do jornal O Tempo 1997

Se você acabou de comprar um Pentium com kit multimídia e placa de fax modem, achando que estaria livre de mudanças no seu equipamento pelos próximos 2 anos, essa notícia não vai agradá-lo nem um pouco. Até o final deste ano está sendo lançado o Entertainment PC. Um PC turbinado para o lazer que promete tomar o lugar de honra hoje ocupado pela televisão nas horas de folga da família.

É que a tecnologia evoluiu e as empresas de informática querem sua fatia no ‘grande’ mercado doméstico. E para isso o computador tem que perder o ar de sério. A ordem é deixar os escritórios e ganhar a batalha pela sala de visitas. Não vai ser fácil para o micro, deixar de ser um instrumento apenas para o trabalho. A meta é ousada: adeus televisão, adeus telefone, adeus aparelho de som! E lá vai estar apenas ele, mais onipresente que nunca, instalado numa CPU em algum lugar da casa, com terminais espalhados em todos os cômodos, conectando a família aos mais diversos canais de lazer e informação, espalhados nos quatro cantos do mundo.

O processo de incorporação aos micros de recursos de multimídia e de funções de outros aparelhos eletrônicos vem acontecendo já faz alguns anos. Hoje, uma máquina decente sai de fábrica com fax, internet, CD ROM, placa de som, controle remoto e telas coloridas de alta resolução. Numa constante evolução, os CD ROM se tornaram mais velozes, a internet trouxe a comunicação de dados para dentro de casa, chips dedicados foram desenvolvidos para processar áudio e vídeo. Parabólicas do tamanho de pizzas já recebem sinais digitais de satélites e os games no PC se tornaram mais vibrantes com recursos 3D.

O computador se qualificou para usurpar o lugar de outros eletrodomésticos, mas antes precisa enfrentar pra valer um problema que herdou do seu passado. A sua maneira de se relacionar com os usuários – sua interface – não foi feita para o lazer, mas para o trabalho. As telas ainda são pequenas, nem todo mundo sabe usar um teclado e o mouse, o usuário fica muito próximo da tela, o que não é o adequado para se assistir filmes ou realizar tarefas em conjunto. A solução sempre é mudar, e para acelerar essa mudança e buscar padrões comuns para a indústria do entretenimento é que gigantes como a IBM, Compaq, Toshiba e Microsoft estão unidos em um ambicioso projeto: o Entertainment PC. Um computador completamente remodelado para atender às exigentes famílias da classe média planetária.

Estaremos vendo a tela principal dos Entertainment PCs com dimensões de 27 polegadas ou mais, com opção de serem planas a ponto de ser dependuradas na parede. Os computadores terão novas entradas de dados, via cabo (com o uso dos cable modems), via satélite digital (direct tv), via rede local ou através de conexões analógicas que também estarão habilitadas a receber dados. Eles virão de fábrica com o DVD, o disco ótico substituto do CD ROM, capaz de armazenar filmes em alta resolução, com trilha sonora estéreo e digital e canais som para diálogos em várias línguas simultaneamente.

O Entertainment PC estará apto para suportar a chegada da web tevê, onde, via cabo ou satélite, poderemos acessar ou receber diretamente programação de qualquer rádio ou tevê do planeta. Seu teclado não terá mais fio como hoje, se tornando móvel, teremos controles remotos sofisticados e pads – pequenos consoles de cristal líquido, sensíveis ao toque e com tela colorida – que usaremos para programar o que ver na telona central do nosso computador, ou usar como terminal de leitura de homepages no quarto, banheiro e até como agenda na rua. Terminais conectados em rede local, espalhados pela casa, no quarto dos filhos e no escritório, com os antigos mouses e teclados ainda vão existir, para as ‘tarefas do passado’, ligadas ao trabalho.

É ver para crer. E se preparar para a nova ordem no lar. Como se viu, seu Pentium poderá ainda ser uma máquina do presente, mas em volta dele uma infinidade de novos periféricos estarão disponíveis, mudando radicalmente suas características. E a rotina em casa vai mudar também. Pais e filhos terão que discutir horários para uso da telona, afinal a briga entre os filmes e games vai se acirrar. Senhas para proteção de contas secretas na internet e bloqueio injusto de canais com material impróprio serão temas comuns na hora do jantar. Garotas virtuais em 3D, como a inglesa Cindy e sua irmã-clone japonesa, estarão seduzindo interativamente os adolescentes em sexy-caraoquês. Câmeras de tevê ao vivo, conectadas em diversos locais do planeta, transmitirão cenas coloridas em pequenas janelinhas, e milhares de Você Decide, cada vez mais sofisticados, estão nos planos da indústria para o novo cotidiano da sala de visitas, ainda este ano.

Álvaro Andrade Garcia

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Os Caminhos da Informação Digital

Publicado no caderno Magazine do jornal O Tempo 1997

Estamos no tempo de grandes transformações na forma como a informação é armazenada e transmitida. A revolução pela qual passamos hoje é comparável ao surgimento da escrita, da impressão de livros e à descoberta da eletricidade e da fotografia, que nos trouxeram o telégrafo, o rádio, o cinema e posteriormente a televisão. Com a tecnologia da multimídia e telecomunicações, o computador se transformou num importante veículo de comunicação, e se posicionou na base da nova era pós-industrial. A chamada Sociedade da Informação já está entre nós.

Nesse momento de transição, a multimídia traz uma importante contribuição. A comunicação digital eliminou as restrições ao número máximo de emissores de informação. Vivemos numa grande rede, onde qualquer um pode emitir, qualquer um pode receber, em qualquer lugar do mundo. Há canais abertos para todos. Mas é preciso partir para a luta. Por que essa disponibilidade não é passiva, o fato de existir um canal é apenas um belo começo. É preciso produzir informação para se veicular ali, é preciso fazê-la chegar a um público que se interesse por ela, é preciso lutar para manter esses canais abertos, por que há interessados em fechá-los.

Hoje a rede oferece uma oportunidade real de desconcentração nas relações de produção-consumo cultural. Mas ao mesmo tempo serve ao poder econômico e à indústria cultural de alguns paises, que vão paulatinamente transformando-a numa grande pirâmide, onde todos vão acessar, mas poucos, lá em cima, vão produzir e dominar a transmissão da informação.

Estamos precisando de uma grande articulação que permita ações simultâneas e integradas em diversos setores. Por que a informação digital é o motor e a mercadoria do futuro e o país que ignorar esse fato vai pagar caro pela cegueira. Precisamos de uma explosão cultural, para alavancar a produção de informação brasileira e fazer com que nossa ‘balança informacional’ inverta sua situação de desequilíbrio crescente entre buscas lá fora e visitas aos nossos sites. Precisamos encorajar o surgimento de novas empresas e o uso ativo da rede por todos os setores da sociedade. Precisamos mudar hábitos, discutir conceitos novos.

Precisamos acordar para o tempo presente. Estamos na era das grandes obras de engenharia eletrônica, pois é necessário assegurar canais velozes, descongestionados, baratos e colaterais aos países em desenvolvimento. Dependendo da situação, hoje é mais rápido acessar um site nos EUA que outro na mesma cidade no Brasil, e isso não pode acontecer. No âmbito político, no que se refere às infovias, devemos estabelecer relações e investimentos baseados em nossos interesses estratégicos. Por que a coisa toda é muito simples. O tráfego da informação funciona em linhas gerais como o tráfego de automóveis. Os usuários tendem a buscar caminhos onde o tráfego é descongestionado e tendem a ir onde há mais informação relevante. Se há um estrangulamento aqui, as pessoas vão passar por ali, se não se produz aqui, vai-se até lá com grande facilidade. A engenharia e a articulação política das infovias é assunto tão relevante, que sua implantação nos EUA é missão do vice-presidente, também candidado assumido à presidência nas próximas eleições.

Por fim, é preciso ampliar o acesso da população a essa nova realidade tecnológica. Computadores nas escolas, nas ruas. Não se trata de mais um eletrodoméstico, estamos falando de um instrumento que é a base da nova sociedade que se avizinha. Na vasta belíndia chamada Brasil precisamos democratizar o acesso à rede, promovendo uma ampla popularização dos computadores multimídia e da internet, caso contrário, teremos o país ainda mais dividido, agora entre analfabetos, alfabetizados e informatizados. É preciso olhar para o futuro, num país que se acomodou ao presente. Vivemos numa época onde falar de planejamento no estado e de autonomia entre países é palavrão, mas seguramente, deixado ao rumo dos ventos, o fluxo de informações da grande rede da Sociedade da Informação tenderá a se organizar num padrão onde a concentração e a polarização em torno dos grandes países será a tônica. Por isso é preciso debater e resolver logo como vai ser nosso caminho, antes que outros paises o façam por nós.

Álvaro Andrade Garcia